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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Abertura de dados em compras e contratações públicas como um processo tecnopolítico e ontológico

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Por Redação

Paula Chies Schommer, Professora de Administração Pública e líder do Grupo de Pesquisa Politeia - Coprodução do Bem Público: Accountability e Gestão, na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutora em Administração de Empresas pela Fundação Getulio Vargas (FGV)

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Fabiano Maury Raupp, Professor Associado da UDESC. É membro do grupo de pesquisa Politeia e do Observatório de Finanças Públicas (OFiP). Doutor em administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

 José Francisco Salm Jr., Professor de Administrac?a?o Pu?blica do Centro de Cie?ncias da Administrac?a?o e Socioecono?micas (ESAG/UDESC). Criou a Comunidade que auxiliou o CNPq na abertura da Plataforma Lattes. Membro do Grupo Consultivo Te?cnico de Evide?ncias e Intelige?ncia para Ac?a?o em Sau?de das Ame?ricas na OPAS em Washington, DC

Florencia Guerzovich, Doutora em Ciência Política pela Northwestern University. Trabalhou para o Banco Mundial, Open Society Foundations, Global Integrity, entre outras organizações. É consultora independente e convocadora de sistemas, cofundadora da Act4delivery e pesquisadora colaboradora do grupo de pesquisa Politeia (ESAG/UDESC)

Rodrigo de Souza Pereira, Membro do grupo de pesquisa Politeia, na UDESC. Mestrando em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) e Graduando em Administração Pública na UDESC

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Victoria Moura de Araújo, Graduada em Administração Pública pela UDESC. Bolsista do Programa Integrado de Inovação do Controle - PIIC na Controladoria Geral do Estado (CGE/SC). É membro da organização Act4Delivery

A abertura de dados públicos tem sido imperativa na democracia brasileira. Um dos requisitos para tornar o acesso à informação mais democrático, simples e útil é a definição de padrões para a geração de dados abertos. Mas, por onde começar? Uma alternativa é iniciar projetos-piloto em áreas estratégicas, como é o caso das compras e contratações públicas. A experiência em áreas específicas gera aprendizagens que podem ser multiplicadas para outras áreas, levando em conta as necessidades particulares de cada uma.

A abertura de dados e da gestão das compras públicas, no Brasil, é parte de processo de democratização mais amplo e de longo prazo, no qual ocorre a construção de arcabouço institucional e diversidade de práticas e inovações em accountability, transparência, acesso à informação, integridade, participação cidadã e governo aberto [1]. Essa construção envolve diversos atores e segmentos - governos e organizações da sociedade civil locais, regionais e nacionais, organismos internacionais, órgãos de controle, academia, imprensa e empresas contratadas pelos governos em diversas áreas. Envolve também mecanismos, como tecnologias, infraestrutura de dados, capacitação, acordos, pactos e leis, entre as quais destacam-se a Lei de Acesso à Informação, LAI - 12.527/2011 [2] e a Lei de Licitações e Contratos Administrativos - 14.133/2021 [3].

Mas há limites e imprecisões que dificultam a vida dos municípios, que precisam cumprir exigências legais e demandas de órgãos de controle, mas nem sempre sabem como fazê-lo. A LAI, por exemplo, define que certos dados públicos sejam disponibilizados em formato aberto, mas não especifica o padrão a ser usado. Se cada órgão ou município usar um padrão, grande parte da utilidade da abertura dos dados se perde. Além disso, sabe-se que os municípios já enviam muitos dados a outros órgãos, mas estes raramente são disponibilizados ao público em formato aberto.

A partir desse tipo de "dor", buscando responder a demandas sociais, legais e burocráticas de transparência e integridade, e aprimorar o desempenho das compras e contratações públicas, gestores do município catarinense de Blumenau firmaram parceria com a universidade, envolvendo também o governo estadual e uma organização da sociedade civil [4]. No âmbito de um projeto de pesquisa aplicada [5] iniciado em 2021, foi alinhada e concebida uma Comunidade e uma Rede de Padronização, que vem sendo ampliadas com a participação de outros municípios e diversos parceiros. Sua missão, construída coletivamente, é definir, evoluir e dar sustentabilidade a um padrão para a geração de dados de compras e contratações públicas que otimize a disponibilização desses dados por municípios para cidadãos e órgãos de controle externo, em conformidade com os princípios de dados abertos.

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Ao longo do processo, temos observado que a abertura das compras e contratações públicas, incluindo a abertura de dados, envolve aspectos tecnológicos, metodológicos, institucionais, legais, relacionais e políticos. No curso do projeto, iniciado a partir de um desafio concreto trazido por um município, e que vem envolvendo referenciais multidisciplinares e conhecimentos de diversos atores, observa-se que os caminhos para essa abertura podem priorizar um enfoque i) tecnocrático - tecnologias, normas, padrões, conhecimentos e profissionais especializados, ii) político - incentivos políticos e relações entre diversos atores, ou iii) tecnopolítico, combinando essas duas dimensões para criar, sustentar e evoluir padrões de dados em formato aberto viáveis e úteis a diversos públicos, como parte da abertura gradual de processos de compras e contratações públicas.

