BRASÍLIA - O julgamento na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que tornou réus o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras sete pessoas por tentativa de golpe de Estado expôs um conflito latente entre o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, e o ministro Luiz Fux. Os dois indicaram ter posicionamentos diferentes sobre procedimentos que devem orientar a análise dos casos.
Com o chamado inquérito do golpe convertido em ação penal, Fux sinalizou que deve atuar como uma espécie de “revisor informal” da relatoria de Moraes por meio do acompanhamento de depoimentos e da disputa da dosimetria das penas que eventualmente venham a ser propostas pelo magistrado.

A figura do revisor ficou nacionalmente conhecida durante o julgamento do mensalão. Quando o caso começou a ser julgado nos idos de 2012, o relator do processo, Joaquim Barbosa, de perfil punitivista, tinha como revisor das suas ações o ministro Ricardo Lewandowski, atual ministro da Justiça do governo Lula, cujo perfil é garantista — ou, em outras palavras, defensor de penas mais brandas para os condenados.
Os diversos embates públicos entre Barbosa e Lewandowski marcaram a relação entre relator e revisor no julgamento de ações penais no STF. Durante a análise de recursos apresentados pelos condenados do mensalão, Barbosa acusou o colega de fazer “chicana”, que no jargão jurídico significa dificultar o andamento do processo.
O papel do revisor está descrito no Regimento Interno do STF. Cabe ao ministro que o exerce sugerir medidas que tenham sido omitidas e confirmar, completar ou retificar o relatório apresentado pelo ministro titular da ação.
Em dezembro de 2023, porém, a Corte aprovou uma emenda regimental que extinguiu a figura do revisor em processos penais. Os ministros avaliaram que o revisor não contribuía muito e atrapalhava a celeridade do processo. A extinção da figura do revisor foi no mesmo julgamento que levou as ações penais, como as que envolve o Bolsonaro e os sete outros réus, para as turmas.

Pelo regimento do STF, caberia ao ministro Flávio Dino ser o revisor das ações sobre a organização criminosa que teria tentado um golpe de Estado em 2022. Na ausência dessa figura, Fux tomou para si o papel de contestar alguns procedimentos e indicou que deve acompanhar a atuação do colega na condução das ações penais.
Durante a análise das questões preliminares na última terça-feira, 25, Fux foi o único ministro a divergir do posicionamento de Moraes a favor do julgamento de Bolsonaro e dos demais denunciados na Primeira Turma em vez do plenário do STF.
“Ou estamos julgando pessoas que não exercem mais função pública, e não tem foro no Supremo, ou estamos julgando pessoas que têm essa prerrogativa, e o local correto seria efetivamente o plenário do STF”, argumentou Fux.
Numa demonstração de descontentamento com os argumentos de Moraes, o ministro afirmou que “a matéria (do local em que os réus deveriam ser julgados) não é tão pacífica assim”, como o colega sugeriu.

Em outro momento do julgamento, Fux apontou problemas na delação premiada firmada pela Polícia Federal (PF) com o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, com autorização de Moraes.
O ministro acompanhou o posicionamento dos colegas contra a anulação da colaboração, mas fez questão de apontar fragilidades no procedimento como o fato de Cid ter dado “nove delações cada hora acrescentando uma novidade”.
“Vejo com muita reserva nove delações de um mesmo colaborador, cada hora acrescentando uma novidade”, disse Fux. O ministro ainda afirmou que vai acompanhar os novos depoimentos que serão prestados por Cid na fase de instrução das ações penais com o objetivo de analisar a legalidade e a efetividade da delação do militar.
Em mais um movimento como “revisor” das medidas idealizadas por Moraes, o magistrado demonstrou preocupação com a dosimetria das penas impostas aos condenados pelos ataques golpistas de 8 de Janeiro de 2023 e se manifestou a favor da modificação de algumas condenações.
Segundo Fux, o STF julgou “sob violenta emoção” réus como a manicure Débora Rodrigues dos Santos, que pichou a frase “perdeu, mané” na estátua “A Justiça” e tem pena estimada de 14 anos de prisão. O ministro afirmou que vai pedir a revisão da pena que deve ser imposta à ré.
O julgamento de Débora foi suspenso na última terça-feira, 25, a pedido de Fux, num movimento que causou surpresa nos demais ministros. “Eu tenho que fazer uma revisão dessa dosimetria, porque se a dosimetria é inaugurada pelo legislador, a fixação da pena é do magistrado”, disse.
“O ministro Alexandre, em seu trabalho, explicitou a conduta de cada uma das pessoas. E eu confesso que em determinadas ocasiões eu me deparo com uma pena exacerbada. E foi por essa razão, dando satisfação à vossa excelência, que eu pedi vista (mais tempo para análise) desse caso. Eu quero analisar o contexto em que essa senhora se encontrava”, prosseguiu.
Para Matheus Falivene, que é doutor em processo penal pela Universidade de São Paulo (USP), não há impeditivos legais para que Fux exerça funções que antes eram conferidas ao revisor, como apontar omissões e ser mais atuante no acompanhamento do processo. Ele avalia que, pelos elementos demonstrados no recebimento da denúncia, o ministro já passou a exercer esse papel.
“Todos eles são iguais e, em tese, têm os mesmos direitos de acompanhar e atuar no caso. Ele pode acompanhar a colaboração (premiada de Mauro Cid), os atos de instrução, e pode não deixar tudo apenas com o Alexandre de Moraes, como qualquer outro ministro pode participar também”, afirmou.
“Todos os ministros são revisores em potencial, porque todos têm acesso ao processo eletrônico”, disse. “A divergência é importante para o debate porque traz luz para as questões jurídicas que dificilmente são certezas. É importante que ele faça isso até por respeito aos direitos e garantias dos acusados e ao devido processo legal”, completou.
Professor de processo penal na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), Gustavo Badaró frisa que não há impeditivos para que Fux participe do processo de instrução, como na tomada de depoimentos das testemunhas apontadas pelos réus. O jurista pondera, no entanto, que o ministro não “fiscalizaria” Moraes uma vez que apenas o relator do processo pode tomar determinadas decisões monocráticas.
“Um dos objetivos do colegiado é que possa haver essa divergência caso esteja algum ocorrendo algum erro individual. Isso é uma virtude do colegiado”, avaliou.
Com esses embates, Fux se apresenta como o ministro que fará contrapontos a Moraes na Primeira Turma. O presidente do colegiado, Cristiano Zanin, adotou postura mais comedida, com ponderações pontuais, e deu votos rápidos durante o julgamento de admissibilidade da ação. Já Cármen Lúcia e Flávio Dino endossaram, sem reparos, a condução do processo pelo colega.