Fabiano Maury Raupp, Professor Associado da UDESC. É líder do Centro de Investigação em Governo Aberto e Transparência (CIGAT) e membro do Observatório de Finanças Públicas (OFiP)
Ana Rita Silva Sacramento, Professora Adjunta da UFBA. É líder do Observatório de Finanças Públicas (OFiP) e membro do Centro de Investigação em Governo Aberto e Transparência (CIGAT)
Julgada potencialmente relevante para qualquer âmbito da atividade intelectual humana, a Inteligência Artificial (IA) vem sendo pesquisada e aprimorada em grande escala nos últimos anos [1]. Seus usos se espraiam tanto pelas mais diversas áreas de conhecimento, como pelas diferentes ramificações dos setores público e privado. Como tudo em tecnologia, vantagens e desvantagens da IA também podem ser enumeradas e, neste cenário, a ética no uso parece ser um dos grandes desafios. Aliás, muitos dos dilemas do nosso tempo tem relação com questões éticas, como um conjunto de princípios que perpassam o tempo. Todavia, neste artigo não trataremos sobre discussões a respeito da ética no uso da IA, mas especificamente de seus possíveis impactos para a construção do exercício da transparência no âmbito da Administração Pública.
Cumpre destacar para a compreensão do entrelaçamento entre os conceitos de tecnologia e o de transparência alguns dos elementos constitutivos deste último onde expectamos o emprego de IA: a) visibilidade, que diz respeito à completude dos dados e à facilidade de obtê-los e; b) inferabilidade, que diz respeito a capacidade de inferir algo a partir dos dados disponíveis [2]. Ademais, reconhecemos que o contexto da transparência tem considerado a tecnologia como uma aliada. O crescimento acelerado das tecnologias e a sua presença no setor governamental brasileiro são evidentes, e as legislações de certa forma acompanham esse movimento, como é o caso da Lei de Responsabilidade Fiscal [3], da Lei da Transparência [4], e da Lei de Acesso à Informação [5], que destacam o uso de meio eletrônicos de acesso público como forma de dar ampla divulgação de informações.
De fato, se ainda precisamos avançar em termos de transparência, o problema não parece ser a ausência de tecnologia ou mesmo de legislação. Temos muita tecnologia, mesmo entendendo que ela ainda possa ser mais desenvolvida e ampliada, mas pouca democracia, visto que o aparato tecnológico que deveria ser mobilizado para o aperfeiçoamento democrático não tem se efetivado na prática [6]. Ainda que a tecnologia exista, e em abundância, estudos demonstram que falta transparência nos websites governamentais, instrumentos que parecem ter sido importados de realidades mais desenvolvidas, mas que não encontram respaldo na prática social brasileira [7].
No caso específico do uso de algoritmos de IA, também este já é realidade no setor público brasileiro. Mapeamento efetuado pela Transparência Brasil indicou, em 2020, três tipos de ferramentas em uso nesse setor, sendo: i) para apoio a tomada de decisão direcionadas para os próprios órgãos públicos; ii) de decisão direcionadas para o público externo e; iii) para aperfeiçoar processos internos dos órgãos, sem envolver tomada de decisão. Para fins de ilustração, um exemplo de cada tipo dessas ferramentas é apresentado no quadro a seguir:
Quadro 1. Exemplos de uso de IA pelo setor público brasileiro
O que se pode inferir a partir desse mapeamento é que o potencial do uso de IA para o incremento da prática da transparência ainda precisa ser ativado no setor público brasileiro Uma iniciativa nesta direção que se pode tomar como exemplo é a criação de um chatbot (programa de conversa) pelo Ministério da Justiça de Portugal para tirar dúvidas de cidadãos e empresas sobre processos judiciais em Portugal. A missão do GPJ (sigla para Guia Prático de Acesso à Justiça) é simplificar o acesso à informação com uma linguagem mais acessível. A base da tecnologia é o modelo linguístico GPT-3.5, o mesmo que é usado pelo ChatGPT, da OpenAI [9].
Neste exemplo já podemos associar o uso da IA com o exercício da transparência. Muitas vezes as informações existem, mas são de difícil acesso e/ou possuem uma linguagem nada compreensível, não sendo incomum a necessidade de se dar vários cliques para que seja possível encontrar a informação, ou seja, muitas vezes ela existe e está disponível, todavia nem sempre a encontramos. Portanto, a IA, além de ajudar a localizar as informações, pode também tornar mais clara e inteligível para o cidadão.
