Janilson Antonio da Silva Suzart, Doutor em Controladoria e Contabilidade pela FEA USP. Colabora com o Instituto de Contabilidade Pública e Democracia (ICPD)
Diones Gomes da Rocha, Doutor em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP. Colabora com o Instituto de Contabilidade Pública e Democracia (ICPD)
Robson Zuccolotto, Pós-doutorado em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Contábeis da UFES
Caros leitores, começamos este texto recorrendo ao famoso poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1942, para ilustrarmos uma situação recente e falarmos um pouco de Finanças Públicas (acreditem, é possível ver as Finanças Públicas por meio da poesia). A situação a qual nos referimos é a divulgação de relatórios da Controladoria-Geral da União (CGU) apontando distorções contábeis (doravante, distorções ou distorção) em Ministérios do Governo Federal no exercício de 2022. Para tratarmos do tema, lembramos da poesia de Andrade, no qual o nosso amigo José, tomado pela solidão e pela falta de esperança, vagueia sem rumo na vida (um verdadeiro trem à toa, como diriam alguns amigos mineiros).
Como se tornou usual nos tempos modernos, a cada novidade que invade os noticiários e as redes sociais, surgem especialistas sobre quase tudo neste mundo. E muitas vezes, nos sentimos como o nosso amigo José: sem chão, sem entender o rumo da prosa, sem ter a capacidade de nos posicionarmos, pois o mundo muda muito rapidamente e ainda não tivemos tempo de organizar as ideias em relação às novidades do dia anterior. Terminamos passivamente aceitando muitos posicionamentos, sem a condição de questioná-los. Para a maioria da população brasileira (ousamos dizer que para nosso amigo José também) a Contabilidade, a Auditoria, a Economia e outras áreas do conhecimento utilizadas para explicar os fenômenos das Finanças Públicas são temas pouco conhecidos.
Mas, afinal de contas, em um relatório de auditoria, o que seria uma distorção?
De acordo com a Norma Brasileira de Contabilidade Técnica de Auditoria (NBC TA) 450 (R1) (Conselho Federal de Contabilidade, 2016b):
Distorção é a diferença entre o valor divulgado, classificação, apresentação ou divulgação de um item nas demonstrações contábeis e o valor, classificação, apresentação ou divulgação que é requerido para que o item esteja de acordo com a estrutura de relatório financeiro aplicável. Distorção pode ser decorrente de erro ou fraude.
De modo mais claro, a distorção é diferença entre a informação divulgada nas demonstrações contábeis e a aquela que deveria ter sido divulgada (conforme as normas contábeis). A distorção não é sinônimo de desvio de recursos, de corrupção, de fraude ou de outros ilícitos. A distorção é uma evidência de que há falhas nos controles internos de uma entidade.
Para continuar esclarecendo o conceito de distorção, vamos recorrer mais uma vez ao José. Imaginemos que ao ter a consciência de tudo o que lhe aconteceu, o nosso amigo decida procurar um médico para entender se algo na sua saúde está contribuindo para a sua melancolia. Na medicina ocidental, o natural será que o médico lhe solicite alguns exames e que o José vá buscar um laboratório ou um hospital para realizar tais exames.
Um dos exames realizados pelo José veio com um resultado muito acima do padrão esperado. Ainda que o resultado desse exame possa ser isoladamente interpretado por nosso desiludido amigo como sendo uma sentença de morte, o mais indicado é que ele retorne ao médico para continuar a sua avaliação. Ao ter conhecimento do resultado, o médico irá explicar as possíveis causas da alteração e, na maioria das vezes, irá solicitar novos exames para definir melhor o diagnóstico do mal que aflige o José. Mais uma vez, o nosso amigo irá repetir a rotina de fazer exames e levar os resultados para o médico, até que seja possível a apresentação de um diagnóstico.
De maneira bastante similar, a distorção é o resultado do teste realizado por outro profissional: o auditor. Uma distorção não deve ser interpretada isoladamente, pois é tão somente uma evidência de que algo aflige a entidade auditada e não uma sentença de ocorrência de ilícitos. Esse algo significa que os controles internos daquela entidade não foram implementados ou que estão funcionando de maneira inadequada, levando-a a apresentar uma informação diferente daquela que deveria.
Então, a distorção é apenas um problema contábil (sempre esses contadores, pensaria o José)? A resposta é não. Os atos praticados por qualquer entidade podem ser analisados por diversas óticas, dentre elas a Contabilidade. Dentro da lógica de governança predominante nos tempos atuais, ou mais especificamente, dentro de uma lógica de governança financeira globalizada, uma entidade, seja ela do setor privado ou do setor público, precisará transacionar com outras entidades para obter recursos e alcançar os seus objetivos. Nessas transações e em seus processos internos, a entidade irá realizar movimentações de fluxos financeiros (benefícios econômicos, na linguagem contábil), que serão registradas e evidenciadas de acordo com as técnicas contábeis. No setor público, mais especificamente, por exemplo, para que uma vacina seja aplicada em um cidadão brasileiro, diversos fluxos financeiros são realizados (desde a arrecadação dos tributos, passando pela aquisição da vacina e concluindo com o pagamento do salário do profissional de saúde).
