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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Lei do Retrofit: de volta à São Paulo dos anos 60?

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Por Redação
 Foto: arquivo pessoal.

Marcos Rodrigues de Paula, Administrador Público pela FGV EAESP e, atualmente, graduando em Economia na FGV EESP

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Repleto de cultura, história, infraestrutura e pontos boêmios, o centro da cidade de São Paulo é um dos mais icônicos dentro da América Latina. Com uma arquitetura memorável e heterogênea, a região central disfruta de emprego, lazer, cultura, moradia e transporte - tudo ao mesmo tempo. Todavia, mesmo com as suas diversas qualidades, tais não se apresentam como atraentes o suficiente para moradia, lazer e cultura para grupos de peso nas demandas urbanas, como, por exemplo, a própria elite - focalizando majoritariamente na zona sudoeste da cidade.

Nesse mesmo sentido, prédios dotados de espaço e boa localização acabam, atualmente, por se encontrar ociosos ou, de certa forma, vazios - marcando um mau uso do espaço público em uma região muito rica e frente a uma demanda habitacional gigantesca dentro da cidade de São Paulo. Para tal, o Programa Requalifica Centro (Lei 17.577/21), conhecido como a Lei do Retrofit, promulgado em 2021 de autoria do prefeito Ricardo Nunes, se apresenta como um possível caminho de recuperação e requalificação do centro frente à subutilização da área e a partir do crescimento da cidade em direção às regiões mais limítrofes. O intuito do programa é, através de incentivos fiscais e edilícios, potencializar e estimular a requalificação (retrofit) de prédios antigos da região central da cidade - além de incentivar a conversão para uso residencial ou misto.

Em si, a lei é inovadora por ser um marco regulatório do retrofit dentro do centro paulista, levando em consideração a questão da sustentabilidade e do reaproveitamento de espaços ociosos. Todavia, como política pública é preciso pensar se o marco se apresenta robusto o suficiente para endereçar a questão do retrofit de maneira adequada e eficiente. Neste sentido, faz-se necessário questionar se a lei envolve de maneira ativa os diferentes interessados e envolvidos na questão do licenciamento, reforma, requalificação e uso dos prédios. Não obstante, é preciso verificar se o programa possui uma modelagem economicamente viável a ponto de enxergar os possíveis efeitos gerados a partir daquela e como afetam o entorno da região. Finalmente, precisa-se estudar se existe um diálogo com o Plano Diretor Vigente - o qual estrutura e direciona como as relações de ocupação, uso e compartilhamento do solo na cidade devem ser realizadas.

Antes de mais nada, faz-se necessário entender a dinâmica do centro de São Paulo - isto é, a sua fase de origem, auge e declínio com a mudança da elite e principais conglomerados empresariais para a região sudoeste da cidade - tais como, distritos da Subprefeitura de Pinheiros, neste caso, bairros de Pinheiros, Alto de Pinheiros, Jardim Paulista e Itaim Bibi.

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Como a área central de inúmeras megacidades ao redor do mundo, o centro de São Paulo se construiu através de dois grandes públicos que se mantiveram praticamente os mesmos durante toda a sua história: a elite e a classe trabalhadora. Em sua organização territorial, o espaço deu forma para representar a persistente dinâmica centro-periferia, isto é, uma segregação entre acesso às infraestruturas e serviços de modo facilitado às classes mais altas, enquanto em busca de uma moradia digna e acessível, às classes mais baixas orientou-se um estabelecimento em regiões afastadas suportadas por autoconstrução e longas linhas de ônibus.

Com o desenvolvimento da cidade, a crescente migração de terceiros para a região em busca de emprego e uma condição melhor de vida consolidou o centro de São Paulo como centro financeiro e, consequentemente, uma série de mudanças impactaram na dinâmica da região. Isto é, houve uma maior inquietação em relação a segurança, violência e custo elevado de vida - principalmente no período de crise durante a década de 80. Não obstante, também propulsionado por incentivos públicos, a elite e os centros empresariais viram-se motivados para o investimento e estabelecimento em áreas na região sudoeste da cidade, migrando-se gradualmente para Avenida Paulista e, posteriormente, para Berrini e Faria Lima. Intensificou-se, a partir daí, a saída do centro por parte da elite paulistana que, por sua vez, configurava a devida atenção que a região antes recebia pelos conglomerados empresariais e cofres públicos.

É importante ressaltar como o centro nunca deixou de ser vivido. Existe sim uma série de problemáticas no entorno do que acontece na região, todavia, as classes trabalhadoras e até mesmo parcelas da classe média-alta ainda continuam a usufruir e trabalhar na área. A Subprefeitura da Sé - que engloba os distritos da Bela Vista; Bom Retiro; Cambuci; Consolação; Liberdade; República; Santa Cecília e Sé, segue na vice-liderança das regiões que mais oferecem número de empregos formais, exclusive a administração pública, com 625.327 ocupações - contra cerca de 637,635 na região da Subprefeitura de Pinheiros, segundo dados atualizados em 2020 da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciatura (SMUL).

