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Análise | O que revela a minuta da mensagem presidencial que Lula não mandou ao Congresso

Versão original do texto fala que economia do País deve crescer menos em 2024 e lembra aos deputados, de forma oblíqua, que governo abriu a porta para indicação de cargos

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Foto do author Francisco Leali
Atualização:

A Constituição manda: na abertura do ano Legislativo, o presidente da República é obrigado a enviar ao Congresso “mensagem e plano de governo” para falar da situação do País e solicitar “as providências que julgar necessárias”. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez isso e, no início de fevereiro, estava lá o ministro da Casa Civil, Rui Costa, entregando o calhamaço de 333 páginas com quase 110 mil palavras. A versão oficial do texto está disponível na internet, já a minuta do documento conta uma outra história que o Congresso não viu.

O que vai relatado abaixo é fruto de um pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI), respondido pela Pasta de Rui Costa, a quem coube redigir o texto.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou mensagem para abertura do ano legislativo em fevereiro Foto: Wilton Junior/Estadão

A versão original da mensagem começou a ser elaborada ainda em outubro do ano passado. A Casa Civil bateu à porta dos ministérios pedindo contribuições. Cada ministro deveria mandar o que fez em 2023 e o que espera para 2024. A equipe encarregada da tarefa pediu ajuda a jornalistas contratados pela Secretaria de Comunicação para azeitar a versão final. Um cronograma para entrega dos trechos de cada Pasta foi definido em planilha. Tudo certo e organizado.

Plano de trabalho para elaboração da mensagem presidencial de 2024 Foto: Reprodução/Estadão

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O acervo liberado pela Casa Civil dá conta que houve pelo menos duas rodadas de compilação dos textos enviados pelos ministérios: uma no dia 23 de dezembro de 2023 e outra em 24 de janeiro deste ano. A comparação dessas versões com o texto final revela como o governo Lula preferiu pintar um cenário mais cor de rosa do primeiro ano de gestão e ainda amenizar eventuais problemas para 2024.

A mensagem de Lula começa descrevendo o cenário macroeconômico, assunto para o Ministério da Fazenda, de Fernando Haddad. O texto que chegou da Fazenda em dezembro começava assim:

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Em 2023, o Brasil cresceu 3%, a despeito da maior incerteza no ambiente externo e da política monetária ainda contracionista.”

A versão original da Fazenda ainda alerta para o que virá em 2024: uma desaceleração do crescimento para 2,2%.

Trecho da versão original de relatório do Ministério da Fazenda para a mensagem presidencial de 2024 Foto: Reprodução/Estadão

Em janeiro, a equipe de Haddad atualizou sua contribuição e o tom inicial era ainda mais cauteloso:

O cenário internacional de 2023 foi bastante desafiador. As principais economias viram suas taxas de juros básicas subirem, o que causou sequentes turbulências nos mercados financeiros globais. Não bastasse o cenário de oscilação financeira, a economia chinesa também passou por incertezas importantes.”

O texto prossegue citando como exemplos os problemas financeiros relacionados ao financiamento imobiliário na China e à desaceleração das economias avançadas.

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Mas quem abrir as páginas iniciais da mensagem enviada por Lula ao Congresso vai encontrar um texto em tom bem diferente:

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“O ano de 2023 deverá fechar com crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2,92%, índice muito superior à projeção de 0,79%, presente no relatório Focus, do Banco Central do Brasil, do início de 2023. Ao mesmo tempo, a inflação caiu e fechou o ano dentro da meta, impactada principalmente pela queda no preço dos alimentos nos domicílios, serviços e bens industriais, beneficiando em especial as classes de menor renda”.

A versão final põe em destaque indicadores positivos que já estavam nos textos da Fazenda, mas perdidos em parágrafos lá no meio. Na mensagem oficial, sumiu a referência à desaceleração do crescimento para 2,2%, dado que já era público, mas foi limado da versão final que não tem notícia ruim. Também não há qualquer menção à crise na economia chinesa.

