É contraintuitivo. Se observamos a história humana da perspectiva de milênios, séculos ou mesmo décadas, vivemos em um dos períodos mais seguros da face da Terra. Os conflitos sangrentos ocorrem hoje em locais específicos como a Faixa de Gaza, Ucrânia, Armênia ou Sudão. Do ponto de vista absoluto, cada morte é para se lamentar, mas já vivemos, como espécie, momentos em que o trivial se constituía, com muita intensidade, de tortura, escravidão e mortes violentas. Hoje, se pensamos no mundo como um todo, ser assassinado em um conflito é uma exceção estatística. Nem sempre foi assim.
Como vivemos atormentados, receosos de assaltos, a assistir diariamente notícias sobre fuzilamentos como na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, assassinatos de famílias na Bahia, tiroteios em Recife, bombardeios contra populações civis no Oriente Médio, terrorismo na península arábica, golpes de Estado na África, a sensação de medo e insegurança prevalece. E a razão para isso é porque não importam os períodos históricos que foram extremos, mas o que se sente aqui e agora. O Brasil, aliás, segue com um dos países com uma das mais altas taxas de assassinatos do mundo.
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Mas se examinarmos alguns dados e números, a tese de que a marcha humana permite ser vista como uma tentativa de entendimentos progressivos pode ficar menos vaga. Citaremos dados coletados pelo psicólogo cognitivo canadense Steven Pinker, que possui livros enormes, repletos de gráficos e informações, que tratam da gradual diminuição da agressividade física nas sociedades contemporâneas, como em “Os anjos bons de nossa natureza” ou “Iluminismo”.
Estamos no mais extenso período de “paz global " da história desde o século 16. Não sofremos confrontos diretos entre as maiores potências bélicas do planeta desde o término da Segunda Guerra mundial – quase oitenta anos. Nem que isso seja explicado pelo paradoxo atômico que inibe o enfrentamento dos grandes, temeroso de que tudo se acabe em cogumelos nucleares. Os conflitos bélicos abertos prevalecem numa área que vai do Paquistão à Nigéria, com a Ucrânia ao Norte, em que vivem menos de um sexto da população mundial.
Com razão, estamos chocados com os até agora mais de cinco mil mortos dos enfrentamentos em Gaza. Momento de olhar para a história em busca de perspectivas (não de justificativas): os conflitos na Indonésia nos anos 60 deixaram 700 mil mortos; a revolução cultural chinesa chegou a 600 mil mortos; entre os anos 50 e 60, as disputas entre o sul e o norte do Sudão ceifaram 500 mil vidas.
As mortes do regime Pol Pot, no Camboja, são estimadas em 2,5 milhões. A Guerra do Paraguai, contra Brasil, Uruguai e Argentina, chegou a mais de 400 mil vítimas no século 19 (Se você acha que o Brasil tem uma rota pacífica, leia “As Guerras da Independência do Brasil”, de Leonencio Nossa, do Estado de S. Paulo, para cair na real).
Em Canudos, de Antônio Conselheiro, houve 25 mil massacrados. Na hors concours Segunda Guerra mundial foram 70 milhões de mortes.
Para não restar dúvidas, é preciso reiterar que essas comparações não significam que o terrorismo pode ser de alguma maneira aceito. Não pode. Mas apenas para colocar os atos de violência humana na perspectiva histórica. Para quem é curioso, clique no site com batalhas em que ocorreram centenas de milhares de mortes no decorrer da história, desde antes de Cristo.
Em comparação com as guerras tradicionais, o terrorismo mata muito menos. É difícil até definir o termo terrorismo, como provam as hesitações do governo brasileiro em considerar o Hamas nesta categoria mesmo com fartas imagens de ataques a civis inocentes.
Entidades que buscam compilar dados indicam que são em torno de 24 mil mortes por ano pelo terror global, como se pode ver, por exemplo, no “Our World in data” (https://ourworldindata.org/terrorism). Menos letal do que as guerras, entretanto, o terrorismo é eficiente no que se propõe: disseminar o pânico e sensação de insegurança por meio de ações midiáticas e espetaculosas.
Podemos ver a história da humanidade como uma sequência interminável de guerras, racismo e violência até um período muito recente, em que atos hoje abomináveis se tornaram exceção. Pinker, por exemplo, entrou em certa polêmica ao sustentar que o índice de mortes violentas entre homens Ianomamis antes da chegada da civilização alcançou 35%.
A sequência dos livros de Laurentino Gomes sobre a escravidão mostra que a prática era um hábito disseminado em todo mundo até recentemente, em todos os continentes, e praticamente todas as etnias. Após uma trajetória de tantos conflitos e arbitrariedades, apenas nas últimas décadas, o que seria um átimo de nosso itinerário sobre a Terra, começamos a de fato a aceitar de maneira disseminada a paz e o respeito ao semelhante como uma regra.
