Romero Maia, Gestor de Pesquisas do IBGE e colaborador do Grupo de Métodos de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE. E-mail: romeromaia@gmail.com
Os temas mais importantes do debate político sempre foram concentração de renda e riqueza, e seu complementar, a pobreza. O Estado sempre foi o palco principal desses debates porque é o coordenador, por definição, para encaminhar soluções para esses tipos de problemas políticos. A política, por sua vez, é por um lado a consequência necessária das várias diferenças entre as pessoas e, por outro, a causa da pobreza de larga escala e da concentração excessiva quando malfeita ou feita com má-fé pelos que vencem o embate político. Se fôssemos completamente iguais, não haveria política por simples falta de diversidade para o embate. Assim, quando um político governa apenas para os seus eleitores ou para os que se assemelham ideologicamente, pode-se dizer formalmente que se trata de um péssimo político. O respeito à diversidade é o diapasão da boa política.
Seguindo, então, pela importância da diversidade, uma das muitas diferenciações mais elementares dos humanos enquanto espécie é o chamado dimorfismo sexual. E mesmo esse nível tão básico de diferenciação a natureza não produz uma constante. Sabe-se que, de acordo dados da ONU, pode chegar a cerca de 2% a parcela da população que nasce com características intersexuais. Mas essas são apenas as diferenciações congênitas básicas, e não dizem muita coisa sobre a grande variabilidade comportamental, com diversas segmentações de orientações afetivas e sexuais. O polimorfismo cognitivo e comportamental é também um fundamento da nossa espécie e, não por outra razão, a pluralidade de gênero é um fenômeno que sempre existiu, fazendo nossa etologia ser uma das mais ricas e complexas da natureza e com inevitáveis repercussões políticas.
Partindo agora para a relevância de indicadores sociais e da política quando analisamos as relações de gênero, em 2020, o IBGE publicou um estudo importantíssimo sobre as consequências desse nível mais complexo de distinção, revelando seus efeitos práticos no dia a dia das pessoas. Por causa de limitações metodológicas típicas de pesquisas amostrais de grande porte (como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual), que vão desde a necessidade de padronização e comparabilidade internacional dos instrumentos de coleta, passando por hierarquização de perguntas condicionais, até o impacto que as não-respostas e recusas podem ter na representatividade do questionário, o Instituto fez essa investigação apenas no nível de homens e mulheres. Os dados mais recentes dizem respeito ao ano de 2019 e revelam que, se considerarmos gênero como uma variável, ela pode ocupar o papel de boa preditora de uma série de fenômenos de interesse. Ou seja, gênero importa. Vamos destacar aqui uma variável em especial, a dos "afazeres domésticos", e analisar as discrepâncias que apareceram entre os gêneros.
Consideramos essa variável importante porque o nível de bem-estar de qualquer pessoa que precisa se sustentar depende bastante do tempo disponível para se dedicar a educação, saúde e entretenimento, antes ou após o horário de trabalho. Tempo esse que, para a maioria da população, representaria os momentos mais felizes da vida, já que só poucos privilegiados fazem exclusivamente o que gostam nas suas ocupações remuneradas. Os afazeres domésticos impactam justamente aí, e por isso são valiosos para análise. A fim de esclarecimento, vale pontuar que o IBGE denomina "pessoas ocupadas" aquelas pessoas que, ao serem entrevistadas, disseram que realizaram ao menos uma hora de trabalho remunerado, ou em trabalho sem remuneração direta em ajuda a membro do domicílio ou parente na semana de referência da pesquisa. Um morador médio do Brasil, se for homem, trabalha aproximadamente 41,7 horas por semana. Isso é 13% a mais que a mulher média, que trabalha 36,9 horas. Então, se analisarmos apenas essas as pessoas ocupadas, os dados mostram uma expressiva diferença de gênero no que concerne a não realizar qualquer afazer doméstico:
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE.
A diferença média entre homens e mulheres que não realizam afazeres domésticos depois do trabalho habitual é de 13,6 pontos percentuais. Mas seria essa diferença impactada pelo fato do homem médio passar mais tempo trabalhando? Para isso, vamos observar o gráfico 2 que mostra a mesma variável, contudo apenas para homens e mulheres que estavam desocupados ou fora da força de trabalho na semana de referência da pesquisa:
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE.
O aspecto desse segundo gráfico é muito semelhante ao do primeiro. Mostra que ao longo do período há um movimento de aumento de homens realizando afazeres domésticos, acompanhado pela desaceleração da participação feminina, porém ainda numa distância considerável entre as médias. O mais intrigante, entretanto, é que quando consideramos apenas esses homens e mulheres não ocupados, o nível de afazeres domésticos diminui para ambos, e mais fortemente entre as mulheres. A distância para os homens se dilata, mas se cada grupo for comparado com o mesmo gênero apenas variando a condição de ocupação, o aumento médio da ociosidade dos homens é de 61,33% e os das mulheres é de 84,39%. Logo, não podemos continuar supondo que é apenas ocupação que afasta homens e mulheres dos afazeres domésticos, quando a ociosidade ocupacional implica ociosidade doméstica. Outra variável deve estar causando esse afastamento.