Deste modo, atenta-se: o centro foi abandonado pela elite e grandes empresas e não de fato pela população como um todo. Não obstante, o que acaba por ocorrer em virtude disso é uma deterioração do bom uso do espaço público no sentido de vacância imobiliária e ociosidade dos prédios antes ocupados. Com uma elevada desocupação, a população trabalhadora vê-se forçada a morar em regiões afastadas e limítrofes, gerando um maior gasto com deslocamento diário - não só na relação financeira, como também tempo-distância. Segundo os últimos dados oficiais da Prefeitura de São Paulo, ainda que um pouco desatualizados, em 2010 encontravam-se cerca de 33 mil imóveis desocupados na região em meio a um déficit habitacional de 474 mil domicílios, de acordo com o Sindicato da Habitação (Secovi-SP) em 2021.

Por conseguinte, pode-se aprofundar a discussão: ao invés de perguntar o porquê de um espaço público dotado de lazer, cultura e infraestrutura urbana ser rejeitado por boa parcela da população, é preciso entender o que impede a população interessada, como os trabalhadores na região, de se permanecerem no local. É um debate que, por sua vez, acaba por ser muito mais denso. Mesmo com uma elevada ociosidade na área central, tal não é levada em consideração para combater o elevado déficit habitacional. Recuperar a região central passa pela questão de somar uma série de perspectivas que compõem a noção de bem-estar para um cidadão - desde comodidade até segurança, de acessibilidade até lazer e muito mais.

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Recuperar o interesse pelo centro, reaproveitar o espaço como uma forma de democratizar o acesso à moradia digna e ter a capacidade de transformar a região de uma relação de trabalho diurno-integral para uma relação de convívio e vivência full time é um ponto mais do que crucial para uma metrópole global como São Paulo entregue, minimamente, uma condição de bem-estar adequada para a sua população. Neste sentido, em um marco regulatório inovador como a Lei do Retrofit, é preciso tomar atenção a tais pontos e a quem será destinado os ganhos com o uso do espaço e o que será feito com ele.

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Para tal, analisando o processo de formulação, criação e desenvolvimento da Lei do Retrofit, pode-se notar que dentro da Câmara Municipal da Cidade de São Paulo não houve um embate criterioso acerca dos estímulos que são discorridos dentro do programa e, muito menos, um diálogo extenso e holístico com os diversos atores interessados com a proposta de requalificação e conversão de imóveis no centro. A partir dos documentos disponibilizados pela SPLegis no entorno da tramitação do programa, ainda em forma do Projeto de Lei 447/2021, não houve uma discussão bem elaborada em torno das renúncias fiscais e, muito menos, sobre quem poderiam ser os beneficiados de tal política.

Na forma legal, ausenta-se, também, de descriminar o enfoque para moradia social e moradia popular dos edifícios requalificados. Regiões que, de acordo com a Lei do Uso e Ocupação do Solo (LUOS) e com o PDE vigente, deveriam ser submetidas, em determinado e específico percentual para promoção de moradia digna de classes trabalhadoras. Não é somente uma problemática que a política pública no momento da implementação da agenda pública escolheu não adotar, mas sim uma questão de diálogo com as operações, orientações e regulamentações que já se dão dentro da cidade de São Paulo - que foram criadas, justamente, visando uma maior democratização e ampliação do espaço público para a população como um todo.

É irresponsável, além disso, promulgar uma lei que estipula uma série de incentivos edilícios e fiscais sem, pelo menos, estruturar um estudo de viabilidade econômica, um estudo prévio de impacto aos cofres públicos e, principalmente, um estudo dos efeitos gerados na região. Não é adequado conceder benefícios e direitos sem, pelo menos, entender o custo financeiro deste ao governo e sem verificar o impacto que tal poderia causar. De certa forma, abrir espaços privilegiados para reforma poderia levar a uma direção oposta do que se é defendido no PDE e no próprio Programa Requalifica Centro e criar uma gentrificação das áreas e expulsão total da população remanescente na região - isto é, desde classes mais baixas trabalhadoras a população em situação de rua.

A Lei do Retrofit endereça questões cruciais e regulamenta a reutilização e adaptação dos prédios e edifícios do centro, entretanto, na sua forma legal ausentam-se dispositivos que garantam contrapartida dos atores envolvidos, distribuição do uso do espaço de forma equitativa e um rico debate entre as diferentes partes interessadas. Para tal, faz-se necessário levar em consideração estudos que estimem o tamanho do gasto, o tamanho do impacto e as condições necessárias para que a cidade como um todo volte a olhar para o berço da cidade como uma região farta de possibilidades e cheia de frutos a se dar à população.

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Nota

[1] O presente artigo foi derivado do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Curso de Graduação em Administração Pública (CGAP) da FGV EAESP intitulado "A Lei do Retrofit e o Debate Acerca da Requalificação do Centro de São Paulo", orientado por Alexandre Abdal.

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