Luiz Ugeda, Pós-Doutor em Direito (UFMG) e doutor em Geografia (UnB). Advogado e Geógrafo. CEO da Geodireito e da Geocracia
Victor Carvalho Pinto, Doutor em Direito Econômico e Financeiro (USP). Servidor Público e Advogado. Coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper
A Light informou, em 12 de maio, que entrou com pedido de recuperação judicial na 3ª Vara Empresarial do Estado do Rio de Janeiro em caráter de urgência, citando dívidas de cerca de R$ 11 bilhões. Independentemente da motivação, ou mesmo de possíveis críticas a gestão da empresa que possam ser realizadas, a concessionária carioca, que responde por 20% do total de energia perdida no país por furto no segmento residencial e de pequeno comércio, joga luz em um tema central para a coesão territorial: a tolerância ilimitada com a ocupação irregular do solo.
O setor elétrico no Brasil enfrenta um grande desafio quando se trata de garantir o suprimento de energia elétrica em áreas periféricas e de baixa renda. Muitas vezes, como demonstra a Light, as distribuidoras de energia têm dificuldades para lidar com furtos, fraudes e inadimplência, o que acaba gerando um caos territorial.
De acordo com a Constituição, a competência para legislar sobre energia elétrica é da União. No entanto, a segurança pública é responsabilidade dos estados e a ocupação do território é atribuição dos municípios. Isso acaba gerando uma divisão de responsabilidades que muitas vezes não é bem definida, o que dificulta a solução de problemas relacionados à informalidade. Um exemplo nesse sentido foi a tentativa do Município do Rio de Janeiro de obrigar unilateralmente as concessionárias de eletricidade, telefonia e televisão a cabo a passar toda a fiação aérea para o subsolo, mediante inclusão dessa determinação em seu plano diretor de 2011. A iniciativa foi barrada pelo Poder Judiciário, por impor às empresas um ônus que não estava previsto em sua concessão original.
Esse precedente não constitui um obstáculo à solução do problema. Tendo em vista que se trata de uma medida de interesse do próprio setor elétrico, uma vez que o enterramento dificultaria as ligações clandestinas, caberia à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), incluir esses investimentos como metas progressivas das concessões de distribuição e considerar esse custo nas revisões tarifárias que ocorrem periodicamente. A valorização imobiliária gerada pelo enterramento poderia, inclusive, ser capturada pela cobrança de contribuição de melhoria, reduzindo, assim, o impacto tarifário da medida. Para os novos empreendimentos imobiliários, a fiação subterrânea já poderia ser exigida como norma, dispensando, assim, o custo de um enterramento futuro.
Providências dessa natureza não apenas se revelariam superavitárias no longo prazo, pela diminuição de ligações clandestinas e acidentes, mas contribuiriam para tornar as cidades mais aprazíveis, pela melhoria da paisagem urbana. Na verdade, a própria imagem de fios clandestinos, sobrepostos à rede oficial, acaba por se mostrar uma metáfora da situação de ilegalidade tolerada, criando um clima de impunidade que legitima as ações criminosas.
A solução frequentemente adotada, de substituir as ligações clandestinas por ligações oficiais, muitas vezes deixa de observar a necessária cautela. A conta de luz é um documento oficial, que serve como prova de posse. Os ocupantes passam a ter um comprovante de endereço, com base no qual todas as demais ações serão realizadas: água, telefone, emprego, crediários etc. Além disso, a disponibilidade de energia torna a ocupação atrativa para um segmento maior da população, consolidando, assim, o assentamento.
Na ausência de uma análise urbanística e ambiental, o setor elétrico fomenta indiretamente a ocupação irregular de áreas de risco ou de proteção ambiental por pessoas que não medem as consequências locacionais de seu pedido. Áreas sujeitas a deslizamentos, alagamentos ou assoreamentos acabam sendo ocupadas devido à equivocada visão de que seria obrigação da distribuidora promover essas ligações.
É natural que, ao ocupar área de risco, a estatística se encarregue de, em algum momento, enviar sua fatura. As chuvas torrenciais em vários municípios brasileiros, bem como os deslizamentos e alagamentos, tem comprovado que as permissividades das políticas públicas se transformam em tragédia anunciada. O infortúnio é atribuído a Deus, e não a uma política pública absolutamente equivocada, que coloca os mais pobres em uma verdadeira roleta russa perante os fenômenos climáticos.
Mas há solução. No Uruguai, como exemplo, a Lei de Ordenamento Territorial e Desenvolvimento Urbano Sustentável exige que as empresas prestadoras de serviços de água potável, eletricidade, telefone e transmissão de dados solicitem anuência do Ministério da Habitação, Gestão Territorial e Meio Ambiente (MVOTMA) antes de prestar serviços a residências ou grupos de residências que façam parte de assentamentos humanos irregular.
Entre nós, o Estatuto da Cidade exige que o plano diretor inclua um mapeamento das áreas de risco, com base em carta geotécnica, e planeje ações preventivas, para evitar sua ocupação. Uma Resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), por sua vez, exige que as distribuidoras consultem as prefeituras antes de atender assentamentos informais. É importante que essas consultas sejam feitas e respondidas com base no plano diretor e que essa regra seja complementada por uma ação firme de combate às ligações clandestinas.
São medidas que impõe um aprimoramento de nosso pacto federativo. É fundamental que haja uma maior integração entre as esferas governamentais e as empresas do setor elétrico, aproximando o serviço público federal de eletricidade dos interesses locais municipais. Além disso, é preciso que sejam adotadas medidas de segurança e de fiscalização para garantir a integridade física das equipes que trabalham na proteção das instalações e redes elétricas e que o furto, a fraude e a inadimplência de energia sejam investigados e punidos nas devidas esferas.
Independentemente das escolhas empresarias realizadas ao longo da concessão, o pedido de recuperação judicial da Light desnuda que a solução do problema do caos territorial deve ser uma prioridade para o país. A garantia do suprimento de energia elétrica em áreas de baixa renda é fundamental para o desenvolvimento socioeconômico do país e para a qualidade de vida da população. Ao mesmo tempo, é preciso que a energia elétrica seja colocada a serviço do desenvolvimento urbano ordenado, oferecendo-se às distribuidoras meios efetivos de defesa contra ilícitos, respeitando as competências federativas.