Um atirador solitário em um terraço alto mira um dos homens mais poderosos do mundo. O projétil dispara em direção à cabeça da vítima. Há vários tipos de desenlace para essa cena do imaginário que amalgama ficção e verdade na cultura ocidental. Um tiro como esse matou o presidente John Kennedy em 1963, como fato histórico. A bala passou por muito perto do crânio do presidente Charles De Gaulle, no livro (e filme) “O dia do chacal”, de Frederick Forsyth. Em 2024, um disparo, novamente nos Estados Unidos, raspa uma aurícula de Donald Trump e o desfecho fica mais próximo de Paris do que de Dallas.
Quase todo mundo conhece a história, provavelmente lenda, da espada de Dâmocles. O cortesão adulador que invejava os poderosos, no caso Dionísio de Siracusa, uns três séculos antes de Cristo. Um dia qualquer o tirano resolveu trocar de lugar com o puxa-saco invejoso. Dâmocles teve um dia de rei, em banquetes rodeados por belas mulheres. Mesmo embriagado percebeu que sobre sua cabeça havia uma espada segura apenas por um fio. Se não tivesse reparado teria sido morto. Concluiu, quase na pele, que a vida dos poderosos é uma vida de riscos.
São cenas antigas e recentes para mostrar que existe um padrão, que não é só ocidental, mas talvez universal: poderosos são cercados de afeto, mas também por ódio, entre seu próprio povo. E quanto mais arrebatada é a ligação que um líder mantém com suas populações, maiores são os riscos de convulsões sociais. Ideologias não têm monopólio de violência e temos listas de massacres cometidas tanto por governo de direita como de esquerda no decorrer das décadas – conduzidos por líderes muito convictos da certeza de suas ideias a colocar uma espada de Dâmocles sobre seu próprio povo. O ideal é que nossos governantes fossem apenas bons administradores de recursos públicos, a serem avaliados objetivamente, mas somos excessivamente tribais para agir com tanta racionalidade e frieza.
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Mas a questão é que quando na política um personagem qualquer não é visto apenas como alguém de quem se discorda, mas alguém que ameaça seu próprio país e mesmo o mundo, a consequência é que cresce o desejo de eliminá-lo, inclusive fisicamente. Quanta gente, mesmo no Brasil, não pode ter pensado assim, a lamentar um desfecho sobre o que ocorre nos Estados Unidos, “por que a bala errou por tão pouco?!”. Por paixão política somada ao ódio podemos ser cúmplices morais de assassinatos. No lado contrário, quanto menos se acreditar em projetos políticos e mais exercer a dúvida, inclusive com relação aos “inimigos”, menos propensos seremos a aceitar qualquer tipo de violência.
A verdade é que em diversos locais do mundo, incluindo aqui, líderes de massa têm estimulado seus seguidores a verem os oponentes políticos como figuras que nem deveriam existir. É exagero e equívoco dizer que Trump seja responsável por seu próprio atentado, mas não é fora da realidade constatar que o ex-presidente e atual candidato à Casa Branca seja um dos próceres que mais estimula a discórdia ao redor do mundo.
A esperança (tênue) é que as democracias e as instituições sejam capazes de evitar os possíveis excessos daqueles que menosprezamos e vemos como um risco à própria existência do país. Vejamos exemplos caseiros: o possível golpe tramado por Bolsonaro não encontrou guarida em quem importava nas Forças Armadas. Venceram as instituições. Vejam que, ao contrário do que diziam os bolsonaristas, o Brasil sobrevive com Lula e o nosso atual presidente não é capaz de implantar o projeto, tão acalentado por seus colegas de partido, capaz de estourar de vez as contas públicas nos levando a outra crise sem fim.
Numa democracia sólida há espaço para todas as linhas de pensamento, inclusive para algumas que consideramos abjetas. Há ponderações e resistências ao que é estapafúrdio e ninguém precisa recorrer a assassinatos, esperemos. Que essas histórias de sangue fiquem apenas na ficção política.
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