Se as atividades de uma entidade podem ser representadas pelos fluxos financeiros, também é possível realizar avaliações dessas atividades utilizando-se dos mesmos fluxos. Uma das técnicas empregadas é a auditoria financeira, que busca avaliar se as demonstrações contábeis foram elaboradas, em todos os aspectos relevantes, em conformidade com uma estrutura de relatório financeiro aplicável (Conselho Federal de Contabilidade, 2016a). O auditor, ao aplicar a técnica de auditoria financeira, objetiva avaliar se há diferenças entre o que está evidenciado e o que deveria estar evidenciado nas demonstrações contábeis, além de tentar identificar as causas dessa diferença.
Conforme apresentado, uma distorção pode ser decorrente de um erro ou de uma fraude. No campo da auditoria financeira, o que diferencia um erro de uma fraude é o fato dessa (fraude) decorrer de uma ação intencional para produzir uma informação incorreta. No caso de uma distorção originada por erro, ela não deriva da intencionalidade, mas decorre de falhas nos controles internos, isto é, a distorção decorrente de erro é causada por fatores que não podem ser atribuídos a atuação intencional do responsável pelas informações financeiras. Por outro, lado, no caso da fraude, há a intenção do agente de se apropriar dos recursos da entidade ou de obter vantagens por meio das informações fraudadas.
Também, como já descrito, a distorção não é sinônimo de fraude, mas de falha nos controles internos. No caso do setor público, e considerando a governamentalidade do nosso tempo (governança financeira globalizada) as falhas indicam que haverá perda de eficiência, eficácia e/ou economicidade no uso dos recursos públicos. É possível que, em alguns casos, tais perdas impliquem mau uso do recurso ou fraudes, mas não há uma correlação exata entre o valor da distorção e o valor do prejuízo de uma entidade pública. Assim, caros leitores, uma distorção de um real não deve ser interpretada como sendo um prejuízo de um real para o erário.
Por exemplo, imaginemos a seguinte situação: o Governo Federal faz transferências aos Governos Subnacionais para que apliquem em determinada política pública, e esses têm o dever de prestar contas do uso dos valores recebidos àquele, conforme a legislação vigente. Seguindo-se as normas contábeis vigentes, o Governo Federal deve reconhecer um ativo (direito) quando da transferência (pois houve apenas a movimentação de dinheiro e não a efetiva aplicação do recurso) e somente transferir para a despesa, quando da efetiva comprovação da utilização dos recursos, mediante aprovação da prestação de contas dos Governos Subnacionais.
Em uma auditoria financeira, o auditor verificou que o Ministério X não estava analisando as prestações de contas e que os valores das transferências estavam se acumulando no seu ativo. Neste caso, a distorção representa a diferença entre o valor reconhecido no ativo (o total das transferências realizadas nos últimos anos) e o valor que atende ao conceito de ativo (apenas as transferências para as quais não houve a comprovação de aplicação e estão dentro do prazo legal de utilização). Ao apurar tal diferença, o auditor reportou uma distorção de R$ 10 milhões nas demonstrações contábeis do Ministério X para aquele exercício e recomendou que o Ministério analisasse as referidas prestações de contas.
Ao atender a recomendação do auditor, o Ministério X procedeu as análises das prestações de contas e verificou que, em alguns casos, houve problemas na aplicação dos recursos. De acordo com o resultado das análises, R$ 500 mil foram alocados indevidamente em outra área pelo Estado A, e R$ 700 mil foram gastos sem comprovação pelo Munícipio B. Assim, verifica-se que o prejuízo ao erário federal foi de R$ 1,2 milhão, valores que o Ministério X deverá exigir que sejam aplicados corretamente ou que sejam ressarcidos ao Governo Federal.
Mas, se o valor da distorção não é igual ao valor do prejuízo, por que o auditor não divulga apenas o valor do prejuízo (com certeza seria a pergunta do José, quase em tom de desdém, para o auditor)?
Em primeiro lugar, é necessário lembrar que a responsabilidade pela implantação e funcionamento dos controles internos é do gestor, cabendo ao auditora responsabilidade pela avaliação desses controles. Assim, nem sempre será possível ao auditor identificar de forma clara e objetiva o valor do prejuízo, pois o seu objetivo na auditoria financeira não é a identificação de fraudes (isso é feito por outro tipo de auditoria ou por outras técnicas), mas a identificação de mau funcionamento dos controles internos. Portanto, o auditor se expressa pelos valores das distorções para identificar problemas nos controles internos de uma entidade. Quando for possível a mensuração do valor do prejuízo, deve o auditor apresentar isso de modo claro em seu relatório para permitir que os usuários da informação contábil entendam que as falhas nos controles internos (valor da distorção) permitiram a ocorrência de fraudes (valor do prejuízo).
