Imagine se o filósofo Friederich Nietzsche, ateu, tivesse razão ao intuir que o que mobiliza o humano é ter poder, cada vez mais poder. Ou então, que o versículo presente no início do Eclesiastes, da Bíblia, “Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”, tenha sido acurado ao definir que esse sentimento é o que move profundamente cada ser. Logo, aceitando-se essa premissa, laica ou religiosa, poder ou vaidade seriam as forças motrizes do que constitui as pessoas nas suas relações com os demais.
Além disso, imagine que exista alguém em posição de determinar, ao final, quem tenha razão numa disputa qualquer de relevância para a sociedade – ou seja, que exerce este arbítrio de fato. Como não ser tomado pelas demandas intrínsecas do poder ou da vaidade? Este papel de juízo final pertence a um integrante do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Por decisões colegiadas ou pelos ainda mais controversos vereditos monocráticos, são essas autoridades que têm o encargo de decidir quem está correto nos temas que dividem nossa comunidade tantas vezes polar.
Quem ler o livro de Felipe Recondo e Luiz Weber, “O Tribunal – Como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária”, sobre a relação do STF e o governo Bolsonaro, vai perceber que os juízes togados não se limitaram a fazer o papel de intérpretes objetivos da Constituição. Muito além disso, atuaram no limite tênue entre interpretar a lei e agir como um poder moderador. Influíram inclusive na administração pública, delimitando os espaços dos poderes Executivos (como no caso de determinar responsabilidades no combate à pandemia), também atribuindo-lhes funções.
Na era Bolsonaro, a cúpula do Judiciário brasileiro ainda se encontrou com a principal circunstância que faz os desiguais se unirem: um inimigo em comum. Se de fato Bolsonaro, hoje inelegível, pretendia liderar um golpe de Estado, encontrou o STF como uma barreira.
Nesta missão que se concederam, os togados agiram como políticos estrategistas com uma causa a encabeçar. Nesse sentido, é preciso ser bastante ingênuo para acreditar que as nomeações de Lula e Bolsonaro para a mais alta corte se basearam em critérios como “notório saber jurídico” – esse predicado não é mais suficiente, nem mesmo necessário para que alguém conquiste uma cadeira no Supremo, no máximo um lustre. O que vale é a fidelidade e a capacidade política, o que não é um demérito porque é impossível ocupar um papel como esse sem se valer da política diariamente.
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As idas e vindas do Judiciário brasileiro, entretanto, colaboram para a instabilidade existencial das pessoas em relação a quem tem a última palavra no País. Um exemplo é se a prisão valeria após a segunda instância ou depois do trânsito em julgado, tema que ficou marcado pelo “vaivém jurisprudencial”, conforme a obra de Weber e Recondo. Com a última decisão pela segunda hipótese, em 2019, o STF pavimentou a vitória de Luiz Inácio Lula como presidente do Brasil. Antes disso, o STF corroborou as decisões condenatórias contra Lula, por corrupção, em instâncias inferiores, mantendo-o na prisão.
Poucos anos antes, uma decisão de Gilmar Mendes impediu que Lula se tornasse ministro de um governo Dilma em apuros, com base em uma gravação de Sergio Moro, tida como ilegal. O mesmo Moro, nos atos seguintes, foi minado por uma série de decisões de ministros do Supremo anulando delações da Operação Lava-Jato. Também ocorreram as disputas televisivas entre ministros, os pedidos de vistas eternos, e até uma inesperada presença do atual presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, a receber uma vaia em palanque da União Nacional dos Estudantes, episódios que têm deixado perplexos até quem sempre busca ver a Corte com os olhos da boa-fé. Como não interpretar todos esses movimentos sinuosos com alguma desconfiança? Bolsonaro também se aproveitou dessas incongruência para atacar o poder Judiciário, buscando enfraquecê-lo e desmoralizá-lo.
Na disputa contra Bolsonaro, conforme interpretação possível do livro de Weber e Recondo, o Tribunal abraçou uma lógica de batalha. Estiveram imbuídos do sentimento de que se não vencessem não iriam sobreviver como instituição. Para isso, no cenário de névoas, ligaram o rolo compressor, como costuma se chamar no jargão jornalístico. A citação é longa, mas necessária, sobre o que constitui o Supremo nos últimos anos:
“O STF ampliou o seu poder de atuação na prática, não dependeu de mudanças legislativas que lhe garantissem novos instrumentos ou redefinissem seus limites. Em certas ocasiões, promoveu a expansão na marra. O tribunal não se restringiu, nem sempre foi deferente aos outros Poderes, nem foi ortodoxo quando lhe interessou. Escolheu o que julgar, quando julgar, e como julgar. Decidiu não decidir de forma estratégica. Decidiu decidir como entendesse mais adequado. Reinterpretou determinados conceitos conforme suas estratégias processuais e institucionais, mudou seus próprios entendimentos conforme a circunstância de momento, decidiu casos com um olho no direito e outro na conjuntura política. No nome de quem estava sendo processado” (Pág. 238).
