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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

MMT e a PEC da Transição

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Por REDAÇÃO

Simone Silva de Deos, Professora de Economia na Unicamp e Presidente do Conselho do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD)

Daniel Negreiros Conceição, Professor de Economia para a Gestão Pública na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Presidente IFFD

Glaucia Campregher, Professora de Economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Vice-Presidente do IFFD

Fabiano Abranches S. Dalto, Professor de Economia na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Diretor de Pesquisas do IFFD

Samuel Braun, Cientista Político e Diretor Executivo do IFFD

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David Deccache, Assessor Legislativo na área econômica na Câmara dos Deputados e Diretor Financeiro do IFFD

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Caio Vilella, Professor de Economia na UFRJ e Diretor de Projetos do IFFD

André Luis Doneux Ferreira, Doutor em Filosofia pela USP e Diretor de Comunicação

Recentemente, a MMT (Teoria da Moeda Moderna ou Teoria Monetária Moderna, da sigla em inglês) foi referenciada no parecer feito pelo Senado sobre a proposta da chamada  PEC da Transição. Negociada junto ao Congresso Nacional pelo governo eleito do Presidente Lula, a PEC da Transição autoriza que o Governo Federal gaste mais do que o valor proposto no Orçamento de 2023, enviado ao Congresso pelo Governo Bolsonaro.

No parecer inicial sobre a PEC, o relator da matéria na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) justificou a aprovação dos gastos adicionais com base nos conhecidos efeitos multiplicadores de renda dos gastos públicos, citando Keynes. Além disso, fez referência explícita à tese associada à MMT de que governos monetariamente soberanos não sofrem restrições financeiras involuntárias para realizarem pagamentos em sua própria moeda. Segundo a justificativa do relator, "como os títulos emitidos pelo Tesouro Nacional são em reais, não existe a possibilidade de o governo não pagar". Também com base nessa proposição, o relator concluiu haver maior probabilidade da relação dívida/PIB cair por conta do aumento dos gastos públicos e seus respectivos efeitos multiplicadores sobre a renda.

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À medida que o relatório começou a circular nas redes sociais, a percepção de que o parecer técnico era favorável à proposta e que embasava sua argumentação em Keynes e na MMT levou porta-vozes do mercado financeiro, e mesmo parte da imprensa, a atacarem a MMT como anticientífica e comparável a crenças bizarras como o terraplanismo e o uso de cloroquina para tratamento da Covid-19! Esses adjetivos, antes de dizer qualquer coisa sobre a Teoria da Moeda Moderna, dizem bastante sobre o estado do debate macroeconômico no Brasil. Sempre que se ousa desafiar a crença dominante na Faria Lima, por falta de argumentos fundamentados, abundam os adjetivos depreciativos e ataques pessoais nas críticas dos porta-vozes do mercado financeiro.

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A presente Nota tem por objetivo argumentar que o conteúdo do parecer bem como sua conclusão - favorável à aprovação da PEC - estão solidamente respaldados por pesquisa acadêmica rigorosa e fartas e consistentes evidências empíricas. Ademais, pretende chamar atenção para dois pontos: (1) se o governo se mantiver coerente com sua promessa eleitoral de expandir gastos, que são fundamentais para a reconstrução e expansão de infraestrutura social, física e ambiental do país, as reações do mercado em relação a essas políticas não terão muitos efeitos sobre a realidade, isto é, sobre os efetivos resultados econômicos; e (2) as evidências mostram que as instituições financeiras não são boas previsoras do desempenho econômico do país exatamente porque têm se utilizado de modelos econômicos amparados por uma teoria que é reiteradamente contestada pelos fatos[1].

