Após pedir o impeachment dos presidentes Fernando Collor, Dilma Rousseff e Michel Temer, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) deu início a um processo interno para decidir em no máximo 60 dias se vai encampar ou não a bandeira do impedimento de Jair Bolsonaro. O ponto de partida foi o parecer elaborado por uma comissão de juristas e presidida pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, que concluiu que o presidente da República cometeu crimes de responsabilidade e contra a humanidade. Apesar da iniciativa, nesta entrevista ao Estadão, o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, se disse cético. “Não tem ninguém na rua para pedir impeachment agora.”
Líder estudantil nos anos 1990, quando presidiu o Centro Acadêmico de Direito e o Diretório Central dos Estudantes da PUC-RJ, ele não descartou concorrer ao governo do Rio de Janeiro no ano que vem.
Uma comissão de juristas da OAB concluiu um parecer no qual o presidente Jair Bolsonaro é acusado de ter cometido crime de responsabilidade. A Ordem vai agora pedir também o seu impedimento?
Eu era líder estudantil no impeachment do Collor. As ruas foram tomadas. Houve uma confluência entre vontade popular, crime de responsabilidade e desvios graves. Era uma conjuntura clara de impeachment, com o aspecto jurídico atendido e mobilização popular. O mesmo se deu com a Dilma. Foi mais traumático, porque não houve a mesma unidade (de oposição) do governo Collor, quando todos queriam o impeachment. Mas teve pressão popular e manifestações contra a Dilma. Esse clima força uma percepção do Congresso sobre essa agenda. No caso do Temer, havia insatisfação popular, mas ele tinha uma sólida base parlamentar que não deixou o impeachment prosperar. O governo Jair Bolsonaro vive o seu melhor momento no Congresso Nacional. Na Câmara dos Deputados a oposição não tem 130 votos. A gente não pode dourar a pílula. Esse é um processo político e jurídico. Não tem ninguém na rua, não tem manifestação. A pandemia é o assunto mais grave.
Qual foi o caminho escolhido?
Foi criar uma comissão com grandes juristas acima do bem e do mal, com pessoas de centro, esquerda e direita. O parecer foi entregue ontem (terça-feira, 13) é muito duro. Acusa o presidente homicídio, cita o Código Penal e verifica nos códigos internacionais a presença de crime contra a humanidade. É óbvio que não posso virar as costas a um parecer assinado por essas pessoas. Vou colocar para tramitar internamente na Ordem.
Quanto tempo esse trâmite demora até que a OAB decida se vai ou não pedir o impeachment?
De 30 a 60 dias. São 30 dias para ouvir as seccionais e depois preparar uma sessão do Conselho. O tema é delicado. Precisa ter direito de defesa.
Mas o sr. está cético em relação a essa possibilidade de impeachment?
No quadro político atual sou cético. Precisa de uma mudança na dinâmica da política.
O perfil ideológico da OAB mudou entre os governos Temer e Bolsonaro?
Acredito que não. A democracia está sendo testada de uma forma única na nossa história. Somos radicais democratas. O presidente da República tentou via Medida Provisória pegar os dados telefônicos de 220 milhões de brasileiros. Tem as milícias digitais, ataques à imprensa e ao Supremo. Eu fui duas vezes ao plenário do STF falar em defesa do Judiciário. Não há qualquer comparação com os períodos de Dilma e Temer. Eram duas pessoas que agiam dentro da lógica democrática. O governo atual não age dentro da lógica democrática.
Como avalia a relação entre STF e o governo federal?
O presidente da República vive de tensionar as relações. É parte da dinâmica do Jair Bolsonaro e do seu projeto transmitir para sua base radicalizada que a culpa é sempre de alguém que não deixou ele fazer. É muito fácil buscar culpados.
O STF extrapolou suas prerrogativas ao determinar a abertura de uma CPI no Senado?
