Daniel Caldeira, Doutorando em Administração Pública pela Universidade de Lisboa
Marcus Braga, Doutor em Políticas Públicas (UFRJ) e cumpre estágio de Pós-Doutoramento junto ao Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (IESC/UFRJ)
Natália Massaco Koga, Doutora em Ciência Política pela University of Westminster e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG)
Temístocles Murilo de Oliveira Júnior, Doutor em Políticas Públicas (UFRJ), cumpre estágio de Pós-Doutoramento junto à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e é Diretor de Fomento, Mobilização e Inovação da Sociedade Brasileira de Administração Pública (SBAP)
Muito se fala das agruras da gestão pública, mormente aquela ligada a política social, na ponta, na implementação. Uma situação recorrente e que traz prejuízos de toda a ordem para a superação da nossa tradicional desigualdade. Em um país diverso, desigual e de grandes dimensões, em um arranjo federalista que mescla autonomia com dependência, diante dos fracassos postos nos noticiários, muito se fala que o problema é da falta de capacidades estatais dos entes.
Capacidades estatais, como definido por Pires e Gomides (2014), se caracterizam pela presença de arranjos que viabilizem e articulem um aspecto político de expansão de canais de interlocução e negociação entre atores sociais e o setor público, em conjunto com uma faceta técnico-administrativa, a partir de estruturas e processos para construção de Políticas Públicas de qualidade. Conceito que para fazer sentido, não permite que se prescinda de suas duas dimensões formativas, exigindo, logo, um burocracia técnica e estabelecida. Infelizmente, o que não encontramos, em especial em pequenos municípios.
Mas, as capacidades não se fazem apenas com os mecanismos de articulação política e um corpo administrativo. Wu, Ramesh e Howlett (2018) apontam para uma dimensão pouco explorada e desenvolvida, a capacidade analítica, aquela que permite identificar, absorver, produzir e disseminar conhecimento sobre e para as políticas públicas. Ela é fundamental para se inovar, construir soluções adequadas nos múltiplos contextos, em especial na diversidade de cenários que o país apresenta, ainda que se insista em um grau detalhístico de padronização de programas nacionais, com muito top down e pouco bottom up.
Nesse sentido, inovar não é um modismo ou uma busca incessante do novo. Para Cavalcante e Cunha (2017), a inovação se justifica pelo crescimento de problemas cada vez mais complexos e dinâmicos (wicked problems), de demandas por melhores serviços e a menor custo, e ainda, por mais participação popular. Inovação está ligada a melhoria dos processos organizacionais, não sendo um fim em si mesmo, mas uma ferramenta relacionada a política pública, que entrega serviços e bens ao cidadão munícipe, para além dos apelos eleitorais imediatistas de se inovar.
Essa inovação não se faz sem pesquisa, sem instituições e atores dedicados a estudar de forma aprofundada e a produzir conhecimento sobre temas relevantes e que, ao se vincularem, criam comunidades epistêmicas de debate e pesquisa, de forma a unir não só pesquisadores da academia, mas também práticos do serviço público, em especial pela ascensão de um novo perfil profissional do setor público do Século XXI, com um pé na repartição e outro na universidade. A servidora pesquisadora ou o servidor pesquisador e analista de políticas públicas.
Haas (1992) indica que uma comunidade epistêmica é uma rede de profissionais com reconhecida perícia e competência em um domínio particular, e uma reivindicação de autoridade para conhecimento relevante para políticas dentro desse domínio ou área temática. Estrutura que se forma no âmbito de órgãos públicos, diante do cotidiano da implementação das políticas, mas também nas universidades e nos institutos de pesquisa. E no Brasil do Século XXI esses núcleos ainda se encontram, salvo algumas exceções, bem apartados, carecendo de pontes de interação.
Faz-se necessário o destaque e o fomento de iniciativas práticas que reconheçam, unam e fortaleçam essas comunidades epistêmicas. Dentre várias experiências nesta direção, destacamos os casos da participação de pesquisadores seniores no aconselhamento científico aos decisores políticos, como é o caso da Alemanha, África do Sul, Estados Unidos, Índia e Reino Unido, apenas para citar alguns. A Comissão Europeia também desenvolveu um modelo para a sua engrenagem comunitária inspirado nesse molde.
De forma geral, as pesquisadoras e pesquisadores são investidos em mandatos de conselheiros científicos, incorporam uma remuneração para acompanhar de forma dedicada os temas de cada ministério e trabalham sob a liderança de um Conselheiro Científico Chefe do Governo, onde fornecem evidências científicas para o assessoramento dos ministros, incluindo a construção de relacionamentos internacionais com consultores científicos e líderes de pensamento internacionais. Para além da possibilidade de contribuir com subsídios para a tomada de decisão estratégica governamental, a participação conta com contrapartida financeira e reveste-se de prestígio e credibilidade curricular acadêmico.
