Maria Luiza Levi é graduada em Economia, doutora pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e Professora do Bacharelado em Políticas Públicas da UFABC. Foi assessora das Secretarias Municipais de Saúde e de Finanças de São Paulo e do Ministério da Saúde.
Ursula Dias Peres é doutora em Economia pela EESP/FGV/SP, Professora da EACH/USP no Curso de Gestão de Políticas Públicas, Pesquisadora do CEM/USP e do King's College London. Foi Secretária Adjunta de Planejamento, Orçamento e Gestão do Município de São Paulo.
A pandemia de Covid-19 explicitou a urgência de uma discussão de natureza estrutural sobre o modelo de sistema de saúde que temos no Brasil. Esse sistema é marcado por um profundo subfinanciamento da saúde pública e por um sistema de acesso via planos e seguros privados sobredimensionado e insustentável para uma parte substancial dos usuários. Nessa disputa de modelos, a perda de terreno por parte do Sistema Único de Saúde (SUS) ameaça cancelar definitivamente a perspectiva de proteção à saúde de grande parte da população. É fundamental refletir sobre o processo em curso em suas dimensões pública e privada e discutir suas consequências para o futuro das brasileiras e brasileiros.
O padrão de financiamento do sistema de saúde no Brasil
O SUS representa uma das reformas sociais mais importantes que o Brasil já fez. Numa sociedade desigual como a nossa e com elevado contingente de pessoas em situação de pobreza, a instituição de um sistema de saúde universal, voltado a toda a população, tem um impacto profundo, pois implica equiparar indivíduos que se encontram em posições extremamente distantes em termos de renda e riqueza e, consequentemente, em relação a suas capacidades financeiras individuais de acesso à saúde. Justamente por promover algo que vai na contramão de uma característica estrutural da sociedade brasileira, a concretização do ideal de universalidade do SUS sempre encontrou enormes dificuldades. Surpreendente, aliás, seria algo muito diferente disso.
O impedimento mais evidente nesse sentido é a insuficiência de financiamento.
Somando os gastos do governo e os de origem privada, o Brasil destina valor equivalente a pouco mais de 9% do PIB anualmente para a saúde. Esse percentual é próximo ao de muitas nações desenvolvidas que contam com sistemas de saúde universais e oferecem um rol abrangente de cuidados a seus usuários.
O problema é que, ao contrário das nações com modelos universais, nas quais o financiamento da saúde é fundamentalmente público, no Brasil, dos quase R$ 700 bilhões gastos com saúde por ano, menos da metade vão para o SUS. Em 2017, último ano para o qual a informação sobre a despesa total foi disponibilizada pelo IBGE, apenas 43% de tudo o que se gastou com saúde foi para o SUS, como mostra o gráfico 1. Ou seja, mesmo somando as despesas do governo federal, de estados e municípios o sistema público não chega à metade dos recursos gastos com saúde no país.
* valores corrigidos para 2020 pela variação do IPCA médio. Elaboração própria (Levi, 2016 http://www.saopaulo.sp.leg.br/escoladoparlamento/publicacoes/parlamento-e-sociedade/), atualizada a partir dos dados da Conta Satélite 2017 (IBGE, 2019), da ANS e do Sistema de Informações e Orçamentos Públicos em Saúde - SIOPS (Ministério da Saúde)
Isso quer dizer que para a maior parte das ações, bens e serviços de saúde que os brasileiros usufruem o acesso se dá via compra, seja pelo pagamento direto de consultas, terapias, internações e medicamentos (o chamado gasto direto das famílias), seja por meio de pré-pagamento a planos de saúde.
Em contraste com o que ocorre no Brasil, em países desenvolvidos que têm sistemas universais, os recursos públicos financiam entre 70 e 85% do total daquilo que a população consome em serviços de saúde, como se pode ver no gráfico 2 abaixo.
* Brasil: 2017. Elaboração própria a partir de OCDE (https://stats.oecd.org/), Conta Satélite 2017 (IBGE) e SIOPS (Ministério da Saúde).