Vale destacar que a IA, em termos simples, refere-se a sistemas ou máquinas que mimetizam a inteligência humana para executar tarefas e podem se aprimorar iterativamente com base nas informações que eles coletam. Se manifesta de várias formas, sendo alguns exemplos: os chatbots que usam a IA para entender os problemas dos clientes mais rapidamente e fornecer respostas mais eficientes; os assistentes inteligentes que usam a IA para analisar informações críticas de grandes conjuntos de dados de texto livre para melhorar a programação; e os mecanismos de recomendação que podem fornecer recomendações automatizadas para programas de TV com base nos hábitos de visualização dos usuários [10].
Segundo a ONU, a IA tem um papel importante para melhorar o acesso das pessoas à informação num mundo digital, podendo ajudar a diminuir o fosso digital entre pobres e ricos ao fornecer aos cidadãos o acesso sob medida. O setor público pode, a partir de então, providenciar serviços rapidamente e de forma mais eficiente. De qualquer forma, esses passos também suscitam questões sobre os direitos fundamentais e o uso ético da IA por organizações [11].
Retomando a indagação feita no próprio título: A Transparência na Administração Pública pode contar com a IA? Sim. Mesmo que a vantagem mais visível possa ser creditada à facilidade de acesso à informação por parte do cidadão, e isso não se resume apenas à ausência de obstáculos para encontrar a informação (visibilidade), mas também no tipo de linguagem acessada (inferabilidade), os próprios governos podem - e devem - se valer de tal artifício para atender de forma mais ágil e eficiente, não apenas às exigências decorrentes de Leis, como também outras demandas da sociedade, evidenciando um compromisso ético e moral para a abertura de seus atos de gestão à sociedade como um todo, o que é típico da democracia.
Notas e Referências
[1] CASTRO, M. J. M. de. Inteligência artificial nos educativos de museu Democratização da Arte. Economia do conhecimento e contemporaneidade em Pesquisa, v. 1, 2023.
[2] MICHENER, R. G.; BERSCH, K. Identifying transparency. Information Polity, v. 18, n. 3, p. 233-242, 2013.
[3] BRASIL. Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm. Acesso em: 18 fev. 2023.
[4] BRASIL. Lei Complementar nº 131, de 27 de maio de 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp131.htm. Acesso em: 18 fev. 2023.
[5] BRASIL. Lei Complementar n. 12.527, de 18 de novembro de 2011. 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm Acesso em: 18 fev. 2023.
[6] PINHO, J. A. G. Investigando portais de governo eletrônico de estados no Brasil: muita tecnologia, pouca democracia. Revista de Administração Pública, v. 42, n. 3, p. 471-493, 2008.
[7] RAUPP, F. M.; PINHO, J. A. G. Websites dos Poderes Executivos Estaduais e as Contratações Emergenciais em Meio à Pandemia da Covid-19: Há Tecnologia, mas Falta Transparência. Revista Gestão Organizacional, v. 14, n. 1, p. 416-428, 2021.
[8] TRANSPARÊNCIA BRASIL. Recomendações de Governança: uso de inteligência artificial pelo poder público. 2020. Disponível em: https://www.transparencia.org.br/downloads/publicacoes/Recomendacoes_Governanca_Uso_IA_PoderPublico.pdf Acesso em: 19 fev. 2020.
[9] PEQUENINO, Karla. Ministério da Justiça vai usar tecnologia do ChatGPT para responder a cidadãos. Disponível em: https://www.publico.pt/2023/02/17/tecnologia/noticia/ministerio-justica-vai-usar-tecnologia-chatgpt-responder-cidadaos-2039270 Acesso em 17 fev. 2023.
[10] ORACLE. O que é IA? Saiba mais sobre Inteligência Artificial. Disponível em: Acesso em: https://www.oracle.com/br/artificial-intelligence/what-is-ai/ 19 fev. 2023.
[11] ONU. ONU celebra Dia Internacional para o Acesso Universal à Informação. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/09/1802571 Acesso em: 18 fev. 2023.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.