Paulo Almeida, Psicólogo, Advogado e Diretor Executivo do Instituto Questão de Ciência
Natalia Pasternak, Microbiologista, Presidente do Instituto Questão de Ciência, Professora visitante na FGV-SP, Membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI) e Pesquisadora em Columbia University
O Brasil conta, desde 2006, com uma Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) inserida no Ministério da Saúde.Hoje, essa política coloca 29 práticas alternativas - sem respaldo científico - no Sistema Único de Saúde (SUS).
Na ausência de respaldo científico, o respaldo burocrático dá-lhes um verniz de legitimidade que facilita seu uso indiscriminado no âmbito do Estado. Afinal, o Ministério da Saúde deve saber o que está fazendo.
Os riscos, sociais e sanitários, que a mera existência do PNPIC trazem, amplificados pela complacência burocrática que o cerca, são perfeitamente exemplificados no caso da Constelação Familiar, que legitimada pelo PNPIC, chega ao Judiciário sob a marca registrada de Direito Sistêmico.
Proposta por Bert Hellinger, um ex-padre jesuíta, a Constelação Familiar é uma amálgama de pseudoterapia performática e esoterismo. O terapeuta sistêmico, ou "constelador", orienta sessões nas quais o paciente organiza um grupo de terceiros - os representantes - na forma de uma "constelação" que contenha todos os elementos e atores de seu problema.
Há, normalmente, representantes do paciente, de parentes e até de sentimentos e locais, como "tristeza" ou "casa". Orientado pelo constelador, o paciente dispõe os representantes pela sala, conforme sua intuição.
Forças mágicas, ou quânticas, atuariam sobre os representantes, fazendo com que adquiram traços dos representados. A resolução do problema é obtida com o rearranjo da constelação até que todos os elementos se encontrem "em harmonia".
Não se exige que os consteladores tenham formação em saúde mental. Pacientes em risco de suicídio ou depressão encontram-se, portanto, abandonados à própria sorte.
Não menos preocupante, os textos de Hellinger trazem diretrizes que relativizam situações de violência sexual, patologizam homoafetividade e promovem uma concepção de poder patriarcal absoluto.
Hellinger propõe, por exemplo, que um abuso sexual do pai contra a filha menor pode ser justificado pela recusa da mãe em "servi-lo". Não raro, constelações deste tipo terminam com o facilitador incentivando a vítima a pedir perdão, ou a declarar amor, ao abusador. É assim que a prática chega ao Judiciário, como Direito Sistêmico®, com a desculpa de desafogar o sistema, como parte das medidas de conciliação e mediação.
Mediação e conciliação são, em si, medidas salutares. O que há, contudo, é uma tentativa da inserção do Direito Sistêmico® como ferramenta oficial para tanto, em especial no Direito de Família. Com a marca registrada e cursos caros, há dinheiro em jogo nessa iniciativa.
Dados de 2020 do Instituto Brasileiro de Direito Sistêmico indicam que há mais de uma centena de comissões de Direito Sistêmico em OABsBrasil afora. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aceita a Constelação Familiar/Direito Sistêmico, e diversos Estados regulamentaram o seu uso. Universidades já oferecem disciplinas do assunto, e começam a surgir cursos de pós-graduação.
Trata-se de uma prática pseudocientífica que alça operadores do direito à condição de terapeutas, com base em uma paródia de ciência, e em uma concepção de família que já era obsoleta no século 19.
Pessoas que recorrem à justiça veem-se expostas. Forçar, sob os olhos e os auspícios do Judiciário, uma dinâmica "terapêutica" entre um agressor e um agredido é reiterar a agressão.
É urgente que se repense o uso da Constelação Familiar, e quaisquer outras pseudociências, no cumprimento dos deveres do Estado.
O caminho a ser trilhado é o das políticas públicas baseadas em evidência. Rigor na análise de propostas, métricas de acompanhamento, avaliação periódica e mecanismos de mudança de rota quando necessário. Em matéria da UOL, o CNJ, quando acionado, não soube dizer qual foi a quantidade de casos solucionados com o uso de Constelação Familiar no Judiciário: não há controle, ninguém se responsabiliza por determinar se, afinal, a prática serve para alguma coisa - se não multiplica traumas e injustiças, sob o pretexto de produzir "conciliações". O brasileiro que recorre à justiça merece melhor.
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