Resultado: enquanto o gasto per capita total com saúde no Brasil equivale a algo próximo a 1/3 do valor despendido por grande parte das nações desenvolvidas, quando analisamos exclusivamente o gasto público em saúde, isto é, o gasto no SUS, esse valor cai para 1/6 daquele despendido nos sistemas públicos universais da maioria desses países. Fica difícil cobrar resultados semelhantes do sistema público de saúde brasileiro se gastamos menos de 1/6 do que gastam essas nações, não? Na América Latina, o gasto per capita do sistema público de saúde brasileiro é inferior ao de Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba e Uruguai (https://apps.who.int/nha/database/ViewData/Indicators/en).
Esse cenário de perda de espaço do SUS no gasto total se agravou nos últimos anos. O gráfico 3 compara os recursos destinados ao SUS pelas três esferas entre 2002 e 2019 e os gastos privados com planos e seguros de saúde. Se entre 2002 e 2013, os recursos destinados ao SUS cresceram em ritmo ao menos semelhante ao gasto privado com o pagamento de planos de saúde, a partir daí houve um claro descolamento. Entre 2013 e 2019, os gastos com os planos cresceram quase 40% em termos reais, enquanto os recursos do SUS aumentaram pouco mais de 5%, o que resultou numa queda da despesa per capita do sistema público de 2%.
Elaboração própria a partir de dados do SIOPS (Ministério da Saúde) e ANS
Chegamos a 2019 com o volume de recursos destinados aos planos privados de saúde 58% superior ao gasto federal no SUS[1]. Essa tendência deverá se acentuar nos próximos anos em virtude da Emenda Constitucional 95/16, que determinou a interrupção do crescimento real dos gastos públicos primários no nível federal por 20 anos.
Mas afinal, por que o avanço dos planos privados é problemático?
Os planos ou seguros privados de saúde no Brasil cobrem atualmente pouco mais de 47 milhões de pessoas entre beneficiários titulares e dependentes, o que corresponde a quase um quarto da população. Ou seja, apesar do maior volume de recursos, o modelo privado cobre apenas ¼ da população, enquanto o SUS deve atender a grande maioria das brasileiras e dos brasileiros com apenas 43% dos recursos.
Dividido pelo número de beneficiários, o valor total destinado ao pagamento de planos de saúde em 2019 alcançou mais de R$ 4.500,00/ano. Esse dispêndio, que abrange apenas gastos de natureza assistencial e mal financia o consumo de medicamentos, contrasta com a despesa per capita do SUS que, com pouco mais de R$ 1.400,00/ano, deve custear um conjunto de despesas muito mais amplo do que apenas a assistência à saúde[2]. Vamos refletir, seria o SUS tão ineficiente, como é amplamente propagado, quando comparado ao modelo privado de saúde no Brasil? O SUS naturalmente tem problemas de gestão, mas dizer que o problema do SUS é gestão é querer suprimir do debate o ponto essencial da discussão.
Planos privados de saúde
O acesso a um plano de saúde é fortemente ligado ao vínculo formal de trabalho. Planos ou seguros saúde contam desde 1995 com um incentivo fiscal importante, a possibilidade de que aqueles que os adquirem abatam esses gastos das despesas com tributos. No caso das empresas, isso permite usar as despesas feitas com o plano de saúde de seus empregados para reduzir a base sobre a qual incidem o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Para os planos de saúde, a intermediação de clientes feita pelas empresas com o apoio financeiro do Estado é uma via fundamental de ampliação de suas carteiras de beneficiários, cujo tamanho acaba sendo explicado por esse incentivo.
Certamente, os trabalhadores ganham o benefício para si e seus dependentes, mas é preciso se perguntar sobre o efeito do esquema ao longo da vida das pessoas. Aqui temos um problema sério do arranjo brasileiro. Quando o trabalhador é demitido ou se aposenta, somente pode se manter no plano de saúde se tiver contribuído para o benefício, e apenas pode permanecer indefinidamente caso tenha trabalhado na empresa por período de dez anos, o que já exclui parcela considerável dos trabalhadores[3]. Mesmo na condição de elegível a esse direito, o beneficiário passa a ter que arcar com a totalidade das prestações pagas ao plano, o que para muitas pessoas é incompatível com o padrão de rendimentos da condição de desempregado ou aposentado, ainda mais considerando que o reajuste das mensalidades não é regulado pela ANS[4].