Não. Já há jurisprudência nesse sentido. Não há nada de teratológico nessa decisão. Estranho nesse episódio e inaceitável é a reação do presidente, colocando o Judiciário na mesma esfera da política. Foi isso que ele fez naquele telefonema ao Kajuru: ‘Então eu quero o impeachment de dois ministros do Supremo’. Não há fato que justifique pedido de impeachment de ministro do Supremo, a não ser a vontade do presidente de deixar o STF subserviente, assim como são seus assessores mais próximos. Esse ministro da Justiça que virou AGU agora é uma vergonha para a advocacia. O André Mendonça é uma vergonha para a advocacia nacional. Colocou o Ministério da Justiça a serviço dos interesses paroquiais do projeto político do presidente Jair Bolsonaro. Os limites precisam ser dado pelas instituições. Bolsonaro quer o que a ditadura fez: diluiu o STF, cassou 3 ministros, ampliou o número para ter controle do Judiciário.
Como avalia a atuação do ministro Kassio Nunes Marques?
Como todo advogado, eu concordo e discordo das decisões do ministro Kassio. Ele está em outra esfera. Não é um braço político, mas um ministro do Supremo. Tem 26 anos pela frente para fazermos uma apreciação do legado político dele. O momento de decidir o perfil (do ministro do STF) é na sabatina.
Qual foi o legado da Lava Jato?
Foi um passo importante no combate à impunidade, que foi desviado pelo personalismo desse projeto. Houve um desvio autoritário onde os fins justificavam os meios.
Como o sr. se posiciona nesse debate em torno da Lei de Segurança Nacional?
É uma lei de transição que vem sendo alterada desde a ditadura. Alguns artigos são absolutamente incompatíveis com a democracia, como esse da ofensa ao chefe de poder. Sarney, Collor, FHC, Itamar, Lula, Dilma e Temer. Qual deles foi beneficiado com o silêncio daqueles que criticavam o governo? Nenhum. Se existe algo defendido no Brasil é a liberdade de crítica. A Lei de Segurança estava guardada no armário. Foi um erro. O Supremo já deveria ter afastado pelo menos alguns destes artigos. O ministro da Justiça passou a manejar a Lei de Segurança Nacional. É hoje uma lei de censura. O Congresso é o espaço para solucionar isso. Cabe ao Judiciário afastar alguns artigos teratológicos e incompatíveis com a Constituição de 1988, mas esse modelo de defesa do estado democrático cabe ao Congresso Nacional.
Como está o processo da OAB contra o grupo de advogados conservadores que usou o símbolo da ordem e ameaça processar quem falar mal do presidente?
Há uma ação para tirar do ar que ainda não tem decisão. Abrimos um processo disciplinar por captação indevida de clientela. Esse grupo (Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil) é uma fake news. É absolutamente insignificante. Tem 39 advogados, enquanto nós somos 1,3 milhão de advogados. Ele existe no campo do bolsonarismo, que é a rede social. São impulsionados pela milícia digital. Demorei para perceber isso: eles não têm representantes no mundo da política institucional da Ordem. O bolsonarismo odeia os princípios que a advocacia sempre professou, em defesa da democracia. Eu não tinha tomado nenhuma medida, mas eles publicaram um anúncio nas redes sociais dizendo que advogariam de graça contra quem fizesse críticas ao presidente. Usaram uma marca muito semelhante à da OAB, induzindo as pessoas ao erro.
Acredita que o ex-presidente Lula estará elegível em 2022?
Pelo que estou lendo, acredito que terá condições de elegibilidade.
Como avalia essa tentativa de formação de uma frente de centro para a disputa presidencial de 2022?
Não sou político. O que eu gostaria como presidente da Ordem é que esse campo democrático que vai direita à esquerda possa se organizar para fazer que o processo eleitoral de 2022 seja a reafirmação daquilo que construímos desde a redemocratização.
O sr. disse que não é político, mas foi procurado por partidos para se tornar um. Pretende disputar o governo do Rio de Janeiro?
Esse movimento não nasce dos meus olhos verdes, mas da importância que a OAB vem tendo nesse momento da história brasileira. Não sou político. Até o fim do meu mandato da Ordem no dia 31 janeiro de 2022 só trato de OAB. Meu destino pessoal não está resolvido. É uma decisão de vida que estou longe de tomar.
A Ordem tem algum projeto para ampliar o número de mulheres e negros?
Aprovamos hoje um provimento da nossa gestão para termos 30% de minorias raciais na composição das nossas chapas e paridade absoluta: 50% de mulheres, 50% de homens já em novembro. Só tivemos homens como presidentes do Conselho Federal.
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