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Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião | Lira, Haddad e Barroso preferem culpar os outros pelos problemas brasileiros

Líderes de Poderes, por razões políticas óbvias, não costumam expor publicamente as contradições e disputas internas que paralisam certos aprimoramentos urgentes. O caminho mais fácil é dizer que o problema está em outro lugar

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Foto do author Fabiano Lana

No evento em que celebrou uma década de existência, a plataforma Jota trouxe para uma reflexão pública três dos mais importantes personagens que conduzem os caminhos e descaminhos atuais do País. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente da Câmara, Arthur Lira. Por trás das falas ponderadas e analíticas dessas autoridades poderosas e articuladas, é possível entender as divergências que paralisam algumas das medidas imprescindíveis à organização do Estado e da sociedade brasileira. Em resumo, ninguém quis expor ou discutir abertamente entraves que também são internos e preferiram, ao estilo do filósofo Jean-Paul Sartre, dizer que o inferno são os outros.

Às voltas com o quebra-cabeça de peças desencaixadas do ajuste fiscal, o ministro Fernando Haddad evitou falar das questões internas do governo e de seu partido que impedem a apresentação de um pacote que convença de modo indubitável os agentes econômicos. Preferiu lembrar que devido à falta de colaboração do Congresso, na prorrogação para ele injustificável do Programa de Retomada do Setor de Eventos (Perse), por exemplo, entre outras inações, o governo segue a apresentar déficits expressivos. A culpa pelo vermelho das contas públicas, que gera tanta insegurança no mercado, portanto, não seria obra de um Executivo expansionista.

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente da Câmara, Arthur Lira. Foto: Nelson Jr./STF - Marina Ramos/Agência Câmara - Wilton Junior/Estadão

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O presidente do Congresso, por outro lado, avisou que o Executivo no máximo apresentou um projeto que torna um pouco mais lenta a expansão das contas públicas. Reiterou a disposição de colaborar do Parlamento, mas apontou uma tentativa de colocá-los em uma armadilha. Por que, afinal, congressistas conservadores irão votar medidas duras e impopulares que seriam bombardeadas pela própria base ideológica do governo?

Lira também se virou para o Judiciário, quando o Poder interveio no procedimento de distribuição das emendas. Para o deputado, o modelo, na prática criado pelo próprio, que elevou de maneira expressiva (para outros de modo exagerado e inaceitável) o valor destinado às emendas orçamentárias é um avanço. Segundo ele, o que houve foi a criação de um mecanismo democrático que findou o famigerado “toma lá, dá cá” que marcava a relação entre governos e parlamentares por décadas. Houve até um recado sobre certas investidas do Supremo na apresentação da tese de que o Parlamento legisla até quando não quer legislar. No sentido de quando o assunto ainda não está maduro para ser levado em votação – num local onde, na medida do possível, deve se buscar os consensos – a questão deve continuar fora pauta.

Primeiro a falar, mas já consciente das críticas que receberia, o ministro Barroso negou que tenhamos um judiciário ativista. Preferiu colocar a responsabilidade na nossa vultuosa Constituição de 1988, que a despeito de ser uma carta “iluminista” e bem-intencionada, tende a destinar uma enxurrada de questões divisivas do País para o Supremo Tribunal Federal – tributárias, previdenciárias, criminais, dos direitos individuais, etc. O texto da própria Carta, por sua vez, indica as direções da decisão, algo que, inevitavelmente, contraria a ala reacionária da nação (que o ministro, elegantemente, chamou de “conservadores”). Ou seja, o Supremo seria obrigado a tomar a decisão final nas questões que polarizam o País e o manual de “como decidir” é progressista. De quebra, Barroso também apontou uma certa crise de representatividade do Parlamento, segundo ele por responsabilidade de um sistema eleitoral desastroso baseado em listas fechadas.

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O que houve, então, por trás de falas afáveis, foi uma defesa enfática dos próprios pontos de vista das autoridades públicas. Na verdade, uma certa inflexibilidade em aceitar as críticas que chegam da própria sociedade em direção aos três poderes ali representados no evento. “Veja, nós fazemos quase tudo certo, porém temos restrições de outras forças que não controlamos e que por acaso estão aqui também nesse evento”, poderiam ter dito em uníssono.

Ficamos, assim sendo, mais ou menos assim: os congressistas, na visão deles, são colaborativos, têm toda a razão de ter a grande soma de recursos para destinar para suas bases e, além disso, não devem se debruçar no que não querem votar. O Judiciário, do próprio ponto de vista, precisa pontuar nas lacunas do Congresso, muitas vezes na necessidade de atender fortes demandas da sociedade e de setores políticos que exigem algum tipo de intervenção – a fricção é uma necessidade. O Executivo, por sua vez, considera que suas ações virtuosas são atenuadas pelas pressões contrárias que chegam seja dos congressistas, seja dos setores prejudicados com fortes interesses seja dentro do Parlamento, do mercado ou das corporações.

Líderes de Poderes, por razões políticas óbvias, como causar distensões na base de apoio, não costumam expor publicamente as contradições e disputas internas que na prática paralisam certos aprimoramentos urgentes. O caminho mais fácil é dizer que o problema está em outro lugar, externo.

Barroso admitiria que juízes da sua corte às vezes têm ido longe demais em suas atribuições causando estresses e acirramento de ânimos, talvez evitáveis, na sociedade? Pelo jeito, não. Lira admitiria que houve certo descontrole na distribuição de emendas e que os parlamentares, que são eleitos por um sistema viciado, têm preferido distribuir dinheiro para as bases do que legislar em certos casos controversos? Provavelmente nada ganharia com isso. Haddad, por sua vez, iria expor que o que o fez apresentar um pacote tíbio e ambíguo seja a resistência dos colegas do governo e do partido – e a reação do sempre amoral mercado, para quem conhece do riscado, é perfeitamente previsível? Talvez não valha à pena frente a tantos desafios que ainda há pela frente. O evento do Jota, nesse sentido, foi bastante revelador no que essas três figuras tão poderosas e relevantes resolveram não falar publicamente, além de apontar o dedo para o vizinho.

Opinião por Fabiano Lana

Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

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