Fundos de pensão: réus por gestão temerária atuam por proposta do governo Lula que abranda punições

Alteração de normas do Conselho Monetário Nacional (CMN) tem apoio de gestores denunciados na Operação Greenfield; Previc defende que seus diretores estão ‘devidamente habilitados’ para exercerem suas funções; entidade do setor afirma que seu executivo não foi condenado

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Foto do author Gustavo Côrtes
Atualização:

BRASÍLIA - Acusados por rombos milionários aos fundos de pensão, integrantes do governo Lula e o diretor de uma associação atuam para aprovar uma proposta em análise no Ministério da Fazenda que afrouxa normas formuladas para coibir fraudes, punir ilícitos e limitar investimentos de alto risco em planos de aposentadoria. Se bem sucedida, a iniciativa pode dificultar futuras punições a atos semelhantes àqueles denunciados pela Operação Greenfield, braço da Lava Jato que apurou desvios em entidades de previdência. Eles, por sua vez, afirmam que as medidas são necessárias para cumprir metas atuariais e ter segurança para investir sem serem “criminalizados”.

A Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) elaborou um documento em que sugere a alteração da Resolução 4.994 do Conselho Monetário Nacional (CMN), criada com o objetivo de evitar a reincidência das irregularidades descobertas pela força-tarefa. Dentre as mudanças, a minuta indica que agentes sem poder deliberativo na aprovação de aplicações de capital, como integrantes de comitês e consultores externos, não sejam mais sujeitos a punição por pareceres favoráveis a investimentos lesivos às finanças dos participantes. Também aumenta limites para alocação de recursos garantidores em imóveis e nos fundos de investimento em participações, os FIPs, que estiveram no centro de desvios investigados pelo Ministério público federal (MPF).

Buscas e apreensões na Operação Greenfield Foto: Werther Santana/Estadão

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Três dos principais articuladores da atualização das regras respondem por rombos causados aos fundos de pensão ou tiveram imbróglios jurídicos relacionados à norma. O diretor de normas da Previc, Alcinei Cardoso Rodrigues, que atuou na formulação do novo texto, foi réu por aprovar, sem análise de riscos, aportes no valor de R$ 85 milhões no Fundo de Investimento em Participações Global Equity Properties (FIP GEP) quando ocupou cargos de direção na entidade. O caso foi denunciado pelo MPF na Greenfield. Após a publicação da reportagem, a Previc informou que sua ação foi trancada em fevereiro por decisão do desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

O diretor de fiscalização, João Paulo de Souza responde a processo na Câmara de recursos da Previdência Complementar (CRPC) por colocar em risco o pagamento a beneficiários do fundo de aposentadoria CELOS e descumprir resolução do CMN na aplicação de reservas garantidoras. O processo é de caráter administrativo e pode resultar em multa e afastamento temporário da gestão de fundos.

Em ofício enviado à Fazenda em julho, a autarquia informou que as propostas da minuta foram chanceladas por três entidades do mercado de previdência. Uma delas é a Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão e de Beneficiários de Autogestão em Saúde (Anapar), cujo ex-presidente e atual diretor de Administração e Finanças, Antonio Braulio de Carvalho, também participou da aprovação dos aportes no FIP GEP entre 2008 e 2014, período em que foi presidente e diretor de planejamento e controladoria do Funcef.

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Procurada, a Previc afirmou que todos os seus diretores estão “devidamente habilitados” para o exercício pleno da função pública. “Eventual multa de algum diretor não o desabilita, ainda que no caso em questão esteja recorrendo à justiça, em observância ao contraditório e ao devido processo legal, cuja base possui farta jurisprudência.” A Anapar afirma que Antonio Braulio de Carvalho não foi condenado e tem enfrentado restrições ao direito de ampla defesa.

Diretor da Anapar é visitante frequente da Previc e do Ministério da Previdência

Desde o início do governo Lula, Antonio Braulio de Carvalho já visitou 31 vezes as dependências da Previc e do Ministério da Previdência. Ao todo, representantes da Anapar foram recebidos 84 vezes nos dois órgãos neste mesmo período.

