O ex-presidente Jair Bolsonaro está como bicho acuado. O relatório de quase 900 páginas da Polícia Federal com o resumo das investigações até aqui sobre a tentativa de golpe de Estado expõe como o chefe do Poder Executivo não conseguiu impor suas ordens a ninguém. Ainda que o plano tenha ficado só no plano, os fatos relatados pela PF indicam que uma trupe de militares rascunhou ideias, pegou viaturas e foi às ruas só esperando um cumpra-se para apertar o gatilho.
Nos quatros anos de gestão, principalmente nos momentos mais críticos, o ex-capitão verbalizava que tinha a seu lado o “seu Exército” e as “suas Forças Armadas”. Na hora H do dia D, a tropa não saiu do quartel. O Alto Comando não aprovou, o comandante do Exército disse não. O então presidente e os seus, de fato, ficaram a pé.
Mas não foi só isso. Como o próprio Bolsonaro declarou dia desses, não tinha como dar golpe por conta do “after day”. O dia seguinte mencionado na língua inglesa é a remição mais direta à obstrução dos Estados Unidos, sob a presidência do democrata Joe Biden, a qualquer tentativa de não se respeitar o resultado das eleições no Brasil.
Ou seja, Bolsonaro e os seus tinham os planos, as minutas, mas não tinham quem validasse seus atos e assegurasse, no dia seguinte, que o caminho de todos não seria a prisão. Esse destino parece indicado agora no arrazoado da Polícia Federal.
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As principais testemunhas e provas contra o ex-presidente vêm de oficiais militares. Há aqueles como o então comandante do Exército que deixou claro que houve conversas sobre impedir a posse do petista Luiz Inácio Lula da Silva. Ou outros que, em mensagens e arquivos digitais, deixaram o rastro do planejamento feito para manter o mito na cadeira de presidente.
O relatório da PF tem, no entanto, algo incomum. Geralmente, os protagonistas do relato de uma investigação são os investigados. É sobre eles que os encarregados do inquérito devem falar ao resumir o relatório da apuração. O documento tem algo em torno de 137,3 mil palavras. Bolsonaro aparece 521 vezes e Mauro Cid, o delator, mais de 400. Até aí normalíssimo.
Ocorre que o mesmo texto tem Moraes citado 209 vezes. E as referências não só sobre despachos do relator vinculados ao inquérito, o que seria de esperar. Moraes aparece também como alvo dos planos e, portanto, potencial vítima deles. Levanta-se então a hipótese jurídica de que seria melhor não ser o ministro o relator a cuidar do caso quando chegar a hora de a apuração criminal virar um processo que pode levar os hoje indiciados à prisão.
Deve-se ponderar que há uma diferença desse processo com aquele em que Moraes foi alvo de gritos e xingamentos no aeroporto de Roma e seus parentes também. Ali, era diretamente a vítima de uma ofensa e, portanto, não lhe caberia o lugar de juiz do caso. Já na apuração golpista, o magistrado tem poder para quebrar sigilos, ordenar buscas e coisas do gênero. No mundo político, no entanto, quando Moraes avança na direção de parlamentares da oposição que esbravejam contra o STF e seus ministros, a atuação de juiz é questionada. Moraes não precisaria de tanto. O processo já parece ter reunido provas suficientes para definir-se o grau de culpabilidade de cada um, seja do ex-presidente, seja dos fardados que não aceitavam o resultado do voto.
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