Para especularmos sobre as causas desse aumento entre dos que não se envolvem nos afazeres domésticos mesmo sem estarem trabalhando, temos que achar alguma variável entre os não ocupados que impacte a independência das mulheres com relação aos afazeres domésticos. Sem esgotar as possibilidades, trazemos 3 fatores que podem lançam luz sobre o que queremos entender, quais sejam:
1) o perfil da população não ocupada: as mulheres representam imensa maioria tanto da população desocupada (taxa cerca de 40% maior), quanto fora da força de trabalho (quase o dobro do percentual dos homens nessa condição), o que ajuda a explicar a discrepância com os homens mas não com as outras mulheres ocupadas e que ainda estão mais presentes nos afazeres domésticos. 2) gravidez: ainda hoje é a principal responsável, seguida dos próprios afazeres domésticos, pela suspensão da escolarização das mulheres. Assim, pode ser um fator que afasta as mulheres não ocupadas dos afazeres domésticos. Contudo, a sensível queda da participação nos afazeres domésticos não parece se sustentar nessa hipótese uma vez que a taxa de fecundidade brasileira está bem abaixo (1,73) da média mundial (2,42) e é a segunda menor da América Latina, só perdendo para Cuba. 3) atavismo cultural: esse conceito indica a persistência de preconceitos e costumes que existiam em outras circunstâncias de oportunidades, de tecnologias e estilo de vida com relação aos papéis de gênero no mercado de trabalho e nas famílias. Há muito pouco tempo, em meados da década de 1970, o IBGE constatou que a população rural no Brasil havia se tornado um pouco menor que a urbana. Processo que se acentuou desde então, mas lentamente. Na década de 1980, ainda 1/3 do país morava no campo. Essa migração foi alterando a procura por emprego dentro das novas estruturas produtivas do meio urbano, e modificando nesse processo os próprios arranjos familiares. Por si só, causou o início da redução do número médio de filhos, pari passu à exposição mais frequente das famílias a incentivos sobre métodos contraceptivos que impulsionavam a mulheres a não se evadirem da escolarização decisiva para ingresso em boas oportunidades de ocupação. Apesar de ser um processo muito recente, hoje as mulheres já são maioria nos cursos de graduação, pós-graduação e recebem cerca de 60% das bolsas CAPES de incentivo à ciência, além de apresentarem menor evasão escolar que os homens e, consequentemente, são mais instruídas em geral.
Dado esse descritivo sumarizado do perfil da população brasileira para o problema que os gráficos 1 e 2 nos apresentam, temos que tal fenômeno parece estar relacionado a alguma mudança cultural recente. São justamente os homens e mulheres mais jovens que possuem a menor aderência aos afazeres domésticos entre todos os grupos de idade classificados pelo IBGE, ao mesmo tempo que acumulam maior nível de desocupação. Os homens jovens apresentam uma taxa de não realização de trabalho doméstico 1,74 vezes maior que seus semelhantes em idades mais avançadas. Enquanto as mulheres jovens apresentam uma taxa 2,17 vezes maior em média no período. Essa pode ser a explicação plausível para corroborarmos com a 3º fator, que está em curso uma virada cultural entre gerações influenciando a postura das pessoas em seus domicílios.
A vida doméstica é sempre a última trincheira do conservadorismo. Inclusive como principal local de uma das clivagens mais graves nas relações de gênero, a violência física (que não é objeto de análise deste artigo, assim como as demais formas de violência). Os hábitos familiares carregam o senso de autoridade do convívio entre diferentes gerações, e costumam reproduzir valores que persistem apesar de não terem mais qualquer respaldo nas novas circunstâncias sociais. Esses novos ares também podem ajudar a explicar o ritmo mais acelerado da entrada dos homens jovens nos afazeres doméstico, já que partem de um patamar inicial que estava muito defasado em relação às mulheres. Uma tendência que, se considerada linearmente, aponta para uma situação de equidade antes de 2030 entre os ocupados, e um pouco após entre os não-ocupados.
Essa mudança cultural na variação da taxa de não realização de afazeres domésticos que analisamos aqui, no entanto, não mostra sinais que tem necessariamente potencial para conduzir à equidade além da já importante questão de gênero. É uma variável com forte impacto, como argumentamos acima, para entendermos a existência de uma desvantagem de gênero que impede o desenvolvimento de mulheres por escassez de tempo para o aperfeiçoamento ainda maior em sua escolaridade e cuidados com saúde. Mas ao lado da já constatada melhoria desses indicadores sociais e do aumento da participação dos homens nos afazeres, mesmo que ainda em nível distante da equidade, a pobreza e a concentração de renda e riqueza se aprofundaram no país nesse mesmo período, especialmente sobre a renda média da mulher, que sofreu queda em 2017 e em 2019, enquanto a dos homens apenas em 2017, mesmo já sendo cerca de 30% maior no agregado do país entre as pessoas ocupadas.
Os homens podem estar realizando mais afazeres domésticos, aliviando em certa medida o grau da carga histórica sobre as mulheres, mas é bom frisar que ambos estão precisando se ocupar por mais horas por semana sem uma contrapartida de bem-estar econômico e social. O rendimento médio mensal real das pessoas ocupadas em 2019 equivalia a apenas 60% do mínimo constitucional necessário para o sustento familiar. E os que não estão ocupados, como vimos, colaboram menos na realização de afazeres domésticos. O impasse reside em que eventuais soluções de desequilíbrios nos afazeres domésticos não são suficientes para melhoria de qualidade de vida quando não há aumento médio da remuneração das famílias. As pessoas estão seguindo, então, para uma igualdade como igualmente pobres, e não uma igualdade realmente libertadora. A esperança é que uma mudança cultural rumo à equidade de gênero gera a coesão social necessária para fortalecer as pressões da sociedade civil sobre o Estado por pautas paralelas que desarmem a armadilha da pobreza, como a progressividade tributária, programas de transferência de renda, incentivo aos pequenos negócios e, claro, educação libertadora sintonizada com todas as mudanças culturais em curso.
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