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Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião | Política nos faz torcer pela prisão de inocentes e anistia para culpados

Nossa posição passional, seja com relação à cabeleireira que pichou a estátua, seja a uma invasão do MST, tem mais a ver com essas nossas relações grupais, com sentimentos atávicos, do que com qualquer noção de justiça

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Foto do author Fabiano Lana

Percebam algo. Se você se considera de “esquerda”, acha pouco e bom que os “golpistas” do dia 8/1 passem anos nos cárceres pelos acontecimentos ocorridos na Esplanada de Brasília. Não merecem perdão. Não merecem anistia. Por outro lado, quando integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) invadiram uma fazenda experimental e destruíram mudas de árvores transgênicas, você pode ter considerado uma atitude justa praticada por vítimas da sociedade contra o capitalismo. Se você é de ideologia, digamos, mais à direita, é tudo o contrário: quer uma pena menor ou nenhuma para os vândalos da capital federal e punição severa para os militantes sem-terra.

Pelos fatos que chegam até a nós, é difícil sustentar moralmente e até mesmo juridicamente a condenação de uma cabeleireira a 14 anos de prisão por pichar a frase “Perdeu, Mané” na escultura de Alfredo Ceschiatti, em frente à sede do Supremo Tribunal Federal. A personagem em questão, Débora Rodrigues Santos, certamente comungava do chamado pacote “bolsominions” – questionamento das urnas eletrônicas, contra as vacinas, a favor de uma intervenção militar que impedisse a posse de Lula, o que seria um crime. Mas, pelo que consta, não participou de depredações, não tinha poder de comando a ponto de poder ser condenada por associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e por golpe de Estado.

Estátua 'A Justiça' pichada no 8 de Janeiro Foto: Wilton Júnior/Estadão

Mas a suposta impossibilidade de a cabeleireira cometer crimes de tal magnitude não sensibiliza os que possuem pensamentos políticos contrários aos dela. Por outro lado, faz gente como o ex-presidente Jair Bolsonaro tentar transformá-la em mais uma mártir, vítima do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, por suas penas despropositadas. Temos um caso, em tese jurídico, absorvido por política por todos os poros.

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O sentimento de justiça não deveria olhar ideologia. Mas não é isso o que ocorre. Mesmo com todos os avanços tecnológicos, na medicina, na engenharia, na inteligência artificial – no que for – seguimos pessoas tribais, grupais. Queremos o melhor para quem está do nosso lado e a punição para quem não está na mesma linha de ações e pensamentos ou que não seja de uma turma amigável.

O iluminismo, que buscava implantar a ideia de um humano universal, racional, autônomo, com direitos e deveres que valeriam para todos, nunca prevaleceu plenamente. Preferimos o bando. Continuamos a seguir líderes fortes, seja Trump, seja Bolsonaro ou mesmo Lula. E continuamos a ser religiosos, sejam as religiões tradicionais ou as terrestres, como o comunismo, o liberalismo e tantos ismos.

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Pensar como agir ou se posicionar em cada situação específica em um mundo tão complexo é cansativo. Exige demais. Melhor, inconsciente ou não, seguir com a nossa manada. Se a gente vai à antropologia, vê que o humano caminha pela Terra há dezenas de milhares de anos, próximos a 100 mil. A escrita remonta a 3,2 mil anos antes de Cristo. Como espécie, a civilização sob leis anônimas, regras impessoais, é uma parcela de tempo curta frente a vivências em meio de clãs. A política, com seus líderes populistas, histriônicos, parciais, é uma continuidade dessa maneira de lidarmos com o desamparo ancestral.

Somos, portanto, ainda esses seres primitivos, ligados a guias, à comunidade original – mesmo em tempos de globalização e redes sociais. A tecnologia ainda não nos tornou mais livres, apenas nos conectou a grupos com os quais temos as mesmas conexões ao redor do mundo. A nossa posição passional, seja com relação à cabeleireira que pichou a estátua, seja a uma invasão do MST, tem mais a ver com essas nossas relações grupais, com sentimentos atávicos, do que com qualquer noção de justiça. O drama é que nem mesmo os juízes escapam desse tipo de prisão mental.

Opinião por Fabiano Lana

Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

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