O MPF o acusa de contrariar a área jurídica do Funcef, descumprir processos internos de aprovação de investimentos, ignorar alertas de riscos emitidos em pareceres técnicos e basear decisões em estudo de precificação deficiente. Ele deu aval à compra de cotas do FIP OAS Empreendimentos com base em laudo falho da consultoria Deloitte Touche Tohmatsu, que recebeu R$ 600 mil pelo serviço.

Ex-presidente da OAS, Léo Pinheiro foi alvo de condução coercitiva da operação Greeenfield.  Foto: Werther Santana/Estadão

Uma apuração da Previc concluiu à época que os preços de ativos da empreiteira foram superestimados devido à contabilização de recursos que estavam em conta corrente na data em que o laudo foi produzido, mas não quando o negócio foi fechado. Assim, a OAS teria recebido à época R$ 189 milhões a mais do que deveria.

Por meio de nota, a empreiteira negou as acusações. “Não existiram fraudes ou irregularidades na aquisição de cotas do FIP OAS pela Funcef. Tal investimento foi precedido de ampla e transparente due diligence e em laudo contratado pela própria Funcef junto a consultoria Deloitte Touche Tohmatsu, uma das maiores e mais renomadas empresas deste setor no mundo.”

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A Previc afirmou que não tolera ou compactua com irregularidades. “Para isso, faz seu trabalho a partir da supervisão baseada em riscos das operações realizadas nos planos de benefícios administrados pelos fundos de pensão e licencia previamente os contratos, habilita os dirigentes, normatiza, orienta e, se necessário, aplica o regime administrativo sancionador, por meio de advertência, multas, suspensão e inabilitação”

Também justificou a proposta para que somente agentes com poder decisório possam responder por desvios. “Os membros de conselho consultivo ou os empregados das fundações não têm essa atribuição (decisória) e, portanto, não é justo que sejam punidos pelo que não decidiram. É algo muito simples e representa um princípio do direito administrativo. Obviamente, se houver algum tipo de dolo, fraude ou erro grosseiro, isso não se aplica”.

Procurada, a Fazenda informou que “está realizando os estudos necessários para submeter o assunto à apreciação do Conselho Monetário Nacional (CMN) no momento que julgar oportuno”. O CMN reúne os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.

MPF denunciou agentes sem poder deliberativo

As irregularidades apontadas pelo MPF na aquisição do FIP OAS ocorreram justamente na etapa de formulação dos pareceres e envolveu agentes sem poder deliberativo, como a consultora Deloitte, que pela proposta da Previc, não poderiam mais ser responsabilizados. É o caso também da compra de cotas do FIP Florestal pelo Funcef e pela Petros, dos funcionários da Petrobras.

O fundador do Grupo J&F Joesley Batista. Foto: Ayrton Vignola/AE

O fundo tinha como finalidade investir na Eldorado Brasil Celulose S/A, controlada pelo Grupo J&F Investimentos, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. As entidades aportaram R$ 272 milhões cada uma para adquirirem, juntas, quase metade do negócio, com base em parecer que, segundo os investigadores, superestimou o valor dos ativos. A empresa nega as irregularidades.

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Especialista aponta risco de benefício a réus por irregularidades

Segundo o professor de direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV Direito SP) Luís André Azevedo, a alteração pleiteada pela Previc pode abrir caminho para que os réus por fraude e gestão temerária sejam beneficiados em processos já em curso, embora considere frágeis os argumentos para isso.

“A mudança pode abrir um precedente para que os réus no âmbito da Greenfield peçam a aplicação retroativa de normas novas que os beneficiam. Esse é um princípio do direito penal. A minha visão é de que isso não poderia acontecer neste caso, porque a resolução trata do direito regulatório e, por isso, deve privilegiar o interesse da coletividade em detrimento da presunção de inocência de quem é acusado de um crime.”

O jurista também critica a influência de ex-gestores acusados de irregularidades na formulação de normas. “É um sinal da captura do órgão regulador pelos regulados.”

A autarquia, no entanto, rechaça a hipótese de que a alteração da resolução sirva para absolver gestores em ações penais em curso. “A aplicação é para frente, a partir da vigência da nova resolução. E, mesmo nesses casos, se forem investidos de poder decisório, serão passíveis de responsabilização. As novas regras de investimentos não regem o passado, mas, sim, o futuro das diretrizes de aplicação financeira das entidades fechadas de previdência complementar. Portanto, não retroagem.”

