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Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião | O Brasil sublime que nunca conseguiu se sobressair

Por uma série de razões que remontam aos séculos, preferimos nos contentar com muito pouco, eleger quem espelha o nosso pior, e ficar na acomodação e no autointeresse que nos faz perder como coletividade

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Foto do author Fabiano Lana

Do que é deteriorado no Brasil recebemos notícias a todo instante. Escândalos de corrupção, simbiose entre forças de segurança e chefes do crime, populistas que sacrificam o futuro em nome da popularidade do presente, expressões de baixo calão proclamadas por figuras públicas, tentativas de golpe perpetradas por governantes obtusos, covardia por conveniências imediatas, subcelebridades vazias transformadas em líderes ou gurus sobre qualquer assunto, falta de coragem em enfrentar ondas que vêm e vão, inclusive dos líderes dos Três Poderes. Nesse Brasil, também há desenvolvimento aquém do que ocorre no mundo, pobreza, desigualdade estimulada pelo próprio Estado, péssimos serviços públicos, vícios em atalhos quando o caminho é longo, tudo a resultar em submissão e desalento.

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Quem é viciado em dados e em comparações poderá perceber que do ponto de vista das décadas e dos séculos avançamos, mas em ritmo mais lento do que o mundo, pelo menos há quatro décadas. Que o Estado e seus representantes estão muitas vezes mais interessados em alimentar a si mesmos do que servir à coletividade. Que gostamos de ideias mofadas e ineficazes que já foram abandonadas por sociedades que resolveram de fato buscar a prosperidade.

Enquanto isso, numa noite chuvosa de Brasília, menos de 20 pessoas estavam numa sala de cinema para assistir a um Brasil que deu certo. Que mostra que apesar de tudo somos um dos países mais criativos, inventivos e originais do planeta. O documentário “Nada será como antes – a música do clube da esquina”, mostra as origens de um movimento musical que surgiu em uma cidade desconhecida para a grande maioria do mundo, a Belo Horizonte dos anos 60, mas com antenas ligadas para o universo.

Clube da Esquina, movimento musical capitaneado por Milton Nascimento (à direita) 

O filme aborda a gênesis do Clube da Esquina, um movimento musical capitaneado por Milton Nascimento que une tudo que o Brasil produziu por séculos em matéria de sons: música de câmara, o cânone erudito, canções da igreja, jazz, trilhas sonoras de cinema, Beatles, rock progressivo, sons que vieram da África, do candomblé, samba, bossa nova, choro, congado, samba-jazz (sobretudo de John Coltrane e Miles Davis), samba-canção, fado, toadas, música sertaneja e o que mais que você imaginar de música que passou pelo Brasil na nossa história. Uma profundidade harmônica, melódica, artística, que é rara em qualquer lugar do mundo em qualquer tempo. Além de imagens de arquivo inéditas, um mérito do documentário de Ana Rieper é que não é preciso entrevistar ninguém de fora do movimento para tentar convencer sobre a importância do movimento. Bastou mostrar seus integrantes e o que conseguem fazer com suas vozes e seus instrumentos.

Pela quantidade de pessoas na sala de cinema, tudo indica que o tal documentário será um fracasso comercial. Na verdade, boa parte que a crítica musical brasileira celebrou como algo que temos de melhor foi um malogro popular. No caso do álbum Clube da Esquina, considerado por uma votação da crítica como a maior obra musical já produzida no Brasil, é dramático saber que os dois meninos representados capa do disco, até 2012, não sabiam que faziam parte do cânone musical brasileiro. E ao invés de celebrarem o feito, resolveram processar seus autores, Milton Nascimento e Lô Borges. Perderam, mas persiste na boca da noite um gosto de fel. Mas quanto o filme por si mesmo.

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O tempo da delicadeza cantado por Chico Buarque talvez não seja a melhor imagem do Brasil. Temos brutalidade, incompreensão e desconhecimento do que poderíamos ter de melhor. Somos um país que se contenta com muito pouco. Pouca formação escolar, pouco desenvolvimento, serviços públicos eficientes para muito pouco, pouca vontade de romper com o que nos prende na mediocridade.

Movimentos como o de Milton Nascimento e sua turma, que do ponto de vista mercadológico são praticamente desconhecidos na nação, mostram que podemos ir muito longe. Criamos por aqui, em paralelo, mas sem contato com as metrópoles culturais, um produto incrivelmente próximo, do ponto de vista harmônico e literário, com o que se fazia em países como Inglaterra ou Estados Unidos – talvez até mais rico no critério de amálgama de influências. Estávamos entre as montanhas de Minas ligados ao espírito do tempo. A diferença, como escreveram os poetas Fernando Brant e Márcio Borges, é que nós os conheceríamos, depois, e eles nunca nos ouviriam (Apenas no ano passado Paul McCartney soube da existência de Milton Nascimento).

O texto aqui é sobre estética. Mas em muitos outros ramos o Brasil possui potencial e criações que podem estar no mesmo nível, ou muito melhor, do que é produzido no restante do mundo. Por uma série de razões que remontam aos séculos, preferimos nos contentar com muito pouco, eleger quem espelha o nosso pior, e preferir ficar na acomodação e no autointeresse que nos faz perder como coletividade.

O Brasil é um país desigual no sentido de que temos uma elite com o mesmo nível de renda de países ricos e uma gigantesca massa que luta diariamente para pagar suas contas básicas e até mesmo para se alimentar. Muitas vezes, essa mesma elite desconhece que temos como um Brasil muito acima da média, como na música de Milton e Clube da Esquina e tantas outras possibilidades, basta procurar. O nível de excelência que já conseguimos na música (e na literatura e em tantas artes) podemos atingir nos demais ramos. Basta, talvez, deixar de lado a indolência, a apatia, o conformismo, a indiferença e buscarmos alcançar o potencial que alguns de nós, como Milton, já mostramos que temos.

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Opinião por Fabiano Lana

Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

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