Fernando de S. Coelho, professor do bacharelado e do programa de pós-graduação em Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo. Coordenador do Laboratório de Gestão Governamental (Lab.Gov - EACH/USP). Doutor em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas.
Murilo Lemos de Lemos, chefe da Assessoria de Relações do Trabalho da Prefeitura Municipal de São Paulo. Mestre em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getulio Vargas. Pesquisador do Laboratório de Gestão Governamental (Lab.Gov - EACH/USP). Professor universitário.
Andrea Leite Rodrigues, professora do programa de pós-graduação em Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo. Editora-chefe do periódico Cadernos Gestão Pública e Cidadaniada Fundação Getulio Vargas. Doutora em Administração pela Fundação Getulio Vargas.
Usualmente, os especialistas em gestão pública, independentemente de sua área de conhecimento, utilizam o termo Máquina Pública (em inglês, publicmachine bureaucracies)para se referirem ao conjunto de órgãos e entidades da administração pública. Como tratado, anteriormente, em artigo neste blog[1], a metáfora das organizações como máquinas - derivada do best sellerde Gareth Morgan -, remete à abordagem mecanicista de algumas escolas clássicas do managementorientadas pelo ideal de racionalização dos processos administrativos e da linha de produção.
Essa imagem das organizações como engrenagens e roldanas, satirizada por Charlie Chaplin no filme Tempos Modernos (1936), sustenta-se no setor público pela tradição de uma estrutura baseada em normas e regras do direito público que moldam a burocracia formal e operacional. Por consequência, surge a chamada Casa de Máquinas da gestão pública, na qual ocorre a secundarização de questões relacionadas às funções tático-gerenciais e ao comportamento organizacional (motivação e estresse no trabalho, além de questões relacionadas ao exercício da liderança e cultura organizacional).
A área-meio de gestão de recursos humanos (GRH), na administração pública brasileira, ilustra essa realidade: tradicionalmente, nas organizações públicas e unidades centrais de recursos humanos dos governos,a GRH não realiza propriamente a gestão de pessoas, limitando-se a um departamento de pessoal (DP) cujo papel é "tocar o cotidiano" de processos pecuniários, tais como as rotinas de folha de pagamento, o fluxo de férias, o controle de benefícios e a concessão de aposentadorias. A ausência de diretrizes/estratégias para a gestão de pessoas no setor público do país e a insuficiência de desenvolvimento gerencial das relações humanas em muitos dos nossos órgãos públicos, revela, por vezes, uma desumanização do serviço público. Identifica-se isso pelo desajustamento entre gestão e gente e/ou pela desconsideração dos servidores públicos como pessoas - sobretudo a mão-de-obra do nível hierárquico inferior, invisível na estrutura organizacional.
Mesmo existindo uma valorização da agenda de gestão de pessoas no setor público nacional nesta década, o rol de reflexões e ações focalizam os temas macroestruturais. Há pautas apoiadas, inclusive, por organizações da sociedade civil sem fins lucrativos e coalizões de atores públicos e privados, com iniciativas na União e em alguns governos estaduais. Há ações voltadas ao redimensionamento da força de trabalho, à integração de carreiras, à equalização de salários entre setor público e privado, aos critérios de nomeação para os cargos de direção pública, ao aperfeiçoamento do concurso público e à revisão da estabilidade. E, de fato, esse frontlisté fundamental! Porém, relegamos assuntos igualmente essenciais como capacitação contínua, comunicação interna e endomarketing, mudança organizacional, relações interpessoais, saúde ocupacional, ergonomia no ambiente de trabalho, clima laboral, suporte socioemocional e aprendizagem informal, dentre outros aspectos atinentes aos pressupostos do desenvolvimento organizacional e à perspectiva de qualidade de vida no trabalho.
Em adição, alguns diagnósticos - e diversas narrativas - para a reforma da GRH no setor público brasileiro, partem da realidade do serviço público federal, notadamente das carreiras de alto escalão e dos malefícios de seu corporativismo, como se fosse o retrato da organização do trabalho em todos os níveis de governo e órgãos da administração pública. Ignoram-se, grosso modo, as condições laborais do contingente de funcionários que pertencem às carreiras da burocracia do nível da rua que prestam os serviços públicos para o usuário-cidadão, bem como daqueles servidores da burocracia de baixo escalão que executam o task managemente/ou atividades de apoio técnico-operacional nas várias áreas setoriais do Poder Executivo nos estados e municípios.
Logo, considerando o desenrolar da pandemia da COVID-19 nos últimos 60 dias no Brasil e seus desdobramentos nas formas de produção e de trabalho no serviço público subnacional, captamos algumas situações que permitem, didaticamente, jogar luz em algumas questões até então preteridas no debate sobre modernização da gestão de pessoas nos governos. Enfim, são 6 (seis) pontos de atenção que servem como lições para (re)pensarmos as políticas e práticas de gestão de pessoas nos governos a partir do ideário de humanização da máquina pública.
