Arilson Favareto, é sociólogo, professor da Universidade Federal do ABC e pesquisador do Cebrap.
Em debate promovido pelo Cebrap para discutir o cenário econômico no contexto da pandemia do coronavírus, onde estavam presentes também os economistas Armínio Fraga e Zeina Latif, o sociólogo Marcelo Medeiros introduziu um tema fundamental: para ele, tudo o que estamos vivendo deixará como herança uma profunda mudança na nossa forma de lidar com as incertezas. Isso deve repercutir sobre o que entendemos ser o papel do Estado e como lidar com situações assim, que devem se repetir com maior frequência no futuro.
No momento atual, para surpresa de muitos, há razoável convergência de opiniões entre economistas e especialistas de vertentes antagônicas quanto ao que se deve fazer: não colocar os requisitos fiscais de equilíbrio de contas públicas acima da necessidade de usar todos os meios necessários para evitar uma catástrofe humanitária ainda maior do que aquela que já se apresenta. Ampliar condições de atendimento médico, garantir empregos e renda, expandir o crédito e outras formas de ajudar pessoas e empresas diretamente afetadas pelo declínio da atividade econômica estão entre essas medidas.
Mas a concordância entre liberais e os chamados heterodoxos pode ir além disso? Talvez não. As diferenças começam quando se trata de discutir se a garantia de renda mínima ampla deve ser apenas emergencial ou se, passada a tormenta, será o caso de voltar a restringir sua abrangência apostando na focalização eficiente. E avançam por outros temas como a elasticidade fiscal do Estado para promover o reaquecimento da economia, que instrumentos utilizar para isso, entre outros.
Tais controvérsias não devem obscurecer o fato de que a crise instalada é tão grande que pode representar um daqueles raros momentos de virada na ordem estabelecida. O que a pandemia do coronavírus faz é escancarar mazelas que estão há tempos entranhadas no modelo brasileiro de organização da sociedade, do Estado e da economia. Temos uma rede de proteção social valiosa, mas insuficiente; uma sociedade brutalmente desigual, onde a riqueza coexiste com a vulnerabilidade de enormes contingentes de pessoas; uma economia frágil, com formas de regulação e incentivos que privilegiam o comportamento oportunista e uma base produtiva pouco promissora.
Porém, toda crise é feita de muitos riscos e umas poucas oportunidades. Sem tirar o foco do que é emergencial - salvar vidas e proteger pessoas -, é preciso começar a pensar no que vai ser o período seguinte à pandemia. Afinal, instrumentos de retomada econômica já estão sendo desenhados mundo afora. Surgem expressões como "novo plano Marshall" e similares. No Brasil, a modelagem do gasto público entrará em debate, grandes somas de dinheiro talvez sejam postas em circulação.
Os riscos envolvem repetir velhos erros. Em situações assim, com frequência os investimentos são capturados pelos de sempre. E o resultado pode ser apenas uma volta ao estado anterior das coisas. A oportunidade consiste em ir além de uma tentativa de simplesmente retomar a normalidade, o que no caso brasileiro seria pouco, e seria ruim. Parafraseando algo grafado nos muros de algum país europeu: não se pode voltar à normalidade, porque a normalidade era, em si, parte do problema.
É difícil pensar em longo prazo em meio à emergência. Mas foi justamente em momentos delicados que, nos últimos cem anos, o Brasil produziu grandes mudanças. Isso aconteceu nos anos 1930, quando a crise dos mercados internacionais obrigou parte das elites brasileiras a tentar deixar para trás o passado agrário e investir na criação das instituições que nos tornariam um país urbano e industrializado, mesmo que de forma incompleta. Se repetiu quando a resposta autoritária à efervescência social dos anos que antecederam o golpe militar transformou o Brasil, de importador de alimentos, em uma das maiores potências mundiais na produção agropecuária, o que se fez no breve intervalo de uma geração. E quando, no contexto da redemocratização, a Constituição de 1988 resgatou a dívida social deixada com a modernização conservadora e consagrou um pacto social que permitiu a estabilização econômica e a expansão de direitos, aspectos que orientariam a ação do Estado nas duas décadas seguintes.
Isso mostra que, apesar da compreensível baixa autoestima nacional, sim, já fomos capazes de reinventar o futuro. E justamente por isso é preciso perguntar: e depois da pandemia? Não há receitas, pois a resposta não será obra de fórmulas prontas e sim de um novo contrato social. Por agora, já seria bem útil admitir alguns pressupostos e fazer perguntas certas.
Primeiro pressuposto, é preciso reconhecer que o pacto que vigorava se esgotou no meio do último decênio, quando entramos na crise inseparavelmente econômica e política em que estamos metidos desde então. E que para inaugurar um novo ciclo, teremos que recriar o Estado, as bases econômicas do país e a coalizão de forças sociais que sustenta a agenda do Estado. Nenhuma das transições anteriores se fez sem uma recomposição destes três elementos. E eles são claramente interdependentes.
