Maria Eduarda Raymundo, Analista de Relações Governamentais da Flixbus Brasil, Graduanda em Administração Pública pela FGV EAESP
Andrea Mustafa, Diretora de Relações Governamentais da Flixbus Brasil. Mestre em Gestão e Políticas Públicas pela FGV. MBA na FIA/Université Pierre Mendès (Grenoble/France) em Comércio Internacional. Bacharel em Direito pela USP
Edson Lopes, Diretor Geral da Flixbus. Graduado em Engenharia pela École Centrale Paris e pela Universidade Federal do Ceará
O transporte rodoviário coletivo de passageiros é um setor essencial para a mobilidade em todo o mundo, movimentando anualmente milhões de pessoas entre municípios, estados e países. A abertura do mercado rodoviário já foi experenciada por diversos países, que se tornaram exemplos positivos de como o transporte de passageiros pode contribuir para a democratização do acesso e do direito à mobilidade e à ampliação da concorrência e do número de operadores. Ao mesmo tempo, também é importante destacar os desafios de países que ainda não optaram pela modernização ou que estão atrasando sua implementação. A União Europeia tem atuado em conjunto em direção à abertura, mas alguns países continuam resistentes, o que leva a disparidades entre a qualidade e a acessibilidade do transporte rodoviário pelo continente.
Aprofundando no caso europeu, a Itália foi o primeiro país a começar a abertura de mercado para a operação de ônibus de longa distância, ainda em 2005, mas somente em 2013 a transição para o regime de autorizações foi concluída, incluindo linhas interestaduais e intermunicipais. Na Alemanha, o processo de abertura começou em 2013, com a Lei Alemã de Transporte de Passageiros (PBefG), que permitia operações de média e longa distância a partir de autorizações, além de ajustar a concorrência com o transporte ferroviário, até então praticamente proibida. A França, por sua vez, possuía uma legislação ainda mais rígida até 2015, que não permitia viagens internas de ônibus sob nenhum regime, num incentivo total às ferrovias, somente nesse ano, foi permitida a operação de linhas rodoviárias, já no regime de autorizações.
Há diferenças técnicas na operacionalização do modelo de autorizações nos três países, mas o benefício é bastante similar e afeta uma camada semelhante da população: a mais vulnerável. Na Alemanha e na Itália, 60% dos viajantes de ônibus ganham um salário-mínimo ou menos, e mais de 40%, em cada país, são jovens entre 16 e 35 anos [1], demonstrando o potencial democratizante da abertura do mercado de transporte rodoviário. Na Alemanha, inclusive, 13% dos passageiros declaram que não viajariam se não houvesse ocorrido a mudança regulatória e a consequente redução de preços do transporte rodoviário. Também no país, desde 2012, os preços das passagens de ônibus interurbanos de longa distância tiveram uma queda significativa, ficando abaixo dos níveis anteriores à mudança regulatória- apesar da inflação e das mudanças no preço dos combustíveis- assim como a oferta e tarifa de passagens com desconto e/ou gratuidades, que não foram prejudicadas pela flexibilização.[2]
Na França, por sua vez, os preços competitivos do transporte de passageiros de baixo custo permitiram que uma grande parte da população que antes não viajava ou viajava pouco, tivesse acesso ao transporte de longa distância.[3] Observando o perfil demográfico dos passageiros de ônibus de longa distância, mais de 1/5 têm menos de 25 anos e 17% dos passageiros, cerca de 1,2 milhão, não teriam viajado se não fossem os serviços de ônibus de longa distância adicionais introduzidos pela abertura do mercado de 2015. Além disso, a pesquisa mostrou que o fator decisivo para a maioria dos passageiros ao escolher um meio de transporte é o preço.
A Espanha, por sua vez, foi na contramão da União Europeia e manteve seu mercado rigidamente fechado, usando de um sistema de concessões, cofinanciadas pela operadora e o governo, no qual as linhas são divididas entre rentáveis e não rentáveis pelo Ministério e as concessões devem abarcar ambas, de forma a balancear os gastos.Além de não permitir a competitividade e a escolha dos passageiros, atualmente, o preço pago por usuários das chamadas linhas rentáveis é mais alto que o praticado em mercados abertos de outros países, pois essas são usadas para cobrir o custo adicional das linhas sem viabilidade econômica. Quando comparando linhas entre as 10 cidades mais populosas do país, o valor da tarifa por km na Espanha é 36% maior que na Itália, 23% maior que as tarifas francesas e alemãs e 17% acima da praticada na Suécia, todos países onde a concorrência é permitida e o regime de autorizações foi adotado.[4]
As tarifas altas têm impactado diretamente o acesso e número de passageiros que utilizam o transporte rodoviário. Entre 2009 e 2019, o setor foi de 57 milhões de passageiros para 33,25 milhões, uma queda de quase 1/3. [5] Além da perda clara do lucro das empresas, é importante salientar que nem todos que abandonam os ônibus são absorvidos por outros meios de transporte, ferroviário ou aéreo por exemplo, dado a cobertura restrita desses nas cidades menores, reduzindo o acesso à mobilidade de uma parte expressiva da população.