Isso significa que podemos ficar tranquilos? Não. Nunca. Porque talvez o humano tenha uma propensão à guerra. Pensadores como Edward Wilson (que refletiu sobre o traço animal das pessoas), ou o próprio Steven Pinker, escreveram bastante a respeito sobre o que podemos chamar de natureza humana. Significaria primazia dos laços familiares, etnocentrismo, parcialidade no interesse próprio no senso moral, e prevalência de mecanismos de defesa em contextos de risco, o que leva à violência.
Wilson, em especial, faz um alerta: conhecemos com alguma segurança apenas uns 5 mil anos de nossa história. Outros 95 mil, no mínimo, em que provavelmente preponderaram disputas violentas por território, ainda nos constituem estruturalmente. Fora outros milhões de anos em que sobreviver na natureza, para qualquer espécie, constituía em lutar pela disputa de recursos escassos.
Se não fosse o nosso potencial para atos violentos, talvez nossa espécie já tivesse sido exterminada. Carregamos esses circuitos de ferocidade dentro de nós, seja por meio de nossos genes ou de nossas tradições. O mito do bom selvagem, de Rousseau, não teria exemplos nas sociedades pré-históricas. Se existiram, foram exterminados por uma tribo mais violenta. Do ponto de vista das últimas descobertas antropológicas, Thomas Hobbes, do século 17, tinha mais razão ao dizer que o homem é o lobo do próprio homem e só um Leviatã pode nos controlar.
Em outras palavras, se vemos a humanidade da perspectiva dos séculos, somos seres com hardware da selvageria, mas que apenas muito recentemente recebemos um software que busca o pacifismo. De vez em quando, pelos mais variados motivos, dá um bug, o homem tribal que habita em cada um de nós volta a nos atormentar. “Na verdade, é a crença de que a violência é uma aberração que é perigosa, pois nos induz a esquecer como a violência pode irromper facilmente em lugares assintomáticos”, escreveu Pinker, em seu livro “Tabula Rasa”.
Enfim, de certas perspectivas, somos ainda animais preparados para a guerra. Mas as sociedades fizeram um esforço no sentido, à despeito de nossa própria inclinação guerreira, pela conciliação. Contribuíram para essa reversão de tendência passagens do novo testamento como a célebre preleção atribuída a Jesus Cristo em que teria dito, em Lucas, “Se alguém bater em você numa face, ofereça-lhe também a outra”; Kant, que pode ter sido o primeiro idealizador de um organismo como a ONU, em sua obra, “A paz perpétua”; Bertrand Russel, preso por se opor à primeira guerra (contra Hitler, achava que todos deveriam lutar); Gandhi e sua resistência pacífica ao domínio inglês; Hannah Arendt, em suas reflexões sobre o totalitarismo; Martin Luther King, nas ações contra o segregacionismo nos EUA, fora milhões de anônimas e anônimos.
Vale pensar também que a maior presença de mulheres em estruturas de poder ter contribuído por avanços nesse sentido, apesar de não faltarem representantes do gênero feminino como senhoras da guerra a exemplo de Margareth Tatcher, da Inglaterra, ou Golda Meir, de Israel.
Ainda podem ter contribuído para a progressiva paz mundial fatores como a consolidação do Estado, democracia, comércio entre as nações, imigrações que trouxeram conhecimento entre culturas diversas, mais abertura de fronteiras, prevalência de diálogos entre os diferentes. Sociedades laicas e com menos certezas tendem a ser mais pacíficas, tente tabular os dados.
O que traz paz, sobretudo, é a marcha da civilização a reprimir nossos piores instintos – essa compreensão é de gente como Nietzsche e Freud. Aliás, civilizar traz frustações, ansiedades, neuroses, alimenta toda uma indústria de médicos, psicanalistas e psicólogos, mas quantitativamente, motiva a paz. Se um dia tiverem tempo na vida, leiam “O processo civilizador”, de Norbert Elias, para esse ponto ficar luminoso.
Em tempos de discursos de ódio nas redes, conflagrações, guerras de valores, e tantas outras disputas, algumas tão violentas como em Gaza ou na Ucrânia, pode ser até irrefletido falarmos que é possível observar tendências de menos ações bélicas no mundo ao longo do tempo. Mas a perspectiva é outra: a permanência dos conflitos aqui e ali mostra que por mais que busquemos a concórdia, o entendimento contínuo, os acordos de cessar fogo, nossos traços perigosos e violentos estão sempre à espreita para atacarem novamente – Israelenses e palestinos são apenas o exemplo mais evidente disponível na ocasião.
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