Na convicção, formada paulatinamente pelos ministros, eles tinham pela frente um adversário perigoso e potencialmente letal. Não ficaram na defesa, partiram para o ataque, o que inclui, como cereja do bolo, o inquérito sobre fake news conduzido por Alexandre de Moraes. Investigação que, quanto instaurada, foi criticada por um senador hoje governista, Randolfe Rodrigues, como evidência de que haveria uma “ditadura de toga” em ação no Brasil.
Se pensarmos na perspectiva dos integrantes do Supremo, havia explicação para seus atos heterodoxos. Do outro lado da trincheira havia um presidente da República que chamou o ministro Alexandre de Moraes de “canalha” e se confraternizou com gente que pedia AI-5 e intervenção militar na frente do comando militar em Brasília, manifestações sombrias na frente da sede do STF que lembravam rituais da Ku Klux Klan, o processo eleitoral sendo diariamente achincalhado por meio de tentativa de deslegitimar as urnas eletrônicas, xingamentos pessoais de todos os tipos na internet, ambiguidades e hiatos nos posicionamento dos comandantes da Forças Armadas.
Os acontecimentos de 8 de janeiro mostraram que sim, havia parte da sociedade mobilizada pelo golpe de Estado, mas sem o apoio prático de quem tinha os instrumentos para tal. Mas o Plenário do STF foi vandalizado no meio desse processo, violência inédita entre democracias consolidadas. O papel de Bolsonaro nisso segue ainda como uma lacuna que, quando preenchida, pode levá-lo merecidamente para a cadeia.
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Uma indagação sobre o sistema jurídico, entre outras, pode de ser colocada da seguinte maneira. Uma justiça “rigorosa” pode punir inocentes. Uma justiça preocupada em jamais castigar os castos poderá deixar de fora os mais ardilosos criminosos. A Operação Lava-Jato, com seus atropelos legais, pode ser um exemplo da primeira hipótese. A situação política virou e a Justiça se tornou mais cautelosa. Agora, o dilema se repete com os revoltosos de 8 de janeiro. A direita-bolsonarista tenta fazer um spin transformando-os em vítimas inocentes de processos marcados, segundo eles, não pela lei, mas pelo espírito de vingança.
Mas, é preciso lembrar que nenhum desses que se dizem desolados pelos destino dos vândalos de 8 de janeiro lamentou a decisão intempestiva de Gilmar Mendes tirar Lula do jogo político, em 2016, jogando uma pá de cal no governo Dilma. A verdade, é que se você aceita uma forma condenável para alcançar um objetivo que considere admirável, em breve essa mesma forma será utilizada para objetivos também condenáveis do seu ponto de vista. A Justiça, em tese, deveria possuir essas amarras formais ao agir sobre a sociedade, evitando a luta política desagregadora. Mas não tem sido esse o caso em muitos acontecimentos.
Se Bolsonaro tentou de fato dar um golpe de Estado, devemos agradecer ao Judiciário por ter sido uma plano malsucedido. Mas como a realidade não comporta posições maniqueístas, juízes, em certos momentos, parecem acreditar que são heróis acima do bem e do mal. Esqueceram-se, talvez, de que o seu papel formal é de serem guardiões de um texto que é produzido por parlamentares e, ao irem além desse ponto, precisam não só ter a total convicção de que a causa é nobre – como “salvar a instituição ou a democracia” –, como também devem provar à sociedade por que merecem o apoio. Fora disso, agravam a já tensa situação política brasileira.
Não existem julgadores sem pecados, imunes ao poder, alheios à vaidade. Se apenas os puros pudessem julgar, todo crime prosperaria sem punição pelo simples fato de que as cadeiras da magistratura ficariam vazias. Mas não seria de todo mal os juízes terem alguma autoconsciência de que suas agendas pessoais e abusos injustificados podem contaminar um poder que, em tese, deveria contar com o suporte das leis e a confiança dos brasileiros – algo cada vez mais labiríntico nos dias atuais.
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