O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, ou simplesmente Xandão, como gosta de ironizar a turma do ex-presidente Jair Bolsonaro é, de novo, o sol em torno do qual giram todas as polêmicas, discussões, críticas e até xingamentos no mundo virtual e também no real. Nesta semana, seu nome apareceu numa cena incomum: um deputado de direita tentando emparedar o comandante do Exército, general Tomás Paiva, por nada fazer diante dos despachos e ordens do magistrado.
“O senhor tem medo de Alexandre de Moraes, mas qual outra explicação? O senhor é cúmplice? Espero que não”, desafiou o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS). Frente a frente com o comandante, o deputado cobrava reação das Forças Armadas às prisões de militares acusados de participar de uma tentativa de golpe para manter Bolsonaro no posto e impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.
Foi durante audiência na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara na última quarta-feira, 17. Estavam presentes, além de Tomás Paiva, os comandantes da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, da Aeronáutica, brigadeiro Marcelo Damasceno, e o ministro da Defesa, José Múcio.
Em outros tempos, a ousadia do parlante Van Hattem teria provocado a ira do oficial-general que exigiria retratação imediata ou deixaria a sala em protesto. Mas com o ministro José Múcio levantando a bandeira branca e convidando o adversário para conversar, os três comandantes preferiram adotar outro tom dando vazão até mesmo à ironia a ponto de o brigadeiro Damasceno se dirigir à comissão da Câmara nos seguintes termos: “Do ódio ao medo, eu saio daqui feliz. Achava que eu tinha medo da minha mulher, mas estou vendo que tenho que ter medo de mais gente do que da minha esposa”.
Um pouco antes da galhofa do almirante, Tomás Paiva indicou, ao responder ao deputado, que as Forças Armadas não devem atuar como o moderador dos Poderes como bolsonaristas desejaram. “Não cabe ao comandante do Exército, ao comandante da Marinha, ao comandante da Força Aérea se manifestar sobre decisão da Justiça. Não cabe. Podemos, através da cadeia de comando, fazê-lo”, afirmou o general.
Anotou ainda que já visitou os oficiais presos por ordem do mesmo Alexandre de Moraes e pediu esclarecimentos ao ministro do STF sobre dúvidas em relação a seus despachos. E dirigindo-se a Van Hattem, retrucou: “Temos vergonhas diferentes. A minha vergonha, por exemplo, é quando alguém não cumpre a ética militar. E eu estou aqui de cara lavada para falar para o senhor que, em sede de ética militar, eu nunca falei uma mentira para a minha tropa, para os meus soldados, para o meu pessoal. Tenho vergonha de, buscando popularidade, não cumprir a lei. Disto eu tenho vergonha: não cumprir uma decisão judicial”.
A declaração legalista do atual comandante do Exército demarca os limites da atuação militar. Deixa claro que não devem contar com ele para estimular acampamentos que preguem intervenção das Forças Armadas ou coisas do gênero. Sobre eventuais abusos de Moraes, mostra que não quer ser protagonista nessa discussão.
O ministro poupado por Tomás Paiva também preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e teve seus despachos sigilosos expostos por deputados republicanos nos Estados Unidos, material fornecido pelo X, antigo Twitter, hoje sob comando de Elon Musk. O episódio é mais um a colocar a conduta do magistrado sob o juízo público.
Na justiça eleitoral, sempre foi regra o juiz mandar tirar do ar propaganda de campanha que divulga mentira ou ofensa ao adversário. Quando isso ocorre, só quem reclama é o ofensor. O ofendido agradece. Mas Moraes vai além da esfera eleitoral. Atua no STF como relator de vários inquéritos e suas decisões, por vezes, avançam sobre o direito de discordar até mesmo com termos para lá de chulos de uns e outros. Houve um tempo em que tal comportamento era motivo para processo por crime contra honra na primeira instância judicial. Hoje, há casos em que firmou-se entendimento diverso: pregar a mentira pode ser equiparado a por em risco a democracia e cometer crime contra a paz pública.
Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão vale no sentido mais largo. É possível ir na frente da Casa Branca e tocar fogo na bandeira no país. Lá tem gente que defende até mesmo o direito proferir ideias fascistas em público. Mas invasões como a do Capitólio viraram processo judicial e os responsáveis estão respondendo por seus atos.
Em nossa terra, a liberdade de expressão tem sido encarada dentro de certos limites. O caso mais marcante foi deliberado pelo STF. Ao julgar o processo sobre um senhor que publicava livros contra judeus, a Corte estabeleceu que a conduta do editor era mesmo criminosa e definiu como regra que a liberdade de expressão é garantia constitucional, mas não é absoluta. “O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal”, está registrado na deliberação do Supremo na época.
Assim, tentar golpe ainda parece ser crime. Mas não gostar do STF e dos seus ministros, discordar de suas decisões deveriam ser condutas entendidas de modo diverso. E como fica o caso de quem diz que não confiar na urna eletrônica? É mero exercício de tirar partido da ignorância alheia ou um estágio de quem está preparando a sala para puxar o tapete do eleito?
Sabe-se que durante a disputa eleitoral, o TSE e os demais tribunais têm os instrumentos para conter o candidato que abusa do direito de falar aos votantes e induzi-los ao erro. Ele corre o risco de ver sua propaganda suprimida e até mesmo perder o direito de disputar o pleito.
Já fora da eleição, o mercado de ideias, ainda que tenha virado, como diz o professor Wilson Gomes, “uma feira superlotada, em que todos berram e quase ninguém ouve ou entende”, segue sendo o lugar aberto à qualquer pregação. As que transbordam para a prática de crimes, convencionou-se, devem levar à prisão. Já o palavrório emanado por aqueles que divergem deveria ser só palavrório mesmo. O problema é que anda difícil falar em ouvir o diverso quando o ódio é alimentado e passa a imperar.
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