Segundo pressuposto, o mundo do século XXI se parecerá cada vez menos com o século passado, no qual foram gestados os grandes modelos de organização social que experimentamos até aqui. É o caso da aposta na via agrícola, de severos impactos ambientais, poupadora de trabalho, e que nos põe em posição vulnerável pela excessiva dependência da exportação de commodities. Do industrialismo impulsionado desde o Estado, que se bem foi importante para modernizar o país, não representa, nos seus moldes atuais, horizonte promissor, tanto pelos custos como pela poupança de trabalho decorrente da intensividade tecnológica. E vale também para o social desenvolvimentismo, praticado já neste século, mas que tentava se equilibrar sobre pilares dos dois modelos anteriores, como a dependência do agronegócio associada à tentativa de reanimar a indústria nacional, com a diferença de que agora se colocava também a questão social no centro da agenda do Estado; um equilíbrio instável que se desfez com a crise fiscal. Dos escombros destes três modelos precisa nascer algo novo.
As reformas que vinham sendo discutidas e implementadas sob um olhar míope, fiscalista, certamente serão retomadas quando a crise diminuir. Não seria o caso de aproveitar a energia agora mobilizada e lhes conferir um horizonte mais amplo?
A reforma tributária em debate, por exemplo, não vai além do singelo propósito de simplificar o regime de arrecadação. Por que não usá-la para, finalmente, estabelecer a progressividade na aplicação dos impostos, invertendo o que hoje se faz, com os pobres pagando mais, relativamente, do que os muito ricos? Nos termos atuais, a fórmula usada onera o consumo e a produção, e deixa livre a acumulação de patrimônio que, muitas vezes, nada produz ou contribui para melhorar a vida das pessoas. Ora, não é de simplificação que se trata agora, e sim do financiamento do Estado e do bem-estar social em contexto de recuperação de uma crise brutal.
A reforma administrativa é outra que será retomada. Por que não ampliar seus termos, hoje confinados a tornar o Estado menos caro? Não seria melhor adotar como critério a organização de um Estado mais efetivo, capaz de entregar mais e melhor, e que seja, sobretudo, adaptativo? O debate não deve se dar em torno de um Estado maior ou menor. A pergunta é: um Estado para que propósito? E o que precisaremos é de um Estado capaz de diminuir incertezas, ampliar a proteção social conferindo à garantia de renda e à expansão dos direitos à saúde e à educação o status de bens públicos. Um Estado que consiga conduzir uma grande transição na nossa base produtiva. E, finalmente, que possa ser mais ágil na resposta a crises como esta, que certamente se repetirão com o aumento dos riscos globais.
Quando à base produtiva, em pleno mundo pós-industrial, é razoável imaginar que o aprofundamento de nossa trajetória de crescente dependência da exportação de bens primários pode garantir uma expectativa promissora de inserção na ordem internacional? Até quando apostaremos em um modelo econômico esquizofrênico, que concentra renda, por um lado, e tenta diminuir os impactos disto com políticas sociais, de outro? Dá para crescer distribuindo oportunidades, em vez de pensar meramente na mitigação posterior da exclusão? Uma nova economia, menos concentrada, baseada no conhecimento e em inovadoras formas de uso dos recursos naturais é, não só possível, como necessária em um contexto de mudanças climáticas globais e de explosão da desigualdade.
Grandes economistas produziram contribuições valiosas para situações assim. É o caso dos laureados com o Nobel de Economia, Douglass North e Amartya Sen, ou de estrelas ascendentes como Daron Acemoglu e Thomas Piketty. Em comum a todos está a ideia de que existe forte correlação entre a superação de desigualdades, o crescimento econômico continuado, e a estabilidade democrática. E isto depende de instituições políticas, ou em outros termos, de acordos forjados em cada sociedade, e em cada época, tendo por objeto a definição de quem pode o quê nestas ordens sociais. Algo bem mais amplo do que sugere frequente e empobrecedora polarização entre gasto e austeridade.
As eleições de 2014 se fizeram com o olhar de parte da sociedade no retrovisor direito, parte no retrovisor esquerdo, debatendo se a melhor agenda era aquela experimentada nos anos noventa, ou na primeira década dos 2000, quando o novo contexto já havia esgotado uma e outra. O pleito de 2018 foi uma caricatura de plebiscito sobre a volta do PT à presidência, com o debate público esvaziado. A sociedade brasileira merece a oportunidade de discutir não somente o passado, mas o futuro.
Quando a pandemia nos der um pouco de paz algo novo precisará ser posto à mesa. Se temas assim vierem para a ordem do dia, quem sabe daqui a dois anos quando tivermos novas eleições, possamos fazer desta ocasião o momento de firmar um novo pacto, inaugurar um novo ciclo. O certo é que só teremos uma saída duradoura da crise se os desafios forem postos nestes termos: reinventar o país, pensando que tipo de sociedade queremos ser, e que forma de inserção internacional poderemos ter daqui a duas ou três décadas.
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