Um exemplo de iniciativa que busca unir pesquisadoras, pesquisadores, práticas e práticos no Brasil é a experiência do Projeto cientista chefe, em implementação no estado do Ceará, regulamentado pela Lei estadual nº 17.378, 4 de janeiro de 2021. Este projeto tem como base a parceria entre a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) juntamente com a Universidade Federal do Ceará (UFC) e o governo do estado do Ceará. O projeto envolve equipes de pesquisadoras e pesquisadores para desenvolver atividades nas secretarias ou órgãos mais estratégicos do Governo estadual, na construção de soluções e na promoção de inovação, impactando na qualidade das políticas públicas ofertadas a educação, em um exemplo clássico de uma iniciativa governamental que faz pontes construtivas na relação entre essas duas comunidades epistêmicas (Braga et al., 2022).
Outro exemplo de iniciativa desenvolvida no Brasil refere-se à Revista da CGU. Este periódico científico, editado no âmbito da Controladoria-Geral da União, órgão central de controle interno do governo federal, passou por recente redesenho de suas políticas e diretrizes. Como destacam Oliveira Júnior, Caldeira e Braga (2023), a partir de projeto de fortalecimento daquele periódico, impulsionado de forma marcante pela iniciativa de servidores que também são participantes de programas de pós-graduação e de grupos de pesquisa, tem colocado em andamento estratégias explicitamente dirigidas para a consolidação de uma comunidade epistêmica que agrega práticas, práticos, pesquisadoras e pesquisadores ligados aos campos de conhecimento sobre temas relacionados ao controle interno.
Sintonizado com esse movimento, a Sociedade Brasileira de Administração Pública (SBAP) criou em 2022 o grupo de temático permanente GT-23, que visa a promoção de estudos sobre a relação entre ciência e prática no campo da administração pública. Intitulado "Experiências na Administração Pública: diálogo entre acadêmicos e práticos", este grupo realiza lives e abre chamadas de trabalhos e realização de sessões de debate durante o Encontro Brasileiro de Administração Pública (EBAP), evento central da SBAP, funcionando como espaço de discussão e aproximação entre comunidades epistêmicas, registrando essas iniciativas e fomentando o desenvolvimento do estudo sobre o tema.
Em uma visão mais ampla, a própria SBAP é um espaço de excelência onde essas comunidades se encontram, e pode ser, no futuro, um modelo de organização civil que faça essa ligação entre pesquisadoras, pesquisadores e burocratas, tendo nesse desiderato, um papel essencial esse novo personagem no âmbito dos governos, aservidora pesquisadora ou servidor pesquisador e analista de políticas públicas, que busca a academia e que pode ser um elo de ligação entre os projetos.
Tais iniciativas podem se refletir, em médio prazo, no aprimoramento das capacidades estatais, um traço da desigualdade regional em nosso federalismo, e que demanda mais do que transferências de recursos, e sim projetos de estímulo ao desenvolvimento local, mesclando as dimensões top down e bottom up, o que depende de uma certa difusão do saber científico aplicado a políticas públicas, pela construção de capacidades analíticas, proposição central desse artigo.
A construção de capacidades analíticas a partir do diálogo entre pesquisador@s e servidor@s que fortaleça a pesquisa, a produção de conhecimento e, finalmente, as iniciativas de inovação em políticas públicas que efetivamente impulsionem melhorias para a sociedade não é tarefa simples. Os argumentos, conceitos e exemplos trazidos neste breve artigo chamam à reflexão de que esta mudança é possível, mas que ao mesmo depende da articulação e do empenho entre atores de diferentes campos, numa trajetória que exige liderança, consciência dos objetivos, acomodação entre visões e interesses e principalmente,grande resiliência.
Referências
Braga, J., Matos, M., Cruz, C., & Machado, B. (2022). Programa Cientista Chefe: ponte entre Academia e Gestão Pública. IX Encontro Brasileiro de Administração Pública, São Paulo/SP. https://sbap.org.br/ebap/index.php/home/article/view/759
Cavalcante, P. & Cunha, B. (2017). É preciso inovar no governo, mas por quê? In P. Cavalcante, M. Camões, B. Cunha & W. Severo. Inovação no setor público : teoria, tendências e casos no Brasil (pp. 15-32). Ipea. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/8086
Haas, P. (1992). Introduction: epistemic communities and international policy coordination. International Organization, 46(1), 1-35. https://doi.org/10.1017/S0020818300001442
Oliveira Júnior, T., Caldeira, D., & Braga, M. (2023). Bureaucracy Towards Science: practitioners forging interaction with researchers. X Encontro Brasileiro de Administração Pública, Brasília/DF. https://sbapeventos.com.br/media/270320230933122.pdf
Pires, R. & Gomide, A. (2014). Análise comparativa: arranjos de implementação e resultados de políticas públicas. In A. Gomide & R. Pires. Capacidades Estatais e Democracia: Arranjos Institucionais de Políticas Públicas (pp. 351-379). Ipea. https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/3098
Wu, X., Ramesh, M., Howlett, M. (2018). Policy Capacity: Conceptual Framework and Essential Components. In: Wu, X., Howlett, M., Ramesh, M. (eds) Policy Capacity and Governance. Studies in the Political Economy of Public Policy. Palgrave Macmillan. DOI: https://doi.org/10.1007/978-3-319-54675-9_1
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