A PEC da Transição busca autorizar um gasto de cerca de R$ 168 bi acima do Teto de Gastos para 2023 e 2024 sem a identificação de qualquer fonte tributária, o que está longe de ser uma novidade, já que algo muito semelhante ocorreu em anos recentes. Na verdade, essa prática já vinha acontecendo desde 2019 e se intensificou, de forma dramática, a partir de 2020 com a emergência da pandemia do coronavírus. Aliás, ao longo de todo o Governo Bolsonaro (2019 a 2022) foram quase R$ 800 bilhões gastos "fora" do Teto Constitucional[2]. Apenas em 2020, o governo gastou mais de R$ 500 bilhões, sem previsão orçamentária, só para enfrentar as consequências econômicas e sanitárias da pandemia. Além disso, por meio do Banco Central, o governo se prontificou a disponibilizar R$ 1,2 trilhão para o sistema financeiro - medida essa amplamente aplaudida pelos participantes do sistema financeiro[3]. Tudo isso ocorreu em meio à maior queda na arrecadação tributária em anos e com a taxa Selic mais baixa em mais de 40 anos! Não obstante o crescimento de 14 pontos percentuais da dívida pública como fração do PIB em 2020, a taxa de juros se manteve abaixo de pisos históricos. Em suma, nem os déficits recordes nem o crescimento vigoroso da dívida pública exerceram qualquer influência no comportamento da taxa de juros, ao contrário do que preveem os modelos teóricos utilizados pela maior parte dos agentes no mercado financeiro.

Os modelos analíticos utilizados no mercado financeiro produzem, sistematicamente, erros de previsão. Por exemplo, as principais instituições financeiras da economia brasileira previam, no relatório Focus de 31 de dezembro de 2021[4], que a dívida líquida do setor público chegaria a 63% do PIB em 2022. Em outubro de 2022, a dívida líquida não havia chegado a 50% do PIB (estava em 48,98% segundo o Banco Central[5]). O curioso é que, enquanto esperavam um déficit primário maior e uma relação dívida/PIB mais alta do que acabou efetivamente ocorrendo, os bancos acreditavam que a taxa de juros seria mais baixa do que foi. De fato, a correlação do déficit e do nível da dívida pública com o nível da taxa de juros básica é baixíssima, quando não invertida. A razão para isso é explicada com clareza pela MMT: a autoridade monetária tem amplo controle sobre a taxa de juros, independentemente do nível da dívida pública como fração do PIB.

Assim como ocorreu em 2020, bem como em 2021 e em 2022 (como sempre!), os gastos previstos na PEC da Transição serão financeiramente viáveis porque, como demonstra a MMT, todo gasto público é, inevitavelmente, acompanhado da emissão de moeda[6]. Somente após a efetivação do gasto e a consequente introdução de moeda estatal no sistema bancário (como reservas bancárias) os contribuintes ficam aptos a pagarem seus tributos. Após os tributos recolhidos, caso ainda sobrem reservas bancárias em excesso no sistema bancário, é inevitável que os bancos busquem comprar títulos públicos, sejam em posse do Banco Central sejam emitidos pelo Tesouro. O excesso de demanda por títulos pressiona a taxa de juros interbancária para baixo. Nesse caso, é o Banco Central que acomoda a demanda dos bancos por aplicações rentáveis, oferecendo mais títulos públicos à taxa de juros politicamente determinada em troca das reservas bancárias em excesso. Em outras palavras, os gastos do governo são sempre financiados pela emissão de moeda estatal. Ainda que importante para outros propósitos (por exemplo, destruição de riqueza ou poder de compra, e desincentivo ao consumo de bens indesejados) a tributação não pode, logicamente, servir como fonte de financiamento do gasto. Por sua vez, os títulos do governo são simplesmente uma opção de poupança financeira sem risco e com remuneração a juros concedida pelo governo com o propósito de manter a taxa de juros de curto prazo no nível determinado pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom).