A dinâmica envolvida na abertura de dados em compras e contratações públicas desta experiência em curso em Santa Catarina tem nos mostrado que se trata de  um processo tecnopolítico e ontológico, no qual é preciso construir relações e confiança entre diversos atores, para que propósitos comuns sejam alcançados e continuados. Compreender e conduzir esse processo envolve considerar:

i) o contexto político-institucional em que ocorrem as iniciativas de abertura de dados e abertura de compras e contratações públicas;

ii) referenciais científicos, legais e metodológicos de diferentes áreas do conhecimento e organizações;

iii) o mapeamento de atores e de suas expectativas e incentivos de diferentes potenciais usuários de dados;

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iv) as relações entre diversidade de municípios, níveis e órgãos de governo na construção de capacidades estatais para a abertura, seus impulsionadores, incentivos e barreiras;

v) as relações, mecanismos de governança e aprendizagens na articulação entre governo, mercado, sociedade civil e academia no ecossistema desenvolvido na abertura das compras.

Um levantamento inicial identificou estudos e iniciativas de abertura de dados em compras [6], não articuladas entre si. Há iniciativas nacionais, de governos e organizações da sociedade civil, como a Open Knowledge Brasil, OKBR, a Central de Compras do Governo Federal [6] e de caráter global, como as da Open Contracting Partnership [7] e da Open Government Partnership [8], bem como estudos sobre ontologia para compras e contratações públicas baseado em padrões de dados abertos [9].

O acesso a metodologias e experiências existentes pode ser útil para a construção em cada contexto. Porém, para um governo local, a atuação isolada, sem articulação com outros municípios, órgãos de outras esferas, com aprendizagem contínua, tende a gerar resposta limitada e circunstancial, insustentável e irrelevante. Por outro lado, diante do desejo e da necessidade de abrir seus dados, os municípios não precisam esperar que a iniciativa venha "de cima para baixo".

Não é suficiente, porém, investir em tecnologia, capacidades estatais e burocráticas para a abertura de dados e de governos, seguindo uma abordagem tecnocrática. Há oferta tecnológica e normativos legais em abundância, embora com incoerências e lacunas, e há desafios em termos de cultura e vontade política [10]. Algo que se constrói por meio da "transposição do conceito de transparência para além da legislação e a criação de uma cultura que trabalhe a transparência como princípio e que envolva os usuários da informação na decisão de que informações fornecer e em que formato" [11].

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A abertura de dados em compras e contratações públicas deve considerar o mapeamento de atores, seus interesses e incentivos políticos, oportunidades para ganhos potenciais por meio de alianças, criando mecanismos políticos e de governança colaborativa, para mitigar resistências e favorecer a colaboração e os ganhos mútuos [12] [13]. Além disso, cabe considerar a existência de barreiras estruturais e culturais para a abertura de dados governamentais, da perspectiva dos governos e dos usuários [14].

Para tanto, a equipe coordenadora do projeto em tela optou por definir uma estratégia de parceria extramuros, envolvendo outros municípios, selecionando-os com base em critérios que pudessem proporcionar contribuições para o desenvolvimento do protótipo de padrão de dados abertos. Além disso, buscou-se envolver órgãos de controle no âmbito estadual, como Tribunal de Contas, Ministério Público e Ministério Público de Contas, associação de municípios, organizações da sociedade civil, do local ao internacional, e Secretaria de Administração do Estado. Todos com potenciais interesses e contribuições ao projeto.

O projeto realizou estudos sobre a representação semântica (ontologia-T) e seu alinhamento com padrões internacionais de interoperabilidade e publicação de dados afetos ao ciclo de vida de contratações e compras públicas. Ao constituir uma rede focada na discussão semântica e proposição de um padrão capaz de apoiar tal publicação em formato de dados abertos, espera-se beneficiar não só os municípios que precisam publicizar esses dados, mas também sua interação com outros atores interessados (i.e. órgãos de controle, empresas de tecnologia de informação, jornalistas de dados abertos, empresas de TI) que desejam utilizar-se desses dados para suas próprias atividades. Assim, poderão compartilhar suas experiências e repositórios de dados com membros da Rede e órgãos reguladores e, além disso, tê-lo pronto para o público em geral. O padrão semântico gerado pela Rede poderá auxiliar na estruturação dos ativos publicados em formato de dados abertos e sua interpretabilidade por parte desses atores.

Essa iniciativa se liga a outras em curso no Estado, como a participação do Executivo estadual de Santa Catarina na Parceria pelo Governo Aberto (Open Government Partnership, OGP). O governo estadual, com organizações da sociedade civil, academia e outros atores, desenvolveu o 1º Plano de Ação SC Governo Aberto, com compromissos que buscam um governo mais aberto, transparente, accountable e participativo [15]. Um dos compromissos é "aprimorar o processo de aquisição e contratação do Poder Executivo do Governo de Santa Catarina à luz dos princípios e normas da transparência e contratação aberta, para torná-lo mais eficaz e acessível ao cidadão e demais partes interessadas" [15]. Embora Santa Catarina venha mostrando avanços na disponibilização de informações sobre compras e contratações, o entendimento dos stakeholders aponta para a necessidade e a possibilidade de ir além das questões legais [11]. Avanços neste sentido continuam sendo construídos, como é o caso do Portal Dados Abertos e, de forma pontual, iniciativas como a do  edital e o fomento para atrair govtechs e civitechs para o Estado, em busca de soluções para a gestão pública [16].

