O Comando do Exército tem um esqueleto da gestão Bolsonaro para lidar: o que fazer com os coronéis que, nos estertores do governo do ex-capitão, elaboraram e fizeram divulgar uma carta ao então comandante da Força com um chamamento à ação. O documento foi entendido como pressão de oficiais para o Exército entrar em campo e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.
O levante missivista não deu certo. O petista botou a faixa, veio o 8 de Janeiro, a delação do coronel Mauro Cid e ficou-se sabendo que o documento dos oficiais apareceu num momento em que integrantes do governo Bolsonaro tinham no bolso um ato para prender adversários. O tal plano de golpe naufragou por falta de apoio nas Forças Armadas e por reiterados recados de países como os Estados Unidos de que não concordariam com ruptura na ordem democrática no Brasil.
Resumo da ópera: os tais coronéis tiveram que se explicar. Como manda o figurino, foram instaurados procedimentos internos. No total, pouco mais de 40 oficiais estavam envolvidos, apesar de um site dedicado ao meio militar ter informado que no dia da publicação da tal “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro” havia mais de 1 mil adesões.
O resultado dessa apuração é história que, até agora, o Comando da Força não quer contar por inteiro. Em depoimento à Polícia Federal, o ex-comandante da Força, general Freire Gomes, relatou que houve punições, mas não as detalhou. O Exército muito menos. O Estadão apresentou seguidos pedidos com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), todos negados. A Força não quis apontar qual punição teria sido aplicada.
No final do mês passado, depois de alegar que tudo era sigilo, informou que, dos 40 e poucos militares, 26 teriam sido punidos. Em nota, o Exército relata que esses foram “devidamente enquadrados à luz do regulamento Disciplinar do Exército (RDE), sendo eles 12 (doze) coronéis, 9 (nove) tenentes-coronéis, 1 (um) major, 3 (três) tenentes e 1 (um) sargento”.
A Força aponta ainda quatro coronéis, dois da ativa e dois da reserva, contra os quais haveria indícios de crime. E ficou-se acreditando que o Exército não passou a mão na cabeça de oficial algum e até puniu parte deles.
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E qual foi a punição já aplicada? O Exército, até agora, não conta. Há quem acredite que não conta porque algumas da punições aplicadas, se vierem a público, possam parecer apenas uma bronca de pai em filho que fez mera peraltice e não um enquadramento severo numa instituição que leva a sério o respeito a hierarquia.
Num dos mais recentes pedidos de esclarecimentos por meio da LAI, o Comando alegou que as sindicâncias originais, apesar de encerradas, deram origem a uma nova sindicância. Esta última, agora, também terminou. Mas foi sugerido abertura de um inquérito policial militar (IPM) contra os quatro coronéis e, por isso, continua tudo em segredo.
“Informa-se que a sindicância em comento resultou na instauração de um Inquérito Policial Militar (IPM), passando a fazer parte de um processo penal. Ressalta-se que a referida sindicância foi acostada aos autos do IPM. Nesse diapasão, o objeto do pedido inicial se trata de informação com restrição de acesso”, informou o Exército por e-mail.
O IPM inaugura apuração criminal que tramita na Justiça Militar. O comando das investigações está a cargo do general Adamo Colombo da Silveira. Por essas peças que o destino prega, o oficial chegou ao generalato em solenidade no dia 1º de dezembro de 2022. Três dias antes, a tal “Carta ao Comandante” era divulgada nas redes sociais.
Na solenidade daquele dia, o então chefe do Estado Maior do Exército, general Valério Stumpf, foi o único a discursar e falou duas vezes em respeito a hierarquia e disciplina. Bolsonaro estava presente, mas com cara de funeral. Naquele momento era, a contragosto, o futuro ex-presidente.
O registro de autuação do IPM é recente. Foi às 16h19 do dia 10 deste mês. O processo aponta um rumo inicial que pode projetar para uma apuração branda. Está grafado que o inquérito cuida de conduta enquadrada no artigo 166 do Código Penal Militar. Esse artigo trata de “publicação ou crítica indevida”. A pena prevista é dois meses a um ano de detenção. Por enquanto, não está no script tratar o caso como incitamento a revolta ou a aliciamento para prática de crime, conduta que o mesmo código estabelece pena de até quatro anos de reclusão.
É cedo ainda para saber que rumo o caso vai tomar. Até aqui o Exército preferiu deixar de lado a transparência para tratar tudo sob sigilo. O tema é melindroso para o Comando. Coronéis são a próxima geração de generais. Se há entre eles uma turma que, alega o direito de liberdade de expressão, para cobrar do comandante o que fazer ou deixar de fazer, isso prenuncia que há algo de frágil na tradição de que militar não sai por ai dando opinião sobre a vida política e cobrando do Exército que faço isso ou aquilo.
Punir quem saiu da linha na medida certa poderia ser o caminho. Mas sempre haverá os que viram no movimento dos coronéis uma ação legítima acreditando que era hora das Forças Armadas darem um basta na urna que não é confiável, no eleito que não deveria subir a rampa do Planalto e até no Tribunal que não se submeteu ao Ministério da Defesa. Felizmente, quem pensa assim não está dando as cartas atualmente.
Vale lembrar episódio conhecido no Exército. Nos idos de 1986, a mesma Força aplicou o Regimento Disciplinar para manter preso por 15 dias um certo capitão Bolsonaro que havia publicado texto em revista reclamando dos salários baixos na caserna.
Na época, o militar fora enquadrado no artigo 106 do Regimento que reprova aquele que autoriza, promove ou assina petição dirigida a autoridade civil sobre assunto da alçada da administração do Exército. O artigo logo acima, o 105, parece se encaixar também no caso dos coronéis de 2022. Ele proíbe que militares assinem documentos coletivos “com finalidade política, de reivindicação coletiva ou de crítica a autoridades constituídas ou às suas atividades”.
No caso de Bolsonaro, o Exército de então bem que tentou expulsá-lo dois anos depois por conduta completamente fora dos padrões militares. Mas a Justiça Militar, no caso o Superior Tribunal Militar, absolveu o capitão que àquela altura já tinha trocado a farda pela carreira política.
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