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O mecanismo operacional relatado acima mostra que o governo não compete com o mercado por fundos emprestáveis quando incorre em déficits orçamentários. Pelo contrário, é justamente o déficit que cria a moeda necessária para que o mercado financeiro adquira, como um ativo, a dívida pública do governo. Só o déficit público cria moeda estatal (reservas bancárias) que pode ser trocada por títulos. Assim, restrições fiscais autoimpostas que buscam evitar o endividamento público supostamente insustentável (como a lei do Teto de Gastos, a LRF e a Regra de Ouro) não são necessárias para preservar a capacidade do Governo Brasileiro de seguir financiando seus gastos. São apenas regras orçamentárias arbitrárias e desnecessárias, que estipulam a agenda econômica da austeridade como o único caminho a ser seguido para impedir que o governo se utilize do gasto público como ferramenta de promoção do desenvolvimento da nossa economia, independentemente da demanda democrática exposta nas urnas.

São essas constatações que deixam os adeptos da austeridade fiscal incomodados com a MMT, na medida em que o reconhecimento de tais mecanismos operacionais aniquila o mito da dependência do governo do dinheiro oriundo do sistema financeiro privado. A MMT revela que o governo emissor de sua própria moeda é monetariamente soberano e que, como tal, permite aos políticos estabelecerem o orçamento de acordo com as disponibilidades reais de recursos produtivos (força de trabalho, matérias-primas, tecnologia, etc.) e as necessidades e prioridades da população.

Finalmente, o recorrente uso da falácia de que a MMT preconiza gastos ilimitados e, consequentemente, hiperinflacionários, decorre do absoluto desconhecimento da teoria. Em sua descrição dos mecanismos envolvendo o gasto público, a MMT não preconiza qualquer política em específico, apenas constata fatos incontornáveis. Como proposta de uma regra de gastos, a MMT segue o princípio estabelecido pelas Finanças Funcionais: o governo deve gastar até o limite do pleno emprego dos recursos reais (força de trabalho, matérias-primas, capacidade produtiva, etc.) disponíveis. Ultrapassar tal limite produziria pressão inflacionária. Ficar aquém desse limite gera desperdício de recursos (desemprego).

Portanto, a MMT reconhece que restrições de recursos reais (disponibilidade de força de trabalho, matérias primas, etc.) para os gastos públicos existem em maior ou menor grau. Contudo, nenhuma delas tem relação com a possibilidade de escassez do dinheiro para o Estado, uma vez que (1) é o Estado quem emite a moeda capaz de realizar todos os pagamentos realizados numa economia doméstica e (2) cada pagamento estatal é sempre realizado através da emissão de moeda.

Naturalmente, economistas associados à MMT reconhecem que a busca do pleno emprego, através do planejamento funcional dos gastos públicos, deve estar atenta aos gargalos de oferta responsáveis pelo surgimento de pressões inflacionárias mesmo quando a economia está operando aquém de seu limite produtivo absoluto. Em economias periféricas, fortemente dependentes da importação de insumos e tecnologias indisponíveis domesticamente, o gargalo de oferta mais problemático costuma ser o cambial. Como a capacidade de importar, para uma dada economia, depende da capacidade dos importadores obterem moeda estrangeira e, diferentemente do produto doméstico que normalmente aumenta para satisfazer uma demanda maior, a capacidade de obter moeda estrangeira não tende a aumentar com a maior demanda doméstica, é comum que economias periféricas experimentem pressão inflacionária decorrente da desvalorização cambial enquanto crescem, mesmo antes de atingirem o pleno emprego.

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É importante apontar que tal pressão inflacionária não é consequência exclusiva da expansão fiscal, mas do próprio crescimento da renda/produto doméstico e do nível de emprego. A mesma pressão inflacionária seria observada caso a expansão econômica fosse resultado do aumento do investimento privado, por exemplo - talvez até de maneira mais intensa, uma vez que a propensão a importar de investidores privados tende a ser maior que a de um governo preocupado em evitar pressões inflacionárias.

