Benedito Mariano. Mestre em ciências sociais pela PUC de São Paulo. ex Ouvidor da Polícia de São Paulo, assessor parlamentar e prof da Faculdade de Direito de Santa Maria - FADISMA RS.
Ricardo Daher Gonçalves Teixeira, aluno do 5.º semestre do curso de Administração Pública da FGV de São Paulo.
O sistema de segurança pública brasileiro foi criado no século XIX, e se manteve praticamente inalterado com o advento da Republica. As policias brasileiras nasceram inspiradas para fazer controle social dos pobres e dos escravos e defender os interesses dos senhores proprietários rurais. Portanto, carregam uma cultura secular oligárquica, constituída historicamente.
A Intendência de Polícia da Corte, de 1808, foi o embrião das policias civis que temos hoje. O Instituto do Inquérito Policial é datado de 1871, quando houve uma reforma judiciaria no Império, e não sofreu alterações com a República. Durante muito tempo, juízes tinham a função de delegados de polícia; talvez esta seja uma das razões pelas quais a Polícia Civil além de ser investigativa, também é judiciária.Em São Paulo, só em 1905 a Policia Civil passou a ser polícia de carreira (lei nº 979).
O policiamento ostensivo no período imperial era realizado em grande parte pela Guarda Nacional, instituição militarizada criada em 1831, formada por cidadãos eleitores - a Constituição de 1824 estabelecia que cidadãos eleitores eram aqueles com renda mínima definida na própria constituição. Em 1873 a Guarda Nacional deixou de ser força policial e em 1922 foi totalmente absorvida pelo exército nacional.
No mesmo ano em que foi criada a Guarda Nacional, o Império criou o Corpo de Guardas Municipais no Rio de Janeiro e autorizou que outras províncias também o criassem. A província de São Paulo foi a segunda a criar seu Corpo de Guardas Municipais. Todas essas agências de segurança tinham estrutura militar.
O estado de São Paulo cria, em 1891, a Força Pública, incorporando as agências de segurança de caráter militar existentes. A Força Pública era uma espécie de exército regional paulista.
Em 1926 é criada a Guarda Civil Estadual de São Paulo, que procurava seguir o modelo da polícia londrina. Ela, assim como outras Guardas Civis Estaduais de 15 Estados, fazia uma parte do policiamento ostensivo. Com o golpe militar de 1964, a partir de 1970 todas as Guardas Civis Estaduais foram extintas e o policiamento ostensivo passou a ser feito exclusivamente pelas policias militares. A Força Pública paulista passou a ser denominada Polícia Militar.
Neste breve histórico é possível observar que as policias estaduais brasileiras carregam estruturas do período imperial, que as conferiram as seguintes características:
- O policiamento ostensivo há séculos é realizado por instituições de caráter militar, com exceção de 1926 a 1969 quando existiam as Guardas Civis Estaduais que faziam uma parte desse policiamento.
- Nenhuma polícia estadual realiza o ciclo completo da atividade policial, que se caracteriza pelo policiamento ostensivo e a investigação. As PMs fazem policiamento ostensivo e as policias civis a investigação. Somos um dos poucos países do mundo que tem "meias policias" para realizar a atividade policial.
3.Há uma dicotomia estrutural nas PMs no Brasil. Elas têm função civil (policiamento ostensivo) e estrutura militar. Os regulamentos disciplinares das PMs dão mais ênfase as questões internas dos quarteis do que as questões relacionadas a sua função civil, e a formação de seus quadros é pautada no "Ethos do Guerreiro", sempre pronta para enfrentar os "inimigos".
4.O Instituto do Inquérito Policial, de 1871, burocratizou o processo de investigação das policias civis, que muitas vezes tem os inquéritos tocados mais por escrivãs de polícia do que pelos delegados de polícia.
Infelizmente, a transição democrática brasileira, que teve como marco a Constituição Federal de 1988, não deu conta de fazer alterações significativas no modelo de polícia, seja do ponto de vista estrutural ou cultural. As policias, em grande medida, continuam com as mesmas regras e estruturas do século XIX, que foram fortalecidas nos períodos autoritários da Republica.
Da mesma forma que o processo de redemocratização não representou uma mudança significativa na estrutura e cultura policiais anteriormente consolidadas, a abolição da escravidão no Brasil também não representou o fim do racismo estrutural que até os dias atuais permeia nossa sociedade e as instituições policiais. O Brasil demorou mais de 300 anos para acabar com a escravidão e, após a abolição, trouxe trabalhadores europeus para o trabalho assalariado, colocando a população negra à margem da sociedade. O "negro liberto" não conseguia trabalho e ainda hoje existe um senso comum perverso na sociedade e nas policias que veem os negros como potenciais suspeitos, atribuindo-lhes o estigma de "marginais".