- O teletrabalho e a necessidade da capacitação. A pandemia arremessou bruscamente o serviço público subnacional - com exceção dos ofícios essenciais (saúde, segurança, assistência social e limpeza pública) - no regime de teletrabalho. Além das dificuldades de adaptação ao home officepara qualquer trabalhador sem experiência com as ferramentas/tecnologias remotas (como ocorre com muitos professores da rede pública de ensino), muitas áreas-meio do setor público têm uma força de trabalho envelhecida com gaps de conhecimento e habilidades para o uso de TI, principalmente na administração pública municipal. Assim, o novo normal após o isolamento social exigirá, no curto e médio prazos, tendo em vista os servidores públicos dos grupos de risco da COVID-19, tanto um processo de planejamento com critérios e parâmetros para alocar essas pessoas em trabalho doméstico com a devida infraestrutura, como a organização de programas de capacitação com treinamentos para tal. É oportuno acionar as escolas de governo e instituições públicas congêneres para desenharem formações rápidas com formato, metodologia e linguagem apropriadas;
- O déficit de comunicação interna na máquina pública. A maior parte dos governos não dá importância aos instrumentos específicos de comunicação eficaz com seu corpo de colaboradores. No contexto da pandemia observa-se a iniciativa de alguns políticos e dirigentes públicos de reconhecerem, com elogios públicos e agradecimentos frequentes, o trabalho de algumas categorias profissionais que enfrentam à COVID-19 na linha de frente do serviço público (enfermeiros, médicos, agentes de saúde, assistentes sociais, policiais etc.). Todavia, é sintomática a falta de mecanismos gerenciais para comunicar, de maneira não protocolar, as decisões, iniciativas e informações das instâncias superiores para toda a máquina pública, até mesmo para reforçar o senso de pertencimento e o comprometimento dos servidores públicos em torno das ações emergenciais. Nas grandes estruturas governamentais, diga-se de passagem, até mesmo os informes regulares têm limites de propagação na burocracia pública; a título de ilustração, na Prefeitura Municipal de São Paulo, dos 116 mil funcionários na ativa, somente 30.000 têm e-mail corporativo;
- Falhas de suporte organizacional e clima laboral deteriorado. O modelo de organização da produção e do trabalho no serviço público é, mormente, taylorista, com foco no trabalho individual. Soma-se a essa característica, as lacunas qualitativas e quantitativas da burocracia de médio escalão (notadamente em organizações públicas no nível local) para a função de desenvolver/liderar equipes de trabalho. Por conseguinte, as pessoas em posição de supervisão dão mais importância ao controle do que ao aprendizado, situação que se agrava a medida que há chefes descompromissados com a organização pública (por exemplo, ocupante de um cargo DAS intermediário, decorrente do clientelismo). O resultado se dá em falhas de suporte organizacional diante das mudanças que a crise do coronavírus impõe aos órgãos públicos. Tornou-se comum o relato de servidores públicos que estão desorientados sobre como agirem perante o vácuo gerencial do teletrabalho; e entre aqueles que se mantêm na labuta presencial, o intenso afazer de "apagar incêndio se virando nos trinta", desassistido de uma liderança socioemocional ou transformadora. Tal situação não é revelada ao grande público e tem por consequências nefastas o desânimo coletivo, a deterioração do clima laboral e a perda do tônus motivacional na maior parte do funcionalismo;
- Agravamento dos problemas de saúde ocupacional e condições de trabalho inadequadas. Em condições de trabalho normal, muitos cargos/carreiras do setor público, em nível subnacional, enfrentam problemas de saúde ocupacional relacionados com condições de trabalho inadequadas. Cita-se o afastamento de professores da rede pública estadual de São Paulo, cujas principais causas - elencadas em uma dissertação de mestrado da Faculdade de Saúde Pública da USP [2]- são estresse e síndrome de burnout, problemas nas cordas vocais pela sobrecarga de trabalho, problemas osteomusculares (ombros) pela inadequação ergonômica da lousa e alergia respiratória advinda de inalação de pó de giz. Imaginem, então, como estão os servidores públicos da saúde nos últimos dois meses, com os nervos à flor da pele, seja pela pressão do momento, pelas jornadas de trabalho mais longas, pelo risco inerente de contágio (extensível a seus familiares) e, acima de tudo, pela falta de instrumentos de trabalho adequados e também de equipamentos de proteção individual (EPIs). O alerta é que nós normalizamos no setor público brasileiro a desatenção à saúde laboral; e as condições de trabalho inadequadas em muitas áreas/setores tornou-se uma paisagem, em vez de um problema público concreto;
