Ian Rebouças Batista, Doutorando em Ciência Política (UFPE), com período sanduíche na Universidade de Notre Dame. Assistente de pesquisa no Carter Center. E-mail: reboucas.ian@gmail.com | Twitter: @reboucasbatista
A preocupação com o estado global da democracia, com muita justiça, ultrapassou as barreiras das discussões acadêmicas e tem se mostrado assunto de interesse público ocupando espaços na mídia, prateleiras de livrarias, podcasts e, há quem diga, até mesas de bares. A defesa da democracia se tornou pauta urgente nas últimas disputas eleitorais em países tão diversos quanto Estados Unidos, Brasil, Chile e Hungria, para citar somente alguns exemplos. O termo costumeiramente utilizado na academia (e além) para se referir ao fenômeno global de ameaças a democracia é chamado de retrocesso democrático (do inglês democratic backsliding), baseado primordialmente em um entendimento costumeiro de que a democracia avança e retrocede pelo mundo em ondas, mas também do pressuposto que os níveis de democracia de um determinado país podem flutuar com o tempo, a depender da qualidade das instituições democráticas postas.
Dados produzidos por institutos de pesquisa e organizações internacionais sobre a qualidade da democracia ao redor do globo são frequentemente utilizados para sustentar a ideia de que estamos vivenciando um retrocesso democrático global, como os indicadores do V-Dem (Variedades da Democracia) e do Freedom House. Dados desse primeiro instituto, inclusive, já foram utilizados neste blog para discutir o caso brasileiro, por exemplo, aqui e aqui.
No mês passado, um novo artigo (no formato working paper, ou seja, ainda em desenvolvimento e não publicado após revisão cega por pares - mas já disponibilizado pelos autores) assumiu a pauta da discussão acadêmica sobre retrocesso democrático. Subjective and Objective Measurement of Democratic Backsliding (Mensurações Subjetivas e Objetivas de Retrocesso Democrático), de Andrew Little, Professor na Universidade da Califórnia, Berkeley, e Anne Meng, Professora na Universidade de Virgínia, possibilitou uma ativa discussão na bolha acadêmica do Twitter, pautou op-ed do Washington Post e já é assunto de podcasts sobre política. Dentre as várias qualidades dessa pesquisa, o artigo possui uma qualidade central que justifica o frisson ao seu redor: desafia o entendimento corriqueiro sobre retrocesso democrático global. Especificamente, propõem repensar o uso das mensurações de qualidade de democracia mais utilizadas na atualidade - aquelas produzidas por V-Dem e Freedom House, por exemplo -, justificando que, por serem baseadas em avaliações subjetivas de especialistas, podem incorrer em viés.
As mensurações dos institutos supracitados são desenvolvidas a partir de pesquisas de opinião de especialistas nos diversos aspectos da democracia. Portanto, as impressões sobre o estado da democracia em determinado país são construídas a partir da visão de acadêmicos, jornalistas, profissionais especializados e atuantes em organizações governamentais e não-governamentais, e assim por diante. Os autores argumentam que essas impressões podem ser enviesadas e incidir em na equivocada interpretação de uma crise global da democracia.
Os alarmes sobre queda da qualidade global da democracia estariam baseados, argumentam os autores, em visões subjetivas e propõem, portanto, uma mensuração objetiva de qualidade democrática, formada por variáveis factuais e observáveis que não dependam de opinião e julgamento. Os autores consideram, assim, se incumbentes tem perdido eleições, a porcentagem de votação de incumbentes, banimento ou impedimento de partidos de oposição em disputas eleitorais, uma série de fraudes eleitorais observáveis, controle do legislativo por parte do executivo, existência de regras formais que indique limite de mandatos presidenciais, e número de jornalistas mortos e presos.
Esses são elementos factuais que não abririam margem para discussão. Isto é: ou estão ausentes, ou estão presentes e, se presente, quanto. O resultado encontrado por essa mensuração objetiva é que não se identifica globalmente uma queda na média da qualidade da democracia, seja agregando todos esses elementos em um único indicador, seja observando individualmente cada um desses elementos - a exceção sendo o número de jornalistas presos, que cresce desde 2000. O nível de democracia, refletido nesse indicador, indica estabilidade do estado global da democracia nas últimas décadas.
Seria a preocupação com a democracia global, até aqui sustentada com dados amplamente utilizados pela academia, puro alarmismo? Alguns pontos precisam ser destacados nessa discussão. A crítica válida feita pelos autores sobre mensurações subjetivas não pode eclipsar os problemas presentes na mensuração alternativa que está sendo proposta. Mas tudo se inicia com uma clarificação do conceito de retrocesso democrático (para que fique claro, falo de democratic backsliding).
O termo retrocesso democrático é costumeiramente utilizado para se falar nas perdas da qualidade de uma democracia ainda que o regime não passe por uma ruptura democrática. Isto é, o país segue sendo uma democracia, mas uma democracia que já não tem a mesma performance de antes. O nível de competição política pode ter caído, talvez pelo impedimento de determinado partido ou candidato concorrer a uma eleição sem justificativa plausível, minorias podem ter sua integridade física mais ameaçada hoje do que no passado, jornalistas podem estar sofrendo ataques verbais ou físicos ao desempenhar suas funções, o nível de desigualdade econômica e de oportunidades pode ter disparado no país. Todos esses são elementos que indicam queda na qualidade de uma democracia.
