Deborah Moraes Souza Lopes, Graduada em Relações Internacionais, Especialista em Direitos Humanos e Mestranda em Relações Internacionais pela UERJ. Atua como pesquisadora do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL/IESP-UERJ) e integra o Laboratório de Imigração da UERJ (Labimi/UERJ)
Essa breve análise sobre a assistência humanitária durante o governo Lula é fruto da síntese de um artigo meu publicado na Revista Hoplos. A motivação para escrever e pensar sobre a questão da assistência humanitária nasceu da necessidade de voltar a pensar essa estratégia como uma política externa efetiva, assim como retomar o interesse em pautas como a soberania alimentar e a aliança dos povos latinos que foram bastante enfatizadas durante o governo Lula.
Quando o Lula assumiu a presidência em 2003, tinha-se toda uma expectativa sobre como ele iria exercer seu papel político, tanto internamente quanto externamente. A inovação de sua política e um dos motivos dela ter sido um sucesso, obtendo alguns reconhecimentos internacionais, como o prêmio Félix Houphouët-Boigny pela Busca da Paz em 2009 e elogios nos órgãos internacionais no que tange ao combate à fome e à pobreza, foi reflexo do movimento de trazer a política interna para o âmbito da política externa.
As diretrizes do Partido dos Trabalhadores (PT), partido político ao qual Lula está vinculado, nortearam diversas agendas sociais da política externa e interna, sendo as principais o combate à fome e à pobreza, além da aliança com os povos do Sul Global. Com isso, o então presidente pode combinar as agendas e promover uma inserção internacional com base nos programas sociais que estavam sendo estudados e implementados no âmbito doméstico. Aproveitando do cenário político favorável para governos progressistas, o que ficou conhecido como "onda rosa", Lula usou a pauta social para promover uma maior integração dos países latinos, uma vez que compartilham de um passado colonial e das mesmas mazelas.
Segundo Vizentini (2005, p. 388), "as relações internacionais do governo Lula são dotadas de três dimensões: uma diplomacia econômica, outra política e um programa social". A dimensão política foi essa ascensão de governos progressistas na América Latina, de modo que a promoção de diálogos e concertações se mostraram mais alinhados aos objetivos em comum em prol do desenvolvimento nacional. E o programa social é entendido pela transferência de políticas públicas para o âmbito internacional, o que ocorreu pela internacionalização de programas sociais como o Bolsa Família e o Fome Zero.
Assim, seu governo promoveu uma nova dinâmica para diplomacia brasileira, assumindo posturas mais ativas, denunciando as assimetrias das relações Norte-Sul e promovendo uma maior autonomia do Sul frente ao Norte. Dessa forma, o Brasil se projetava com ideias alternativas de diversificação. Isso no sentido de que diversificar, para o governo de Lula, não girava em torno só das relações econômicas com outros Estados, mas também era a capacidade de intervir em questões que não possuíam retorno imediato, como a integração regional e o fortalecimento político, econômico, social e cultural dos povos latinos (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007). A resolução do PT (2007, p. 41) reitera essa preocupação, ao dizer que faz parte do projeto de desenvolvimento nacional a inserção do Brasil no cenário internacional com "austeridade e soberania, divulgando uma cultura de paz, contra todas as guerras, fortalecendo as alianças Sul-Sul e entre países em desenvolvimento" (LOPES, 2022).
Esses esforços foram traduzidos nas políticas públicas dos Programas Bolsa Família e o Fome Zero, cujo objetivo era estimular a geração de divisas, de modo a gerar não só crescimento econômico, mas também desenvolvimento humano. Faria (2012, p. 337) explica esse fenômeno como sendo de transferência de políticas públicas, a qual pode ser entendida como um "processo de instrumentalização da difusão de políticas públicas sociais internas para o âmbito internacional". Com isso, o Brasil passou de país importador de políticas para um país exportador de políticas e, conforme salienta Vizentini (2005), o país foi protagonista na inserção da agenda social como um projeto de política internacional.
O foco brasileiro para a internacionalização do Bolsa Família e Fome Zero teve como direcionamento a assistência humanitária, justamente por perseguir ideias de justiça social, diminuição das assimetrias advindas da globalização, bem como promover maior desenvolvimento humano. Esses esforços foram instrumentalizados pelo então Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), pela Coordenadoria-Geral de Ações Internacionais de Combate à Fome (CGFome) e pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ambas vinculadas ao Ministério das Relações Exteriores (MRE). O governo brasileiro também adotou medidas e programas como o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar, ambos exportados, sobretudo para a América Latina (SILVA, 2011).
Dessa maneira, podemos perceber que a assistência humanitária brasileira se destacou no âmbito da segurança alimentar e em prol dos países latino-americanos, por isso é importante fazer o resgate de políticas que deram certo e impulsionaram temas tão relevantes como a fome. Afinal, a fome é política, e durante seu governo Lula fez questão de reforçar essa afirmação. Esse sistema de transferência de política pública tinha como lema a não-indiferença, guiado pela solidariedade entre os povos, o que fez com que o Brasil fosse assumindo uma postura de liderança na região, com um olhar mais atento às necessidades reais dos países em desenvolvimento (VALENÇA; AFFONSO, 2019).