Não é por acaso, portanto, que as abordagens policiais agressivas sempre são contra pobres e negros das periferias. Somos um dos países com a maior taxa de letalidade policial, letalidade essa que não é aleatória. Ela atinge sistematicamente a população mais pobre, representando 99% dos casos, e destes, 66 a 70% das vítimas são jovens e negros, moradores das periferias das cidades. Não por acaso também, pesquisas realizadas em 2019 apontavam que a confiança nas forças policiais é menor entre os negros e pobres, sendo que entre os primeiros 55% afirmou ter mais medo do que confiança nas policias. São eles, afinal, os que mais sofrem as consequências diárias da violência policial, seja contra si ou contra conhecidos ou parentes.
Portanto, temos que assumir que a democracia racial no Brasil é um mito. Sempre tivemos racismo estrutural e uma política permanente de branqueamento, que tinha e tem como foco creditar aos negros tudo que se caracteriza como ruim. O estereotipo de suspeito vem dessa política e dessa herança oligárquica do estado brasileiro, que, subliminarmente, permeia a sociedade e as policias. Passou a hora dá sociedade brasileira começar a indignar-se contra a letalidade policial. Não aceitamos mais as pessoas serem presas, agredidas ou mortas por "fundada suspeita", que na maioria das vezes se relaciona com a cor da pele e sua condição social. É inaceitável que aqueles que detêm o monopólio legítimo da força utilizem-no para perpetuar uma cultura racista dentro da sociedade, gerando mais medo do que segurança a parte da população que deviam ajudar a proteger.
As lutas de resistência da população negra, que são lembradas por movimentos da sociedade civil que sempre lutaram contra o racismo, não são lembradas pela a maioria da sociedade, apesar dos negros representarem cerca de 55% da população brasileira. Casos como o brutal assassinato do americano George Floyd, por um policial branco, precisam fazer com que comecemos a olhar mais criticamente para nossa própria realidade, buscando formas de transformá-la.
A violência policial letal no Brasil, é em média, 06 vezes maior que nos EUA, país que conviveu por anos com a segregação racial como política de estado. E, diferente dos EUA, onde a maioria dos policiais são brancos, no Brasil, possivelmente, os negros representam a maioria dos Praças das policias militares, mas são formados culturalmente para reprimir pobres e negros.
Temos que construir diálogos com os policiais e despertar neles uma consciência crítica de que eles são a parte visível da engrenagem invisível desta cultura racista.
A transição democrática não criou novos parâmetros de atuação de nossas policias, que passam necessariamente por mudanças estruturais e por uma nova formação que busque quebrar este legado de preconceito e cultura repressiva contra os pobres e negros.
Infelizmente, os governos do campo democrático, e as grandes instituições da sociedade civil: igrejas, centrais sindicais, imprensa entre tantas outras, não deram a devida atenção à necessidade de criarmos um novo modelo de polícia no Brasil, como condição essencial de fortalecimento da democracia. Deixou-se que a pauta e a narrativa da segurança pública fossem apropriadas por forças políticas conservadoras, que flertam com o autoritarismo e, ao endossarem discursos simplistas e violentos, baseados no velho chavão do "bandido bom é bandido morto", estimulam a cultura repressiva e, consequentemente, a ação violenta das policias.
Uma polícia democrática e cidadã passa por vincularmos estado democrático de direito com luta antirracismo. Passa por mudanças na formação dos policiais e por mudanças nos regulamentos disciplinares, para que eles destaquem o caráter civil da instituição que é realizar policiamento ostensivo. Passa pela coragem de enfrentar o senso comum de estereótipos de suspeitos e por criar mecanismos eficazes que efetivamente diminuam a letalidade policial. É muito pouco a narrativa de que os governos não compactuam com desvios de conduta senão se engajarem efetivamente com a criação de mecanismos para inibir os desvios. Passa por reformar o Inquérito policial e prestigiar a polícia investigativa, que vem sendo sistematicamente sucateada.
Uma polícia democrática, cidadã e antirracista, em última análise, passa por um piso nacional para as policias que tem suas bases mal pagas em todo o país; pelo fortalecimento dos órgãos de controle externo, interno e social da atividade policial, de forma que a própria população possa participar desse processo de controle; por programas amplos de saúde mental para os policiais e por Protocolos Operacionais Padrões (POPs) que valorizem o policiamento preventivo, uma polícia que chega antes do crime e não sai caçando criminosos.É preciso dizer não a cultura de "capitão do mato", que ainda permeia a lógica do policiamento ostensivo, e fortalecer a inteligência policial, para subsidiar o enfrentamento qualificado às estruturas das organizações criminosas que em grande medida não estão localizadas nos bairros periféricos e sim em grandes condomínios de luxo.
Ou temos vontade e decisão política de construir uma polícia democrática, cidadã e antirracista ou prevalecerá a narrativa e a lógica de polícia que vem desde o século XIX. Uma lógica que coaduna com barbárie, retrocesso e com preconceito contra pobres e negros.
Com a palavra o Congresso Nacional e os governadores dos Estados.
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