Considerando que mais de 90% da população brasileira pertence a famílias cuja renda per capita não ultrapassa três salários mínimos segundo a PNAD/IBGE (e mais de 80% ganha até dois salários mínimos), é bem provável que uma parcela não desprezível dos trabalhadores formais tenha acesso a um plano de saúde restrito ao período em que estão aptos ao trabalho e, portanto, em princípio, saudáveis. Ao final desse ciclo, esses trabalhadores que foram beneficiários de planos privados muito provavelmente voltam a ser totalmente dependentes do SUS.
Modelos em disputa
Além de sobredimensionado face à estrutura de distribuição de renda no Brasil, o modelo dos planos privados envolve uma fragmentação do processo de cuidado que tende a comprometer sua efetividade.
O SUS trabalha com um modelo de funcionamento das unidades de saúde em rede. O percurso do paciente pelos seus vários pontos é responsabilidade do sistema de saúde e a coordenação desse processo deve ser feita pelas equipes de profissionais que atuam nas estruturas de atenção primária à saúde, como as Unidades Básicas de Saúde e a Estratégia Saúde da Família. A efetivação desse ideal de funcionamento requer uma construção permanente e não isenta de dificuldades. Trata-se, no entanto, de um caminho consistente com a ideia de cuidado integral à saúde, viável desde que existam profissionais bem formados e adequadamente remunerados, além de infraestrutura e tecnologia apropriadas.
Já o modelo privado não consegue se organizar como sistema. Trata-se de um arranjo assentado na lógica da compra em ambiente de mercado. O funcionamento articulado e adequado às necessidades integrais do paciente, embora não impossível, é um desfecho improvável, porque a estrutura de incentivos dificilmente permite a coincidência entre as exigências associadas à responsabilidade coletiva pelo paciente e o imperativo de lucratividade de cada um dos agentes envolvidos.
Dessa maneira, temos um sistema integral e universal, concebido para oferecer cobertura a 220 milhões de pessoas, com 43% dos recursos nacionais aplicados em saúde, que a cada ano perde espaço para um modelo focado em especialidades, estruturado de forma não sistêmica, mas que conta com recursos equivalente a mais de uma vez e meia o que o governo federal destina ao SUS. Nessa disputa, são muitos os que perdem. O modelo de cuidado à saúde intermediado pelos planos privados é insustentável para grande parte dos seus próprios beneficiários. Já o SUS, com recursos per capita de quase 1/3 do que é destinado aos planos, mesmo com um modelo consistente e amplamente reconhecido, inclusive no meio privado, vem sendo submetido a um processo de asfixia por falta de financiamento.
A pandemia de Covid-19 tem evidenciado a necessidade premente de estruturação do sistema de saúde para proteger a população. Mais do que nunca, o aprofundamento radical das estratégias do SUS é não apenas desejável; ele é o único caminho viável para a saúde no Brasil. Sua concretização depende de financiamento compatível e legitimidade social. Somente assim o país poderá cuidar de fato da vida dos brasileiros e brasileiras e viabilizar a saúde como direito.
[1] Conforme Peres e Santos (2020), a União financiava em 1995, 63,8% dos recursos públicos da saúde, em 2016 essa proporção caiu para 42,8%, obrigando estados e, principalmente, municípios a aumentar sua cota de financiamento, o que trouxe dificuldades fiscais adicionais para os entes locais (https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v35n103/1806-9053-rbcsoc-35-103-e3510307)
[2] Além de medicamentos, os recursos do SUS financiam ações de vacinação em todo o território nacional e de controle da produção de alimentos e das condições de trabalho. Também financiam a formação de profissionais da saúde e a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias de saúde.
[3] Trabalhadores aposentados que tiverem permanecido tempo inferior a dez anos podem permanecer no plano por período igual ao trabalhado. A mesma regra vale para trabalhadores demitidos sem justa causa. Já os demitidos por justa causa não têm direito.
[4] Isso porque a legislação brasileira entende a contratação de planos de saúde por empresas como uma relação entre pessoas jurídicas (da mesma forma que ocorre com os chamados "coletivos por adesão").
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.