Pressão para acelerar aprovação de novo texto

Trocas de documentos entre Previc e Fazenda mostram a pressão para acelerar a aprovação no CMN. No mesmo ofício em que destaca o apoio da Anapar à minuta, o diretor-presidente da autarquia, Ricardo Pena Pinheiro, diz que a pasta descumpriu um acordo. Segundo ele, o Subsecretário de Reformas Microeconômicas, Vinicius Ratton Brandi, e o superintendente da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), Alessandro Octaviani, haviam concordado em levar o tema a votação em uma reunião do conselho realizada no fim de junho, o que não ocorreu.

Outro indício da pressa da autarquia em aprovar sua minuta é um parecer assinado por Alcinei Cardoso Rodrigues que conclui não ser necessário a análise de impacto regulatório, que prevê possíveis repercussões das novas normas no mercado. No documento, contudo, ele mesmo reconhece que a palavra final sobre a realização ou não do estudo cabe à Fazenda.

Ao Estadão, a Petros disse que “considera essencial o estabelecimento de um arcabouço jurídico e institucional que confira segurança para a tomada de decisão das instâncias deliberativas das fundações”. O Funcef afirmou estar alinhado a outras associações “no interesse pela atualização da resolução em referência, visando dar mais garantias e segurança aos investimentos”.

Ato regular de gestão

A minuta elaborada pela Previc também incorpora o conceito de “ato regular de gestão”, segundo o qual é preciso pressupor a boa-fé dos gestores. Em agosto do ano passado, uma resolução incluiu esta norma no regramento interno do órgão, que julga processos administrativos contra gestores de fundos de pensão. Na prática, é preciso agora comprovar que investimentos lesivos às finanças dos participantes foram feitos com a intenção de prejudicá-los.

Por enquanto, esse princípio vale apenas para sanções aplicadas pela autarquia, como multas e afastamento de gestores por tempo limitado. Mas se passar a figurar em resolução do CMN, poderia ter efeito também em processos criminais na Justiça.

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Chancelado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o ato regular de gestão foi criticado por procuradores federais que atuam na fiscalização da Previc. Em depoimento a uma investigação da Procuradoria Geral Federal que culminou no afastamento do agora ex-procurador-chefe do órgão Danilo Martins, eles afirmam que a norma dificulta a punição administrativa contra gestores acusados de irregularidades e extrapola as competências da autarquia.

A Previc, como órgão regulador, pode somente emitir instruções que disciplinam regras já existentes, mas não criar novas normas, uma função do Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC). Na visão dos procuradores, o órgão promoveu uma inovação legislativa.

Danilo Martins, autor da resolução, foi afastado de forma cautelar por indícios de conflito de interesses, conforme revelou o Estadão.

A Previc disse, por meio de nota, que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já aplica o ato regular de gestão há mais de 15 anos. “Está no arcabouço jurídico do país e é considerada uma boa prática mundialmente.

Reguladores e gestores adotam discurso crítico à Greenfield

Desde o início do governo Lula, tanto reguladores quanto representantes de associações ligadas ao mercado da previdência complementar têm reforçado o discurso de que houve excessos no passado e pregam agora um freio nas punições.

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O ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto em depoimento no Senado Foto: José Cruz/Agência Brasil

Em novembro de 2023, Alcinei Cardoso Rodrigues, Antonio Braulio e Jair Pedro Ferreira, atual diretor executivo do Funcef e vice-presidente da Anapar, estiveram em um seminário organizado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) sobre fundos de pensão.

O discurso de abertura coube ao ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, acusado de fraudes. Ele aproveitou a oportunidade para se defender das acusações de que é alvo na Greenfield. Naquela oportunidade, Ferreira fez elogios ao dirigente petista e defendeu ex-gestores denunciados pelo Ministério Público.

A Previc afirma que participou de “vários encontros públicos, inclusive noticiados pela imprensa, onde também estavam os integrantes das associações do setor de previdência complementar, assim como representantes das entidades abertas de previdência complementar e do mercado de capitais, num debate público para aperfeiçoar as regras de investimentos para as entidades de previdência”.