Antonio Gelis Filho, Professor da FGV-EAESP, é Doutor em Administração (FGV-SP), Especialista em Direito Sanitário (FSP-USP), Advogado (USP) e Médico (USP) e Marcela C. Arruda Nunes, advogada, Especialista em Direito Administrativo (PUC/SP), Mestranda em Gestão e Políticas Públicas (FGV/SP)
A busca pela celeridade nas licitações, decorrente do interesse público na situação criada pela pandemia, não pode ofuscar a observância dos princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, e da probidade administrativa. Não existe uma "carta branca" para dispensa de licitação durante a pandemia. Os Tribunais de Contas e o Ministério Público, em diversas regiões do país, já começam a receber acusações de supostas práticas irregulares de gestores públicos em decorrência das contratações para o combate do coronavirus. As consequências jurídicas de tais acusações já são de conhecimento público.
A flexibilização dos procedimentos para aquisição de bens e serviços destinados ao enfrentamento da COVID-19, determinada pela Lei Federal nº 13.979/2020 e por normas dela decorrentes, não torna menos importante a prática de atos cautelosos e transparentes por parte dos gestores públicos. Afinal de contas, a dispensa de licitação é o carro chefe da norma facilitadora. E é exatamente dispensa de licitação, sem a observância das hipóteses legais,um dos fundamentos recorrentes nas ações de improbidade administrativa.
A redução dos riscos de acusação de mau uso do dinheiro público não é tarefa fácil. Sempre haverá olhares desconfiados para todo e qualquer gestor público, muitas vezes lançados sem qualquer compreensão vivida das dificuldades e obstáculos enfrentados pelos gestores. Resta aos gestores públicos assegurar que seus atos sejam praticados de forma que explicite, inclusive documentalmente, sua vinculação às regras e princípios das licitações.
Inúmeras investigações e ações de improbidade administrativa desenhadas nesse momento provavelmente chegarão ao Judiciário, algumas sem elementos suficientes para condenação final. Tudo se transformará em longos debates jurídicos acerca da existência ou não de um ato ímprobo. Não há "vacina" contra possíveis acusações, mas o descuido com o processo licitatório certamente aumenta a probabilidade de que o ato seja contaminado pelo vírus da aparência de improbidade.
A Lei nº 8666/93 ("Lei das Licitações"), em seu art. 24, estabelece o rol das hipóteses legais de dispensa de licitação. Mas a dispensa de licitação destinada às aquisições enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus possui requisitos diferenciados, assim listados na lei nº 13.979/2020: (i) comprovada ocorrência desituação de emergência; (ii) necessidade de pronto atendimento da situação de emergência; (iii) existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e (iv) a limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.
Como se observa, os gestores não estão autorizados a realizar compras e ou contratações de serviços que sejam destinados a período diverso daquele necessário ao atendimento da emergência. A finalidade da contratação e o seu nexo com o momento são elementos que exigem atenção especial, pois qualquer desvio também pode afastar a aplicação da regra simplificada. Nesse ponto, não há muita diferença com a dispensa de licitação prevista para as situações emergenciais na lei de licitação e contratos administrativos.
Formalidades mínimas que devem integrar os termos de referência ou projeto básico são: (i) declaração de objeto; (ii) fundamentação objetiva da contratação; (iii) descrição resumida da solução apresentada; (iv) requisitos da contratação; (v) critérios de medição e pagamento; estimativa dos preços com observância dos parâmetros descritos na lei, podendo inclusive ser com contratações similares de outros órgãos públicos; (vi) adequação orçamentária. Em relação especificamente ao processos licitatórios durante a pandemia, não basta ao gestor decidir pela dispensa da licitação em virtude das peculiaridades do momento. Como mencionado acima, e aqui reforçado, a legislação emergencial não é uma "carta branca" para compras sem licitações. Não apenas os critérios definidos por essa legislação devem estar presentes, mas devem também ser expostos os motivos que efetivamente tenhamimpedidoo gestor de seguir qualquerformalidade.
Em muitos casos de ações de improbidade administrativa, meras falhas administrativas ou operacionais dos gestores são confundidas com condutas ímprobas (aquela caracterizada pela desonestidade, dolo e má-fé, quando há clara intenção de violar os princípios constitucionais e administrativos e causar lesão ao erário). A situação poderá ser modificada quando o gestor tem a seu favor não apenas a boa-fé e a certeza de ausência de dano ao erário, mas também quando a análise das provas documentais do processo explicita tais características.
Em qualquer hipótese também deverão ser consideradas as circunstâncias práticas que limitam ou condicionam as ações dos agentes públicos e na avaliação da regularidade dos atos praticados por gestores públicos é indispensável que se considerem todos os obstáculos reais e dificuldades próprias da gestão. É nessa direção o comando da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro (alteração inserida pela Lei nº 13.655/2018). Ainda assim, vale mais uma alerta aos gestores públicos acerca da importância de conferir transparência a seus atos como forma de prestigiar o controle social, mas também para deixar transparecer a sua verdadeira conduta na gestão do bem público.
Em síntese, o gestor prudente deve tratar a dispensa de licitação como um remédio cujos efeitos colaterais podem ser seríssimos. Seu uso deve ser precedido de rigorosa análise dos possíveis benefícios, ministrado com atenção e seguido de rigoroso acompanhamento.
Nos últimos meses, os gestores públicos foram desafiados a gerir a máquina pública em momento de grande evidência e de maior necessidade da boa prestação dos serviços públicos, em razão das especificidades que uma pandemia impõe. As recomendações aqui indicadas limitam-se à parcela mínima das diversas cautelas recomendadas aos gestores públicos, mas são válidas para evitar o tormento que uma ação de improbidade representa para o gestor, em especial pelo prazo em que esse tipo de discussão se estende nos tribunais.
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