Era uma sexta-feira ensolarada em Itaitinga, cidade a 30 km da capital Fortaleza, quando um crime chocou a cidade de 64.650 habitantes. Às 12h12, do dia 31 de agosto de 2018, o então vereador João Roberto de Oliveira Martins, eleito pelo PRTB, encostou seu Toyota Hilux, placas PIM 2453, em frente à Câmara de Itaitinga. Segundos depois, um carro Pálio Weekend, placa NQN 9417, parou no meio da Rua João Vieira Viana, altura do número 32, e um homem desceu e começou a disparar em direção ao parlamentar. Na sequência, outros dois homens desceram do carro com a mesma intenção: matar João Roberto de Oliveira Martins, que levou ao menos 10 tiros. Outras duas pessoas que estavam com o vereador conseguiram escapar.
Os integrantes do bando são apontados pelo Ministério Público do Ceará (MPCE) como membros da facção criminosa Comando Vermelho (CV), que surgiu no Rio de Janeiro na década de 1980, e tenta comandar áreas dominadas pelo crime em outros Estados do Brasil. No entanto, os criminosos também perceberam um ramo de negócio lucrativo na política e, desde então, tentam se aproximar cada vez mais do Poder Público.
Itaitinga tornou-se um exemplo da ligação entre a política e uma facção criminosa. De acordo com apuração da Polícia Civil e do MP, o então vereador mantinha ligações com os integrantes da facção. Em troca de apoio político nas eleições municipais, os criminosos eram agraciados com cargos e colocavam pessoas próximas no gabinete do vereador na Câmara de Itaitinga. A investigação apontou, por exemplo, que a mãe de um dos criminosos foi nomeada para trabalhar no Poder Legislativo. João Roberto foi eleito em quatro oportunidades: 2004, 2008, 2012 e 2016.
O motivo do crime não foi político
A boa relação entre o político e a facção terminou e não foi por questões políticas. De acordo com o Ministério Público, “a motivação do crime está relacionado ao fato da desconfiança que José Flávio de Sousa nutria em relação a um suposto caso amoroso” entre o então vereador e sua ex-mulher.
José Flávio Sousa, de 47 anos, é apontado pelo MP como líder do Comando Vermelho na região. Ao desconfiar do envolvimento do político aliado com sua ex-companheira, ele teria determinado que outros integrantes da facção acompanhassem o vereador.
“A vítima teve os seus dias acompanhados pelos comparsas de José Flávio, prova disso é que há um vídeo gravado do interior do carro do denunciado Rafael Alves Nunes, onde foi filmado o carro de João Roberto estacionado próximo da casa” da irmã da ex-mulher do suposto líder do CV. Na oportunidade, o comparsa de José Flávio disse no vídeo que os dois estavam “se encontrando”.
No fim de novembro de 2023, cinco pessoas acusadas de envolvimento no crime foram condenadas pelo Tribunal do Júri de Fortaleza. José Flávio de Sousa, por exemplo, foi sentenciado a 32 anos e um mês de prisão.
De acordo com a investigação, os atiradores são: Rafael Alves Nunes, José Roberto de Braga Mesquita e Samuel Adams Barros Andrade. Os três foram condenados a 32 anos e sete meses cada.
Em depoimento na delegacia, Braga Mesquita confessou ter participado do homicídio ao confirmar ser um dos atiradores, segundo documento do MP. Rafael Ribeiro Carneiro foi sentenciado a 24 anos de reclusão. Ele sabia da ordem para o assassinato do vereador dias antes do crime e, depois do homicídio, recebeu ordem de Sousa para buscar os autores do crime.
As investigações chegaram aos condenados em primeira instância em abril de 2019. Na operação, a Polícia Civil apreendeu quatro armas – sendo três pistolas e um revólver – 44 munições de calibres variados, R$ 50 mil, um veículo e aparelhos celulares.
Todos os condenados entraram com recurso junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJ-CE). O Estadão conseguiu contato apenas com o advogado Francisco Marcelo Brandão, que defende José Flávio de Sousa. Ele confirmou que todos buscam recurso em segunda instância na tentativa de reverter decisão de primeiro grau e reduzir a pena. O espaço está aberto para os outros defensores.