Na Casa Civil, o processo de produção da mensagem presidencial começou em 1º de outubro do ano passado e foi até 2 de fevereiro deste ano. Pelo menos um Pasta da Esplanada dos Ministérios, começou seu dever de casa mais cedo. O Ministério da Defesa já tinha se mobilizado para a tarefa antes mesmo de receber o pedido formal da Casa Civil. A equipe do ministro José Múcio enviou a todos os setores da Pasta, incluindo os comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica, pedido para que enviasse suas sugestões.

O pedido formal já vinha com orientação sobre os temas que o ministro gostaria de incluir considerando que a Defesa deveria ter “cerca de cinco páginas” na mensagem de mais de 300 do governo como um todo. A versão final acabou reservando nove páginas ao setor militar. O texto final preservou muito do que foi redigido pelas Forças Armadas, ao contrário do que houve com a Fazenda.

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Melhor não falar da indicação de cargos por políticos

A mensagem presidencial reservou um capítulo específico para falar da relação com o Parlamento. Afinal, o texto é direcionado justamente a deputados e senadores. A redação desse trecho ficou sob a responsabilidade do ministro Alexandre Padilha, das Relações Institucionais. Com o nome do ministro da articulação política meio atravessado na garganta do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e de outras lideranças, a equipe de Padilha preparou uma primeira versão do texto que tocava num tema sensível para congressistas: o direito de indicar pessoas para ocupar cargos no governo federal.

A versão de dezembro de 2023, abordava o tema de maneira oblíqua. Dizia que o governo federal, “alinhado aos anseios da sociedade civil”, passou a acompanhar de perto o processo de gestão de pessoas, “buscando a excelência na formação das equipes dos ministérios”. E emenda:

“Com intuito de aperfeiçoar a integração dos processos de nomeação e designação, a iniciativa busca ainda ampliar a interlocução entre agentes políticos e órgãos governamentais, promovendo compromisso com a eficiência nos procedimentos administrativos governamentais”.

Assim, de um jeito meio torto, estava ali registrado que o governo é aberto a conversar sobre cargos. Mas isso foi em dezembro. No mês seguinte, todas as referências ao tema foram suprimidas. O que está descrito acima não está na versão final enviada ao Congresso.

Saúde se esqueceu da dengue

Se para textos de Haddad e Padilha a ordem foi tirar, no caso do Ministério da Saúde foi preciso movimento contrário. A primeira versão enviada pela Pasta de Nísia Trindade não fazia nenhuma referência à dengue e necessidade de combate à doença que já virou epidemia em várias partes do País. Na versão, a dengue entrou com admissão de que tem “representado um desafio à saúde pública”.

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Já no trecho que coube ao Ministério da Educação um ajuste no texto fez turbinar os investimentos previstos para educação básica. A primeira versão anunciava que o governo iria, numa primeira etapa, investir R$ 9,4 bilhões para construção de 1 mil creches e pré-escolas em tempo integral e comprar 1.500 ônibus. Na versão final, caiu a referência a “primeira etapa”, e o anunciou de verbas para educação preferiu falar de tudo que está previsto a curto e médio prazo. Com isso, o valor subiu para R$ 21,4 bilhões. O número de creches pulou para 2,5 mil e o de ônibus para 3 mil.

Uísque com pastel, vinho com pão de queijo

O papelório que, por obrigação legal, o presidente Lula enviou ao Congresso é manifestação formal e veio no momento em que o Executivo cuida para não criar novos atritos com parlamentares. Na informalidade, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem feito o mesmo. Já serviu uísque com pastel para deputados e pão de queijo com vinho para senadores. Todos recebidos para um happy hour no Palácio da Alvorada onde as conversas parecem ter sido tão cor de rosa quanto a mensagem presidencial lida no plenário do Congresso no início de fevereiro.

Análise por Francisco Leali

Coordenador na Sucursal do Estadão em Brasília. Jornalista, Mestre em Comunicação e pesquisador especializado em transparência pública.

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