O contexto em que Lula levanta a questão da fome é sob a condição do Brasil estar no Mapa da Fome, assim como outros países latinos. Então, essas medidas de impulsionar internamente a distribuição equitativa de alimentos e conseguir exportá-la, podem ser consideradas como medidas de sucesso. Devido a isso, em 2004, Lula ressaltava a importância de uma agência global em prol do combate à fome e à pobreza sob o lançamento de uma Ação Global contra a Fome e a Pobreza. Essa ação contou com diversos outros países e reconhecimento dos principais órgãos como a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) (PAPI; MEDEIROS, 2015). Ainda, Lula participou da reunião de Alto Nível da FAO sobre Segurança Alimentar, Mudanças Climáticas e Bioenergia, onde ficou evidente a liderança social do então presidente, assim como o reflexo das políticas de base do PT. Na ocasião, Lula ressaltou em seu discurso a importância dos esforços dele no combate à fome e à pobreza e como os bons resultados dessas políticas fizeram o governo exportar os programas de assistência básica (LOPES, 2022).
As ações internacionais foram concretizadas por meio da distribuição de alimentos via assistência humanitária, protagonizada pela CGFome e teve como principais focos os países da América Central e outros países latinos vítimas de alguma calamidade natural. Quanto às formas de doações, o Brasil operou de duas maneiras: "o envio de doação em espécie, mormente de gêneros alimentícios, equipamentos e medicamentos, ou transferência em moeda para a aquisição desses bens pelas embaixadas brasileiras nos países beneficiários" (SCHMITZ; LIMA; SOMAIO, 2010, p. 57).
As doações de estoques públicos de alimentos para este fim ocupou boa parte da política externa do governo Lula, deixando claro mais uma vez seu engajamento social. O governo brasileiro prestou assistência ao Equador, depois da erupção do vulcão Tungurahua em 2006; no ano seguinte prestou assistência à Bolívia devido às severas inundações decorrentes das fortes chuvas. Na ocasião, o Brasil enviou 26 toneladas de alimentos, além de deslocar aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para auxiliarem nos resgates de vítimas destas enchentes (BRASIL, 2006; BRASIL, 2007). Em 2008, chegou a vez do Haiti devido aos furacões que assolaram o país naquele ano, e o Brasil doou mais de 14 toneladas de alimentos e medicamentos. Também, no mesmo ano, foram doados alimentos ao Paraguai em razão da forte seca ocorrida na região do Chaco (PAPI; MEDEIROS, 2015). Já em 2009, o governo brasileiro atendeu às solicitações de Cuba, Haiti e Honduras para prestação de assistência humanitária devido aos impactos causados pelos furacões do ano anterior.
Todas essas medidas foram importantes para o Brasil ganhar prestígio internacional, assim como para assumir uma postura de liderança social, suscitando debates que antes eram marginalizados, como a questão da fome e da pobreza nos países do Sul Global. As ações advindas da política de Lula chamaram a atenção para a necessidade de se pensar medidas alternativas no combate a essas mazelas. Contudo, nos anos subsequentes, essas políticas acabaram sendo esvaziadas devido ao quadro de crise econômica e política durante o governo Dilma e da falta de vontade política dos governos Temer e Bolsonaro. No ano de 2016, a CGFome foi extinta, assim como todas as coordenações e projetos de assistência humanitária em andamento para a região da América Latina.
À vista disso, atualmente, o Brasil vem tomando posições contrárias a essas diretrizes que foram tão marcantes durante o governo Lula e perdendo o aspecto social de sua diplomacia. O debate acerca da volta do país no Mapa da Fome é bastante ilustrativo nesse sentido. No Brasil, a fome já atingiu mais de 30 milhões de pessoas de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19[1] no Brasil divulgado no ano de 2022. A maior parte dos brasileiros que estão passando fome se concentra nas regiões Norte e Nordeste, segundo o mesmo Inquérito. Fazendo outro recorte, temos que a maior parte da população em situação de insegurança alimentar são pessoas negras, mais especificamente, mulheres negras. Apenas esses dados nos mostram a relevância de voltar à atenção para essas políticas públicas que foram motivos de grande prestígio no início dos anos 2000.
No que tange aos povos latinos, a insegurança alimentar, de acordo dados da FAO[2], atingiu mais de 200 milhões de pessoas, nos mostrando a urgência da temática e de maiores concertações políticas para sanar o problema. Em suma, a retomada de ações coordenadas com nossos vizinhos é urgente, visto que a fome é um problema comum. Assim como nos anos 2000, a configuração política atual nos mostra um caminho de maior diálogo e ações coordenadas frente às políticas sociais para promoção de maior desenvolvimento humano. Dessa forma, a retomada do assunto da segurança alimentar se torna importante para o próximo governante. Por fim, espera-se que esse esforço de retomar as políticas de assistência humanitária e caráter social do governo Lula desperte algum tipo de reflexão e promoção do debate acerca do pensamento de elaborar novas políticas públicas voltadas a esses temas em conjunto com nossos vizinhos latinos.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Notas
[1]Dados retirados do site: https://www.oxfam.org.br/noticias/fome-avanca-no-brasil-em-2022-e-atinge-331-milhoes-de-pessoas/. Acesso em 20 set. 2022.
[2] Dados retirados do site: https://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/1585484/#:~:text=Parceiros-,Em%20um%20ano%2C%204%20milh%C3%B5es%20de%20pessoas%20foram%20empurradas%20para,Am%C3%A9rica%20Latina%20e%20no%20Caribe&text=Novo%20relat%C3%B3rio%20da%20ONU%20diz,268%20milh%C3%B5es%20enfrentaram%20inseguran%C3%A7a%20alimentar. Acesso em 20 set. 2022.
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SCHMITZ, G. O.; LIMA, J. B. B.; SOMAIO, A. Assistência humanitária internacional: uma análise da experiência brasileira recente (2007-2010). Boletim de Economia e Política Internacional, n. 4, p. 53-59, Out./Dez. 2010.
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