A discrepância na qualidade e preço dos serviços na Espanha tem atingido um nível tão crítico, quando comparado com seus vizinhos europeus que prosseguiram com a democratização, que a Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia (CNMC), uma espécie de autarquia que dá suporte a estudos econômicos do governo espanhol, lançou um longo estudo, com uma análise aprofundada do sistema de concessões espanhol, dos modelos adotados pela União Europeia, e com uma série de recomendações, que visam preparar e adaptar o país à liberalização do mercado que, para a agência, traria benefícios grandes à população.
Não obstante, a diferença entre o contexto europeu e brasileiro, as experiências positivas e melhorias regulatórias podem ser aproveitadas, quando bem adaptadas às peculiaridades do país.
No Brasil, o processo de mudança regulatória com a implementação do regime de autorizações teve início, no ordenamento jurídico, em 2014. A flexibilidade de preços e aumento de atores no setor rodoviário de passageiros veio apenas em 2019. Tal processo de abertura, no entanto, foi suspenso, em 2021, devido a diversos questionamentos como medida cautelar no Tribunal de Contas da União e ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.Finalmente, nesse ano, o STF e o TCU já confirmaram o modelo e abriram espaço para que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) cumpra seu papel e finalize o marco regulatório dos serviços regulares do Transporte Rodoviário Coletivo Interestadual de Passageiros (TRIP), que já vem sendo postergado há quase 3 anos.
No entanto, o curto período de outorga de autorizações já demonstrou um impacto positivo no país com uma redução no preço médio das passagens em rotas com maior número de competidores e liberdade de preços. O usuário do transporte rodoviário brasileiro é jovem e de baixa renda, em sua maioria. Entre os que viajam de ônibus, 62% recebem 2 salários-mínimos ou menos, e quase 40% têm até 35 anos. Sendo assim, reduções no preço das passagens, incentivadas pela abertura de mercado, atingiriam de forma significativa setores mais vulneráveis da sociedade.
Diante desses dados e, considerando o atual contexto no qual tanto o STF como o TCU referendaram o modelo, resta à ANTT cumprir com sua responsabilidade. De 2019 até o momento, a discussão foi amplamente feita com a sociedade, no Congresso (incluindo apresentação de projeto de lei e sua posterior aprovação), e com o próprio setor. No último dia 14 de abril, a ANTT apresentou um novo cronograma cuja estimativa de publicação da nova resolução está registrada para início de outubro, dia 10 mais precisamente. Não há mais como explicar novas delongas, e referido cronograma deve ser cobrado por todos os atores que vêm participando dessa discussão nos últimos anos.
Referências
[1]. UMWELT BUNDESAMT. Fernbusreisen in Deutschland: Eine Bestandsaufnahme zu Treibhausgasen, Luftschadstoffen und zur Verkehrsentwicklung. Alemanha, 2018. Disponível em: https://www.umweltbundesamt.de/sites/default/files/medien/376/publikationen/180607_uba_hg_fernbus_bf.pdf
[2]. IGES KOMPASS MOBILITÄT. Der Fernbusmarkt in Deutschland IV/2018. Alemanha, 2018. Disponível em: https://www.iges.com/sites/igesgroup/iges.de/myzms/content/e6/e34/e10216/e23697/e23698/e23700/attr_objs23702/IGES_KompassFernbus_IV_2018_Zusammenfassungl_ger.pdf
[3]. EN MARCHE. Comment les "cars Macron" se sont imposés. França, 2017. Disponível em: https://en-marche.fr/articles/actualites/cars-macron
[4]. COMISIÓN NACIONAL DE LOS MERCADOS Y LA COMPETENCIA. Estudio sobre el Transporte Interurbano De Viajeros En Autobús. Espanha, 2022. Disponível em: https://www.cnmc.es/sites/default/files/4241100.pdf
[5]. MINISTERIO DE TRANSPORTES. Observatorio del transporte de viajeros por carreta: Oferta y demanda. Espanha, 2022. Disponível em: https://www.mitma.gob.es/recursos_mfom/comodin/recursos/observatorioviajeros.ofertaydemandaenero2022.pdf
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