De qualquer forma, a simples existência do gargalo de oferta cambial não deve ser motivo para que governos deixem de perseguir o pleno emprego e o desenvolvimento por meio da gestão fiscal funcional, sem a autoimposição de restrições fiscais que objetivem o atingimento de metas contábeis arbitrárias. O gargalo cambial exige apenas que o gasto público seja muito bem planejado, direcionado sempre que possível para criar demanda por bens e serviços que possam ser produzidos domesticamente, e/ou para produzir efeitos desinflacionários para a economia, como através de investimentos públicos redutores de custos de produção (por exemplo, para tornar mais eficiente e barato o transporte de mercadorias e a produção de energia). Além disso, a gestão monetária deve estar atenta para neutralizar e/ou coibir comportamentos desestabilizadores para o mercado cambial, para o sistema financeiro nacional e para a economia em geral, seja por meio da administração de preços financeiros estratégicos (como o juro referencial e a remuneração de contratos de swaps cambiais), ou da regulação.

Em relação ao debate nacional atual, a MMT advoga pela inversão da perspectiva hoje predominante: o planejamento orçamentário deve se guiar pela máxima provisão de bem-estar social possível para a população, com o pleno uso dos recursos produtivos (força de trabalho, matérias-primas etc) disponíveis. Regras fiscais que limitem o gasto público em nome de resultados contábeis descontextualizados economicamente, sejam elas relacionadas à previsão de receitas ou à previsão de alguma trajetória da relação entre dívida pública e o PIB, são critérios sem fundamento na realidade e devem ser simplesmente eliminadas em benefício do uso pleno e socialmente orientado dos recursos produtivos disponíveis[7].

Para resumir nosso argumento, entendemos que não havia necessidade de mencionar a MMT no Parecer técnico da CCJ, uma vez que apresenta fatos verificavelmente verdadeiros, independentemente de estarem associadas a uma ou outra escola de pensamento. Por outro lado, o ocorrido evidencia que há economistas de altíssimo nível no quadro de assessores econômicos do Senado brasileiro que estão muito atentos aos fatos reais[8].

O passado recente brasileiro dá mostras de que, ao invés de nos escondermos atrás de mitos fiscais, a sociedade ganharia mais se a gestão macroeconômica estivesse orientada conscientemente pela realidade concreta da operação das finanças públicas. Negar o poder financeiro a um governo democrático para realizar projetos desejáveis e economicamente viáveis para a sociedade em nome de regras inexequíveis na prática, inconsistentes com a realidade e que não estão fundamentadas na ciência econômica mais avançada, pode ser o caminho mais curto para permitir o retorno de um governo fascista ao poder, e a utilização do próprio poder financeiro do Governo para a implantação de um projeto obscurantista. A ciência, antes de tudo, não nega os fatos.

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Notas

[1] WP-Trouble.pdf (paulromer.net)

[2] Bolsonaro furou teto de gastos em R$ 795 bi em 4 anos de governo - BBC News Brasil

[3] Banco Central anuncia conjunto de medidas que liberam R$ 1,2 trilhão para a economia -- Português (Brasil) (www.gov.br)

[4] Focus - Relatório de Mercado

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[5] SGS - Sistema Gerenciador de Séries Temporais (bcb.gov.br)

[6] IFFD_Policy-Note-n3.pdf (iffdbrasil.org)

[7] IE-UFRJ Discussion Paper (excedente.org)

[8] Veja o caso do Japão, com dívida de mais de 250% do PIB: Gabinete do Japão aprova gastos extras no orçamento e eleva dívida (cnnbrasil.com.br); e também dos EUA: Orçamento trilionário de Biden deve levar dívida pública dos EUA para nível recorde - Forbes; e União Europeia:Plano de Recuperação da Europa. Para a China, veja China aprova US$ 146 bi de estímulo, mas efeito é incerto | Mundo | Valor Econômico (globo.com). Para o caso da Bolívia, veja Bolívia retoma crescimento e prioriza plano de reconstrução centrado no investimento público - Hora do Povo.

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