BRASÍLIA - Documentos classificados como sigilosos nos estertores do governo Jair Bolsonaro e também os primeiros segredos da gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva estão sob a guarda da Casa Civil. A papelada reúne 549 relatórios, memorandos e informes, um acervo que põe à prova a transparência no governo federal e dá pistas do que a área de inteligência produziu antes e depois dos ataques golpistas de 8 de janeiro.
Da relação de documentos sob sigilo, 438 foram redigidos pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Desses, 255 ainda no governo Bolsonaro e 183 já na gestão do petista. Sob o véu do sigilo está, por exemplo, um relatório produzido no dia 27 de dezembro. Ele trata da “perspectiva de ação violenta por atores extremistas no contexto da posse presidencial”.
Três dias depois, um novo informe foi redigido falando de segurança institucional e das caravanas com destino a Brasília também para a posse de Lula. Há ainda um documento que fala de “indivíduos envolvidos em atos de violência” na capital federal. Os três papéis ganharam status de “reservados” no governo Bolsonaro, o que lhes garante uma proteção de cinco anos.
Sob a guarda da Casa Civil está ainda documento de 10 de janeiro deste ano, dois dias após os ataques golpistas aos prédios do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto. Trata da atuação do “movimento Brasil verde e amarelo” e da “participação de lideranças do agronegócio em atos antidemocráticos”. No dia 12, foi confeccionado um informe relatando o caso de um homem qualificado como “extremista violento” que teria publicado uma “lista de alvos jurados de morte”.
O acesso a esses relatórios é restrito a poucos servidores. Mas seu conteúdo também está ao alcance do ministro Rui Costa. Na montagem do governo Lula, coube à Casa Civil, assumir a tutela da Abin, setor do governo tradicionalmente comandado por um militar.
Nesta semana, o presidente vetou alterações à MP dos ministérios que tinha sido alterada por uma Câmara de Deputados em pé de guerra com a articulação política da gestão petista, com ministro da Casa Civil entre os alvos. O gesto de Lula assegurou a Rui Costa o controle das informações de inteligência da Abin.
A existência de tais documentos foi revelada pela própria Casa Civil de forma discreta, mas também inédita. Como manda a Lei de Acesso à Informação (LAI), todo dia 1º de junho os órgãos e ministérios do governo federal devem publicar o rol de informações classificadas e desclassificadas. A Casa Civil publicou sua lista às 19h30 daquele dia.
Ainda que os documentos tenham recebido o carimbo de “secreto” ou “reservado”, pela primeira vez se tem indicação do tema que consta nos papéis. O modelo adotado pela Casa Civil não é padrão no governo. Cada ministério divulga sua lista no formato que quer. Um dão pistas do que tratam os registros classificados como sigilosos, outros se limitam a um rol apenas de números, sem texto.
Essa papelada ficará guardada se o governo não mudar de ideia. O segredo dura 15 anos, no caso dos “secretos”, e 5 anos, no caso dos “reservados”.
A relação da Casa Civil, pela primeira vez, inclui o que foi produzido pela Abin, agora sob o comando da Pasta. A lista de todos os documentos sigilosos do ministério foi espremida para caber em apenas três páginas. A primeira vista mal dá para ler o que tem nela.
É preciso multiplicar por cinco o zoom para ver seu conteúdo e enxergar que no dia 9 de janeiro, há um relatório da Abin sobre a missão da Marinha do Irã no Brasil. Outro documento descreve uma suposta “rede de empresas de suspeito de atuar como operador financeiro para o PCC”.
Os documentos da Abin geralmente tratam da coleta de informações dispersas, algumas sem comprovação, mas várias baseadas em apuração dos agentes de inteligência que registram dados que podem servir de base a uma investigação ou mesmo apontar ações de segurança a serem adotadas. Se isso foi feito a partir dos documentos que estão em segredo é tema para a CPMI de 8 de janeiro que ainda engatinha no Congresso.
Os segredos hoje guardados e protegidos são um teste para o governo que prometeu transparência. Diante da notória barbárie promovida nos prédios dos Três Poderes no início do ano, cabe a pergunta se é preciso manter boa parte desses documentos realmente trancados por tanto tempo.
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