A experiência vivenciada pelo município de Blumenau, bem como nos demais exemplos abordados, ilustra a necessidade e a complexidade da construção colaborativa. Afinal, trata-se de um processo que demanda tempo e engajamento. Ainda assim, a adoção de uma abordagem tecnopolítica e ontológica se mostra como uma estratégia mais conveniente na condução de processos dessa natureza, uma vez que permite articular esforços e construir relações que possibilitam a continuidade de iniciativas de abertura de dados. Seja fomentando a atualização do padrão conforme necessidades e interesses dos atores envolvidos, seja reforçando o tema na agenda pública.

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Notas e Referências

[1] SCHOMMER, P. C.; ROCHA, A. C.; SPANIOL, E. L.; DAHMER, J.; SOUSA, A. D.; Accountability and co-production of information and control: social observatories and their relationship with government agencies. Revista de Administração Pública, v. 49, n. 6, p. 1375-1400, 2015.

[2] BRASIL. Lei n. 12.527, 18 de novembro de 2011. 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm Acesso em: 08 set. 2022.

[3] BRASIL. Lei n. 14.133, 01 de abril de 2021. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm Acesso em: 08 set. 2022.

[4] UDESC ESAG. Padronização de dados abertos em contratações públicas. 2021a. Disponível em: https://www.udesc.br/esag/projetodadosabertos Acesso em: 08 set. 2022.

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[5] Pesquisa desenvolvida por meio do Programa de Apoio à Pesquisa Aplicada em Ciência, Tecnologia e Inovação (PAP) da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC) em parceria com a Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

[6] UDESC ESAG. Iniciativas de Abertura de Dados em Compras e Contratações Públicas: Um Guia em Construção. 2021b. Disponível em: https://www.udesc.br/esag/projetodadosabertos/publicacoes Acesso em: 08 set. 2022.

[7] OPEN CONTRACTING PARTNERSHIP - OCP. The Open Contracting Data Standard. 2022. Disponível em: https://www.open-contracting.org/data-standard/. Acesso em: 08 set. 2022.

[8] OPEN GOVERNMENT PARTNERSHIP - OGP. About OGP Local. 2022. Disponível em: https://www.opengovpartnership.org/ogp-local/about-ogp-local-program/. Acesso: 08 set. 2022.

[9] SOYLU, Ahmet; ELVESÆTER, Brian; TURK, Philip; ROMAN, Dumitru; CORCHO, Oscar; et al. Towards an Ontology for Public Procurement Based on the Open Contracting Data Standard. 18th Conference on e-Business, e-Services and e-Society (I3E), sep 2019, Trondheim, Norway. pp.230-237. Disponível em: https://hal.inria.fr/hal-02510144/ Acesso em: 08 set. 2022.

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[10] RAUPP, F. M.; PINHO, J. A. G. Websites dos Poderes Executivos Estaduais e as Contratações Emergenciais em Meio à Pandemia da Covid-19: Há Tecnologia, mas Falta Transparência. Revista Gestão Organizacional, v. 14, n. 1, p. 416-428, 2021.

[11] DUARTE, K. S. B. Transparência como elemento de accountability nas compras públicas: uma proposta para o poder executivo de Santa Catarina. Dissertação (Mestrado em Administração. Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.

[12] RITTER, O.; PINHO, B.; REIS, L. C. D.; VILAR, T. B. Transparência das políticas públicas de renúncia fiscal: uma análise sob a ótica de dados abertos. In: Congresso CONSAD de Gestão Pública, 10., 2017, Brasília. Anais... Brasília: CONSAD, 2017.

[13] EMERSON, K., NABATCHI, T., BALOGH, S. An Integrative Framework for Collaborative Governance. Journal of Public Administration Research & Theory, v. 22, n. 1, p. 1-29, 2012.

[14] MEIJER, A. E-governance innovation: Barriers and strategies. Government Information Quarterly, v. 32, n. 2, p. 198-206, 2015.

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[15] CGE/SC. SC Governo Aberto. 2021. Disponível em: https://cge.sc.gov.br/governo-aberto/ Acesso em: 08 set. 2022.

[16] SANTA CATARINA. Em edital inovador, Governo de Santa Catarina atrai startups em busca de soluções para gestão pública. 2022. Disponível em: https://www.sc.gov.br/noticias/temas/ciencia-e-tecnologia/em-edital-inovador-governo-de-santa-catarina-atrai-startups-em-busca-de-solucoes-para-gestao-publica Acesso em: 08 set. 2022.

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