Em segundo lugar, a auditoria financeira não é uma panaceia. A auditoria financeira não irá mitigar ou evitar todos os males que aflige a entidade auditada. O auditor, na maioria das vezes, precisará utilizar outros tipos de auditoria (auditoria operacional, auditoria de conformidade, auditoria para detecção de fraudes etc.) para identificar melhor as causas do problema (de modo similar ao médico do nosso amigo José, que pediu mais exames, ante os resultados dos exames iniciais). No setor público, a unidade de auditoria interna, apesar de não ser responsável pela implantação e gestão dos controles internos, tem um papel importante para auxiliar o gestor na busca dos melhores controles possíveis, sempre considerando uma relação ótima de custos versus benefícios.
Outro aspecto que precisa ser destacado é que, além de não haver correlação entre o valor da distorção e o valor do prejuízo (se houver este último), ainda que uma distorção tenha sido originada em uma fraude, o autor da respectiva fraude nem sempre será um agente público. Por exemplo, em uma auditoria financeira, o auditor identificou que houve pagamentos de um auxílio a indivíduos que apresentavam inconsistências cadastrais. Depois de elaborar uma amostra aleatória, o auditor conseguiu as seguintes evidências: R$ 1 milhão foi o montante pago de modo indevido e, em 30% dos casos, os indivíduos apresentaram documentos falsos que não foram detectados tempestivamente pelos controles internos do Ministério Y.
Com tais evidências, ao emitir a sua opinião, o auditor irá relatar que houve uma distorção de R$ 1 milhão (a distorção é representada pela realização de uma despesa que não atende às condicionantes para a concessão do benefício) e que as falhas dos controles internos permitiram a ocorrência de uma fraude de R$ 300 mil, fraude essa identificada ao longo dos testes de auditoria e causada por terceiros à administração pública. Ressalta-se que, nesse caso, ainda caberá ao Ministério Y apurar os demais casos (70%) e verificar se houve participação de agentes públicos na fraude detectada.
Voltando ao alvoroço causado pela divulgação recente dos relatórios de auditoria, esperamos ter deixado claro para os leitores que as distorções representam o modo como o auditor evidencia que há falhas nos controles internos de uma entidade, em uma auditoria financeira. Essas falhas, devem ser corrigidas pela entidade para evitar que se tornem prejuízos ou para interromper prejuízos em andamento. Quando há prejuízos em andamento, a entidade e o auditor governamental, na maioria das vezes, precisarão recorrer a outras técnicas para identificar de modo claro e preciso as causas dessas falhas, cabendo ao auditor interno auxiliar a gestão a aperfeiçoar os controles defeituosos. É sempre necessário ressaltar que a implantação e o funcionamento dos controles internos é uma responsabilidade do gestor.
No Brasil, o uso da auditoria financeira ocorre há mais de uma década, sendo o Tribunal de Contas da União (TCU), um dos primeiros órgãos de controle que buscou fomentar tal prática. Ao longo desse período, os relatórios da apreciação das contas presidenciais já vêm se utilizando da figura das distorções em seus conteúdos. Mais recentemente, o uso da auditoria financeira foi expandido, no âmbito federal, para as prestações de contas ministeriais, ampliando o número de relatórios que expressam as situações encontradas por meio da terminologia da auditoria financeira, ou seja, pela apresentação das distorções. Assim, caros leitores, será natural que no futuro (muito próximo), mais e mais relatórios de auditorias apresentem os resultados das análises com o uso da terminologia distorção, sem que isso represente necessariamente uma fraude ou um mau uso dos recursos públicos.
A avaliação financeira da gestão governamental é tida, na governamentalidade neoliberal, como uma das formas para se aperfeiçoar as políticas públicas, tornando-as mais efetivas. Nessa lógica de governança, a auditoria financeira é uma ferramenta que, quando combinada com outros tipos de auditoria, permite uma avaliação das escolhas governamentais, contribuindo para o aumento da eficácia, eficiência e economicidade no uso dos recursos públicos, que não são ilimitados.
Lamentamos que o nosso amigo José não tenha ainda encontrado um rumo para sua vida, mas pelo menos, temos a certeza de que agora ele (e esperamos, você) passou a compreender melhor o que uma distorção contábil significa, ao menos dentro da lógica da governança financeira global.
Referências
Conselho Federal de Contabilidade. (2016a). Norma Brasileira de Contabilidade Técnica de Auditoria 200 (R1). Brasília: CFC.
Conselho Federal de Contabilidade. (2016b). Norma Brasileira de Contabilidade Técnica de Auditoria 450 (R1). Brasília: CFC.
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