Suposto líder do CV proibiu apoio a candidatos de determinado grupo
Ainda no Ceará, em uma investigação da Delegacia de Combate às Ações Criminosas Organizadas (Draco), da Polícia Civil para prender uma acusada de ser uma das lideranças do Comando Vermelho no Estado, em novembro de 2020, investigadores identificaram mais um indicativo de que os criminosos estão cada vez mais interessados nas relações com o poder público. Eles tiveram acesso ao celular de Almerinda Marla Barbosa de Sousa, conhecida como Irmã Ruiva, que recebia informações sobre movimentações políticas em cidades do litoral leste do Estado, de acordo com documento de uma ação que tramita em 1ª instância, em Fortaleza. O elo de Irmã Ruiva para saber sobre política era Rener Castro de Sousa, segundo as investigações. Os dois são apontados pelos investigadores como líderes do Comando Vermelho na região.
Em uma das conversas com Ruiva, ao fim das eleições de 2020, Rener diz que deu apoio financeiro a alguns candidatos a prefeito e vereadores em cidades da região, em troca de futuros cargos, e demonstra como a facção interferia nos processos eleitorais, dizendo ter divulgado um “salve” (determinação) da organização criminosa com a proibição de apoio a candidatos aliados do ex-deputado federal Capitão Wagner (União Brasil).
“Tô ainda virado ainda de ontem, e graças a Deus, o homem entrou, nosso vereador, nosso prefeito. Tu é doido, eu agradeço demais pela força que tu me deu, por falar aquele negócio do Capitão Wagner. O outro candidato do 40 tinha um vídeo no Instagram dele com o Capitão Wagner postando apoio a ele. Aí eu fiz só pegar, pedi o salve ao menino aqui, mandaram o salve e eu rasguei no meio do mundo”, diz Rener em um dos áudios transcritos pela polícia. Na conversa, ainda há uma cobrança de Irmã Ruiva sobre um terreno que a Polícia Civil e o MP desconfiam que a área seria pública.
Quando o assunto político caminha para o fim, Irmã Ruiva aconselha Rener ao dizer para ele se dedicar mais ao mundo político e “deixar os negócios referentes ao tráfico nas mãos dela”.
A polícia não conseguiu identificar o nome do vereadores apoiados pela facção criminosa. Sobre os prefeitos, argumentou que não encontrou as provas que ligariam Sousa aos políticos, já que as nomeações citadas pelo suposto líder do CV não teriam ocorrido. Com isso, os prefeitos não foram denunciados e, por isso, o Estadão não publica o nome das prefeituras.
Para o Ministério Público do Ceará, há provas do envolvimento de Rener com o tráfico e a facção. Isso porque, em uma das mensagens, ele afirma que colocaria outra pessoa no lugar para cuidar dos negócios, enquanto estivesse no cargo político comissionado.
“O denunciado demonstra que, ao assumir o seu cargo político, o que aconteceria a partir do dia 1° de janeiro, posicionaria outro membro da organização criminosa à frente de seus negócios, expondo características que procura. ‘Uma pessoa que depois se eu precisar voltar, que não tem o olho grande, está entendendo, e eu vou botar pra gerar, ficar fora’”, diz trecho da denúncia oferecida pela 115ª Promotoria de Justiça de Fortaleza.
O advogado de Rener é Paulo Sérgio Ripardo, que já apresentou alegações finais no caso. A expectativa é que a ação seja julgada no primeiro semestre deste ano. Ao Estadão, Ripardo diz esperar a absolvição de Rener, que responde por suposto envolvimento com organização criminosa (Lei 12.850/2013).
“O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento que, para a prisão, deve ser apresentada as provas, como encontrar as drogas, por exemplo. No caso dele (Rener) não há provas”, disse o defensor, que também afirmou não acreditar no envolvimento de Rener com políticos da região.
Há também o fato de a investigação ter se baseado nas conversas por celular entre acusados e Irmã Ruiva, o que, para Ripardo, fragiliza a ação. Na petição de alegações finais, o advogado também questiona a ação. “Afinal, quais seriam os crimes praticados pelo denunciado? Não houve denúncia em tráfico de drogas no bojo desse processo ou nenhum outro aberto em decorrência das investigações ora apresentadas”, citou.
