De uma hora para outra, aprovar limites ao aborto passou a ser a agenda mais importante do País. Evangélicos e bolsonaristas juntos e misturados, com a complacência do presidente da Câmara, Arthur Lira, trouxeram o tema para ordem do dia. Tudo sob alegação de que queriam dar uma resposta ao Supremo Tribunal Federal (STF). O movimento pode, no entanto, ser entendido como uma estratégia calculada: tirar proveito de que o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva não consegue dar as cartas no Legislativo.
Como já é conhecido, o grupo acima levou à votação requerimento para acelerar a tramitação de um texto que equipara interrupção de gravidez após 22 semanas de gestão ao crime de homicídio. A urgência foi aprovada. Veio, então, a gritaria do outro lado e a revelação de que o projeto prevê mais tempo de cadeia para vítima de estupro do que ao estuprador. O tema voltou para gaveta com Lira indicando que a partir de agora as urgências precisam ser digeridas previamente pelo Parlamento.
Na última quarta-feira, coube a senadora Soraya Thronicke chamar a atenção para um ponto diverso: onde estava toda a turma antiaborto durante o governo que antecedeu Lula? “O que mais nos espanta é que, no mandato do presidente Bolsonaro, esta bancada jamais falou do assunto, porque teria certeza que seria sancionado. Por que, agora? Quatro anos para aprovar isso! Por que agora? A vida não importava? Quatro anos e a vida não importava?”, indagou a senadora.
A questão que Thronicke propõe abre a porta para tentar entender a política e seus meandros. Entre 2019 e 2022, até que foram apresentados projetos relacionados a aborto no País. Uma pesquisa indica a existência de pelo menos 27. São iniciativas para ampliar penas ou inibir a interrupção da gravidez nos casos já previstos em lei. Todos os projetos eram de integrantes da bancada do governo Bolsonaro. Alguns frequentavam o Planalto com assiduidade. Tinham, portanto, toda a simpatia do governante. Mas nenhum andou.
Até fevereiro de 2021, o presidente da Câmara era Rodrigo Maia. Depois disso, Arthur Lira. Se com Maia, os bolsonaristas não dominavam a pauta de votações, com Lira passaram a ter ali um aliado. Mesmo assim, nenhuma das 27 propostas chegou no plenário. Dessas, dez foram apresentadas em 2019, cinco no ano seguinte, seis em 2021 e outras seis em 2022.
As propostas não tiveram sequer votação em comissões temáticas. Requerimento para acelerar a votação no plenário da Câmara? Nada aprovado.
Na lista dos 27 projetos tem até um do próprio governo Bolsonaro. A proposta tentava criar o “Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto”, a ser comemorado em 8 de outubro. Acabou apensada a outro projeto e foi para a gaveta.
Com Lula no poder, o mesmo grupo entendeu que era hora de provocar o petista. Uma proposta que tenta frear o aborto não poderia ter uma defesa fácil para o presidente e seus aliados que andam preocupados com a rejeição entre o eleitorado mais religioso. Junte-se a isso o fator Lira. Com Bolsonaro, o atual presidente da Câmara não deu asas aos projetos antiaborto. Agora, concordou em por o tema para votar. Ele tem pela frente uma disputa pela presidência da Casa legislativa, cargo que pode ter um aliado seu se a bancada conservadora continuar o vendo como um aliado.
O alarido formado em torno do projeto diante das incongruências que propõe foi suficiente para uma marcha ré na pressa de votar. Governistas conseguiram inverter a lógica do debate mostrando simplesmente que, no afã de reduzir as possibilidades do aborto legal, o texto manda para cadeia vítimas de estupro com pena maior do que a prevista para o estuprador.
O projeto ainda coloca os religiosos que nele votam diante de uma posição contraditória em relação a seu discurso de respeito à vida. Essa turma topa só criminalizar aborto após 22 semanas de gestação. Só que são os mesmos a dizer o tempo todo que a vida começa lá atrás na fecundação do óvulo. Ou seja, concordam em mudar só metade da história, liberando o aborto até a 21ª semana em caso de estupro, risco de vida da mulher e inviabilidade do feto.
A confusão criada pela inclusão do texto na agenda de votações do Legislativo já deu à oposição um ponto. Fez Lula expor suas fragilidades. Primeiro, ficou em silêncio. Depois condenou a iniciativa, mas precisou repetir que é contra o aborto indiscriminadamente. Por último, deu de presente para oposição uma fala mal posta ao transferir a monstruosidade do estupro do criminoso para o feto fruto de um crime.