José Antonio G. de Pinho, Professor Titular Aposentado - Escola de Administração - UFBA. Pesquisador na FGV-EAESP
A pergunta é feita a cada número redondo de mortes. Foi feita nos 100 mil, nos 200 mil, agora nos 300 mil. Com a escalada acelerada dos óbitos pela Covid 19 e com o Jair 17 ignorando os acontecimentos, a pergunta virá com mais rapidez, nos 400 mil e em breve com os 500 mil. A vacinação lenta por conta da recusa presidencial à vacina, perderá a corrida para as mortes. A pergunta recorrente é: quantos brasileiros e quantas brasileiras terão que morrer para acontecer alguma coisa no Brasil para esta sangria ser estancada?
O presidente do meio milhão de mortes se esquiva de qualquer responsabilidade, adotando sua tática costumeira de dizer que não tem nada a ver com isso. A morte lhe atrai, quem sabe, até anima, dá-lhe motivação. Suas ações são direcionadas para negar a pandemia, para a liberação absurda e desmedida de armas e munições, para destruição do meio ambiente, este é o mote de sua vida. Seus objetivos de governo estão embebidos de destruição e morte.
A demissão de dois ministros da saúde, médicos, e sua substituição por um general submisso, incapaz e sem qualquer aderência ao cargo e suas funções, não pode passar em branco. Deixar o país sem ministro da saúde por 10 meses, com a pandemia se agravando, é um ato ao qual o presidente tem que responder. A indicação de remédios comprovantes ineficazes para enfrentar uma doença com alta letalidade é de um charlatanismo ímpar, prática que normalmente é escondida, mas que o governante faz questão de revelar em público, como se estivesse ungido de um conhecimento divino em uma investida messiânica. Jair Bolsonaro governa batendo suas próprias metas de insensatez e delírio.
Como se não bastasse tudo isso, o presidente ainda escarnece da morte. O vídeo macabro dele rindo e repetindo "tô com covid, tô com covid" é de uma crueldade inimaginável e inaceitável. Quando a situação fica insustentável (mais ainda), ele aquiesce e faz um acordo, que comumente dura poucos dias ou horas, como no caso recente da criação do Comitê de Enfrentamento do Covid. A lucidez que exibe quando calado logo se esvanece e volta a fazer sua prédica negacionista, falando para seus seguidores, fiéis, devotos. Por outro lado, Bolsonaro mostra ter consciência dos limites até onde pode manter sua estultice. Assim, quando viu que toda a sabotagem que fazia da compra de vacinas seria impossível de ser mantida, aquiesceu à vacinação, mas isto não o impede de continuar mantendo seu discurso e ideias, comprovado de novo na recente viagem à Chapecó onde encontrou o prefeito com quem compartilha propaganda enganosa.
Com a sociedade formada pelo governo Bolsonaro com o Centrão, essa ameba política também tem que ser responsabilizada, na parte que lhe cabe, por essa mortandade, principalmente pelo que vem por aí. O mesmo se aplica aos seis mil militares que atenderam ao chamado do ex capitão para supostamente lhe dar sustentação. No que toca a essa situação, ela pode ser olhada do ponto de vista de um militar que teve sua vida castrense precocemente abortada, não por qualquer motivo de perseguição, mas por suas próprias ações, e agora ocupa o posto máximo da Nação. Como reza a Constituição, é o Comandante das FFAA, às quais se refere, com o ego inflado, como "meu Exército".
Pensamos duas possibilidades para a alocação de tantos militares de alta patente no Executivo e nas Estatais: 1) uma espécie de gratidão por ter sido poupado quando teve que sair do Exército, hipótese difícil de aceitar dado que este valor parece não compor seu portfólio humanitário; 2) uma espécie de narcisismo, este sim presente no seu portfólio, por ter uma multidão de militares obedecendo ao capitão outrora dispensado. O prazer de ouvir "um manda, outro obedece" não deve ter preço para o presidente. Do ponto de vista desse séquito de militares, não se desconsidera, por certo, para alguns, a oportunidade de reforçar o soldo.
Outra batalha transcorre, enquanto os óbitos da pandemia crescem assustadoramente, o coringa André Mendonça e o procurador-geral da República, Augusto Aras, se esmeram em mostrar trabalho para o "patrão" para serem escolhidos para o cargo de ministro do STF, a vagar em julho próximo. Ambos têm que mostrar que são terrivelmente evangélicos frente ao RH do Planalto, o presidente e seus zeros. Neste quesito, por exemplo, Kássio Marques passa por cima de cadáveres para agradar o Planalto, liberando os atos religiosos públicos em plena pandemia, decisão já revogada. O acordo com o Centrão, a transformação do Executivo em caserna, a colocação de pessoas de confiança em órgãos de controle, todas essas forças foram e estão mobilizadas para evitar o impeachment, com efeitos impactantes em seus herdeiros. Certamente, nenhum processo de impeachment teve um custo tão alto para a Nação.
Retornando à pergunta feita ao início do trabalho. Até quando essas forças darão apoio ao presidente frente à avalanche de mortes e sua insistência em manter suas ações destrutivas e mortíferas? Está abundantemente claro que Jair Bolsonaro não veio para governar, um possível plano de governo nunca se revelou. O que se vê ao longo desses quase 28 meses de mandato (14 sem pandemia e 14 sob a mesma) é a reafirmação do caráter explosivo do Presidente que vem desde a vida militar, de ir se desfazendo de alguns apoiadores e dos que podem lhe fazer sombra, bem como dos que não lhe dão apoio explícito ou não abaixam a cabeça, criando inimigos mesmo dentro de suas hostes. A mais recente delas mexe com forças sensíveis, as FFAA, cuja resposta não é facilmente decifrada. A aposta bolsonarista está na criação de um caos para justificar um Estado de sítio ou autogolpe.
O jogo até agora tem sido, até certo ponto, comandado por Bolsonaro, mas pode virar. O Centrão, com seu canino faro político deverá perceber que só tem a perder ficando ao lado do capitão emissário da morte, os militares também podem constatar (se ainda não o fizeram) a insanidade do comandante tornando o impeachment possível. Por sua vez, religiosos que apoiam o "mito" querem templos abertos para exorcizar o vírus com orações bem como para reforçar o caixa, indiferentes aos riscos de contaminação. A recente aprovação da CPI da Covid mostra que, afinal, se constituiu um fórum para deslindar as ações destrutivas do presidente. Este, por sua vez, responde da sua forma costumeira, com ameaças dúbias à democracia.Mesmo sendo a impunidade um dos traços mais salientes na política brasileira, Bolsonaro não pode passar impune frente ao meio milhão de mortes, a sabotagem na compra de vacinas, recusa ao uso de máscaras, ao distanciamento social, ao escárnio com que tratou as mortes e à hesitação quanto ao auxílio emergencial. Nem pode terceirizar a responsabilidade, tem que responder pelos seus atos, bem como os que o acompanham nessa jornada macabra.
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