Que o patético e trágico atentado na Praça dos Três Poderes em Brasília foi cometido por uma pessoa com sérios transtornos mentais restam poucas ou nenhuma dúvida. Que o autor agiu de maneira solitária e delirante, é bastante provável, a conferir o prosseguimento das investigações. Mas dizer que se trata de um ato completamente desconectado do bolsonarismo já é ir um pouco demais para aliviar a barra dos coniventes. O chaveiro Francisco Wanderley Luiz vivia em um mundo de ideias e concepções que milhões de brasileiros acreditam e ainda estão dispostos a lutar por suas teses.
Nesse mundo, o ex-presidente Jair Bolsonaro foi vítima de uma conspiração liderada pelo Judiciário, com apoio da mídia tradicional, que maquinou sua derrota nas eleições presidenciais de 2022. Essa fraude teria sido liderada pelo ministro Alexandre de Moraes, o Xandão, que colocou como razão de ser da sua vida perseguir Bolsonaro e os bolsonaristas.
A trama imaginada tem uma série de desdobramento que vão além da famigerada versão de que o sistema eleitoral brasileiro é uma farsa baseada em urnas adulteradas. Inclui a convicção de que os vândalos do dia 8/1 eram apenas patriotas inocentes que estavam numa marcha pacífica pela Esplanada quando esquerdistas infiltrados partiram para a depredação da Praça dos Três Poderes sob o olhar complacente do então ministro da Justiça, Flávio Dino, não por acaso nomeado logo a seguir como integrante do mesmo STF que os persegue implacavelmente.
Esse fantástico mundo bolsonarista inclui também veneração ao presidente eleito dos EUA, Donald Trump, apologia à cloroquina, raiva à Rede Globo numa espécie de combo mental que une milhões à mesma tribo. Muitas vezes são ideias compartilhadas diariamente, sejam em conversas, em grupos de WhatsApp, nas festas de aniversário por “pessoas de bem”, como pais de família, senhoras religiosas, jovens profissionais liberais. Hanna Arendt tem sua tese de que o mal pode ser perpetrado por pessoas banais, gente zelosa e até caridosa, mas essa é outra linha de argumentação. Em suas falas e pronunciamentos, Bolsonaro não costumava agir para apaziguar as coisas – até o caldo entornar com as explosões na Praça dos Três Poderes.
Essa cantilena algo paranoica tem uma principal premissa: o maior inimigo é o Supremo (hoje mais do que o PT e Lula) e Alexandre de Moraes é uma espécie de grande demônio. Não é espanto nenhum, por exemplo, num grupo de alunos de segundo grau de uma escola de classe média alta de uma capital, manifestações de ódio incontido contra o que se chama de “ditadura de toga” e uma imagem de “Xandão” retratada como um vilão de história em quadrinhos, com olhos injetados.
Para que desse caldo surgisse apenas um chaveiro enlouquecido a partir para o tudo ou nada pode ter sido até pouco (o ódio da turma é contra esquerdistas e mesmo os centristas “isentos”. A instigação é diária, contínua, há anos. O STF, inclusive, não parece fazer sua parte para apaziguar essas pessoas que – mesmo em sua enorme maioria gentis e pacíficos direitistas – recebem sua dose diária de ódio. Entre os elementos de pressão estão os inquéritos de Moraes sobre “fake news” que nunca são concluídos, a pouca autocontenção dos integrantes do Judiciário, as anulações das decisões da Lava Jato, e mesmo a convicção de parte da elite intelectual brasileira de que bolsonaristas são apenas lixo.
Os chamados bolsonaristas precisam entender que suas ideias esgarçam e ajudam a destruir o tecido da sociedade. Nós, por outro lado, que não estamos do lado deles, muitas vezes precisamos também mudar nossas convicções em busca de um País melhor que agregue a todos. Hoje em dia essa esperança tem sido cada vez mais uma missão impossível.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.