“Com efeito, conforme restou comprovado ao término da instrução, não foi delineada nos autos nenhuma conduta praticada pelo denunciado que justificasse a frágil acusação de ‘organização criminosa’, é nítido que não existe nenhum elemento hábil a justificar a autoria, tão pouco a materialidade, que a acusação tenta, desesperadamente, imputar ao acusado, o que torna indiscutível, a insuficiência da prova penal existente nos autos, não pode legitimar a formulação, no caso, de um juízo de certeza que autorize eventual condenação do denunciado”, afirmou o advogado em trecho das alegações finais. A reportagem não conseguiu localizar a defesa de Irmã Ruiva.
Deputado vê candidatura a prefeito no interior da BA ‘esfriar’ depois de operação do Ministério Público
No dia 7 de dezembro de 2023, o Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), braço do Ministério Público da Bahia (MP-BA) desencadeou a operação “El Patron”. A Justiça recebeu a denúncia contra 21 pessoas. Entre elas está o deputado estadual Kléber Cristian Escolano de Almeida, conhecido como Binho Galinha (Patriota), parlamentar eleito para um cargo público pela primeira vez em 2022.
De acordo com o MP, “o parlamentar é apontado como líder de grupo miliciano que atua na região de Feira de Santana, acusado por crimes de lavagem de dinheiro do jogo do bicho, agiotagem e receptação qualificada”.
Em ano eleitoral, as pretensões de Binho Galinha podem diminuir com a incerteza de um desfecho rápido para o assunto que tramita na Justiça.
Em diversas publicações na imprensa local, o parlamentar aparece como cotado para disputar a eleição em Milagres ou Feira de Santana, cidades com distância de 125 km. Milagres é a cidade natal do deputado, enquanto Feira de Santana é o local em que construiu a carreira política, que culminou com a eleição para Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA).
Ainda segundo a Promotoria, a Justiça determinou bloqueio de R$ 200 milhões das contas bancárias dos investigados e o sequestro de 26 imóveis urbanos e rurais, sendo dez fazendas, nove casas, quatro terrenos, dois apartamentos e uma sala comercial, quatorze veículos, e suspensão de atividades econômicas de seis empresas.
“O MP solicitou à Justiça que determine o pagamento de multa superior a R$ 30 milhões por danos morais coletivos. Durante as investigações, revelou-se que a organização criminosa realizou, em uma década, movimentações bancárias superiores a R$ 100 milhões, total transferido diretamente ao logo do tempo pelos investigados e por empresas constituídas com o intuito de garantir aparência de licitude aos recursos movimentados”, disse nota da assessoria de imprensa do MP.
Logo depois da operação, o deputado afirmou estar disponível para ajudar nas investigações. “Tendo em vista as denúncias feitas pelo Ministério Público Estadual (MPE) e que a pedido da Justiça estão sendo apuradas pela Policia Federal, Receita Federal, e o próprio MPE em Feira de Santana e região, o deputado estadual Binho Galinha vem a público esclarecer que está a inteira disposição da Justiça da Bahia, e que tudo será esclarecido no momento próprio. Mantemos nossas atividades pessoais e legislativas sem alteração. Confio na Justiça e estou à disposição para dirimir dúvidas e contribuir quanto a transparência dos fatos. No mais, dizer que nosso jurídico está tomando as devidas providências para junto à Justiça prestar os esclarecimentos”, disse o parlamentar na nota. Ele não foi encontrado para se manifestar novamente sobre a ação do MP.
Atuação de grupos criminosos ocorre em eleições municipais por dificuldade de fiscalização, avalia especialista
Advogado criminalista, professor e doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP), Matheus Herren Falivene de Sousa avalia que as ambições de organizações criminosas continuam para as eleições deste ano. De acordo com ele, é algo comum as facções - pequenas ou grandes - tentarem uma escalada dentro do Poder Público.
“A partir do momento que ficam grandes, [as organizações] começam a almejar cargos políticos primeiro em nível municipal, nível mais baixo, local, e vão escalando como forma de obter vantagens operacionais. Elas financiam candidaturas, fazem com que membros se candidatem. Tudo com a ideia de obter vantagem operacional. Cada município, mesmo pequeno, tem 10 vereadores, por exemplo. É difícil ter um maior controle. Começam pelo nível municipal e tentam escalar”, afirmou o especialista.
Ouça também o podcast Estadão Notícias sobre a série que mostra as conexões políticas do crime organizado no país:
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