- Brutalização da política, a pressão imanente da pandemia e o aumento do assédio moral. Num contexto nacional de discursos raivosos e de brutalização da política (vide a reunião ministerial de 22 de abril), potencializado pela pressão imanente da pandemia sobre o serviço público, vem à tona, crescentemente, as queixas e reclamações de assédio moral. Sabe-se da existência, de longa data, de uma "guerra fria" entre chefias e funcionários em muitas organizações públicas que redundam em um ambiente de trabalho nocivo com assédio moral mútuo. Por um lado, temos chefes (geralmente externos à burocracia e que ocupam cargos de livre-provimento) que estigmatizam funcionários ou os transferem para a "Sibéria" (nome fantasia que se atribui a uma unidade infame existente em praticamente todos os governos, onde são realocados os servidores que não se encaixam nos padrões ou causam desconforto). Em contrapartida, diante da impossibilidade de demissão, temos funcionários efetivos que, habitualmente, desqualificam ou ofendem os chefes. É a hora e a vez do setor público brasileiro encarar de forma mais coordenada e assertiva esse tipo de violência no ambiente do trabalho dos governos; e
- Revalorização da imagem e fortalecimento da capacidade institucional do serviço público. Como apontado por muitos especialistas em gestão e políticas públicas, a crise do COVID-19 é uma oportunidade para a (re)valorização da imagem do serviço público e do protagonismo do Estado, em um panorama na União em que, segundo alguns autores[3], assistimos a um assédio organizacional do governo Bolsonaro em relação a um conjunto de órgãos e entidades do Poder Executivo federal. A pandemia escancara a realidade da desigualdade, da ausência de algumas políticas públicas e da insuficiência de alguns serviços públicos para atender demandas regulares, que dirá as extraordinárias e abruptas nesses 60 dias de isolamento social. Nesse cenário dramático, em que tomam importância algumas vozes que difamam os servidores públicos, ao mesmo tempo encontra-se neles a tropa de choque do combate às mazelas. Paradoxalmente, os que recebem as pechas de improdutivos são, repentinamente, os protagonistas desta ópera trágica que um dia se tornará uma saga de heróis desconhecidos, mas não porque estão mascarados, e sim, porque quando não estão invisíveis, estão nas narrativas mais desqualificadoras. Oxalá a experiência, nem tão curta, de mudanças drásticas e adaptações forçadas nos levem a (re)valorizar a imagem do serviço público no país - cuja permanência, no longo prazo, depende do fortalecimento da capacidade institucional (financeira, normativa, material e HUMANA!) da prestação de serviços públicos na nossa federação.
Vale salientar que, ao advogar em prol desses 6 (seis) pontos de atenção na gestão de pessoas dos nossos governos, não estamos aderindo ao coitadismo ou vitimização dos servidores públicos, mas, sim, defendendo a oferta pelo Estado dos meios adequados em seu ambiente de trabalho para a prestação dos serviços públicos. Esses problemas não podem ser desprezados ou considerados como "frescurada" - como propalam alguns políticos e dirigentes públicos que generalizam a visão de que todos os servidores públicos constituem uma casta de trabalhadores privilegiada e ineficiente. Em linhas gerais, são vacâncias na gestão de pessoas que requerem investimento financeiro, trabalho meso e micro gerencial nas organizações públicas e mudança cultural e, portanto, não se enquadram, meramente, no ajuste fiscal do serviço público e na reforma administrativa dos seus institutos jurídicos.
No caos da pandemia, mesmo em condições de trabalho adversas, funcionários públicos dos estados e municípios - 80% dos quais não integram as carreiras/cargos da elite burocrática - demonstram sua capacidade de inovação. Muitos constroem o próprio avião, enquanto pilotam, servem os passageiros e cuidam dos que ficaram em terra. É mister registrar a aprendizagem desse período, pois marcará um tempo em que servidores, tanto da linha da frente como do backoffice, demonstraram sua competência em ações emergenciais e sua capacidade de adaptação.
E para aproveitar e manter essa experiência, a área funcional de GRH nos governos subnacionais necessita ser remodelada, revisando seu papel e qualificando as equipes de trabalho, para que vá além da praxe trabalhista e apoie as organizações públicas para construírem políticas de recursos humanos e práticas de desenvolvimento gerencial que (re)conectem a gestão e as pessoas, humanizando a máquina pública. Por fim, mas não menos importante, a participação de organizações da sociedade civil (como ONGs, institutos e fundações empresariais) é muito bem-vinda, desde que seus agentes se aproximem da burocracia despidos de preconceitos oriundos de rotulagens; se interpretar tudo como paternalismo e visualizar todos como corporativistas, sem separar o joio do trigo, as intervenções vão se tornar despropositadas. Ademais, se posicionar as ações como projetos e não trabalhar para a institucionalização de programas que estruturem - coletiva e permanentemente - uma inteligência de gestão de pessoas, os aperfeiçoamentos podem ser descontinuados com a alternância de gestão.
[[1]]https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/a-casa-de-maquinas-da-gestao-publica-na-crise-do-coronavirus-o-aqui-e-agora-das-areas-meio-nas-acoes-emergenciais-dos-governos/
[[2]]https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-28062011-101241/publico/MarioPorto.pdf
[[3]]https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/por-que-entender-e-combater-o-assedio-institucional-no-setor-publico-brasileiro/
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