Geralmente, o retrocesso é caracterizado por vários desses elementos acontecendo ao mesmo tempo e como consequência da ação de um líder que foi democraticamente eleito (Haggard, Kaufman, 2021). Essas ações podem envolver novas leis e reformas institucionais, mas também podem ser comportamentos, pronunciamentos ou apologias realizadas pelo líder. A característica chave do retrocesso democrático é seu aspecto gradual (Waldner, Lust, 2018;Przeworski, 2019). Ocorre aos poucos, em frentes diferentes que avançam com ritmos diferentes, mas que resultam em um regime que, ao fim e ao cabo, é menos democrático do que foi um dia.
O retrocesso, portanto, além de gradual, pode ocorrer para além das instituições políticas. Um líder democraticamente eleito, interessado em se perpetuar no poder e com o objetivo de enviesar a competição eleitoral no futuro, consegue perpetrar seu plano sem necessariamente modificar oficialmente as instituições formais. Por vezes, inclusive, as instituições de controle e de pesos e contrapesos presentes em uma democracia são o que impedem que tal líder consiga implementar tais reformas. Restando a ele ataques públicos a opositores, inflamação das massas, corrupção e, mais importante, aliados em postos de poder e controle que perpetuam interpretações da constituição e das leis que lhe são favoráveis. As instituições formais seguem de pé, mas o uso que se faz dessas fogem ao ideal republicano.
Assim, o retrocesso democrático que soa as sirenes globais de preocupação com o estado da democracia é, por definição, granular, gradual e ocorre por dentro das regras do jogo que elegeram o líder autoritário inicialmente. Essa característica dificulta - para não dizer impede totalmente - uma mensuração objetiva dos elementos que permitem a identificação de um retrocesso em determinado país. Mas esse sempre foi um dos aspectos positivos das mensurações do V-Dem, construir dezenas de indicadores granulares sobre o estado de determinado regime.
A pesquisa do instituto não pergunta diretamente qual o nível da democracia no país, mas pergunta questões menores, pontuais, que ainda que dependam da leitura subjetiva do especialista, são questões mais bem delimitadas e claras para serem opinadas. Não existindo a possibilidade de objetivamente medir o nível de "autocensura" que a mídia pratica, por exemplo, ou o nível de liberdade religiosa observado, a alternativa de perguntar a especialistas atestados, com experiência e expertise na matéria, parece plausível. Evidentemente, o risco de viés é real e deve ser considerado por qualquer um que produz e utiliza esses dados.
O V-Dem, por exemplo, do lado do produtor desses dados, possui uma série de metodologias rigorosas que visam reduzir o risco do "viés do codificador" no seu modelo de mensuração. Eles assumem que não é possível corrigir completamente esse risco, quando e se este viés existir, mas que tomam medidas para considerá-lo e reduzi-lo. Sempre cabe também aos usuários desses dados a compreensão dessa possibilidade e cuidado no uso. Em última instância, dados assim não são mensurações perfeitas, mas são as melhores ferramentas que nós temos para medir fenômenos que não são objetivamente mensuráveis.
A mensuração de qualidade da democracia alternativa a esses dados que é apresentada pelos autores, utilizando elementos factuais e objetivos, parece servir para mensurar um possível conceito de "democracia de fachada". As instituições estão no lugar, partidos de oposição (ainda) conseguem concorrer a eleições, fraudes eleitorais não acontecem à luz do dia e jornalistas não estão sendo assassinados. Esses elementos são ideais para identificar autocracias (ditaduras) - na ausência de qualquer um desses fenômenos, podemos com segurança afirmar que já não estamos em uma democracia. Mas esses elementos não servem para identificar o fenômeno de retrocesso democrático granular, gradual e institucionalmente envernizado.
Os exemplos de como as variáveis utilizadas pelos autores podem perder complementarmente a identificação do fenômeno de interesse - retrocesso democrático- são vários. Comento dois. Donald Trump e Jair Bolsonaro perderam a reeleição (variável objetiva utilizada pelos autores), mas para além da bolha de seus apoiadores que discordam até dessa primeira afirmação, poucos retrucam o fato de que as democracias americana e brasileira são as mesmas de antes de seu governo. O número de jornalistas mortos é objetivamente mensurável, mas a quantidade de jornalistas que não exercem plenamente suas funções como gostariam por medo de serem mortos, como medir?
A discussão que emergiu a partir desse instigante artigo de Little e Meng é mérito dos autores. Trazem à tona a importante reflexão sobre mensurações subjetivas baseadas em especialistas e reviveram o eterno debate sobre conceitos de democracia. Sua limitação, me parece, é a proposta de um indicador inadequado para medir o fenômeno discutido: o retrocesso democrático é granular e por dentro das fachadas institucionais. Um indicador que apenas captura aspectos superficiais de uma democracia não serve para medi-lo. Com as melhores ferramentas que temos até aqui (que sim, não são perfeitas), sabemos que o retrocesso está acontecendo em diversas partes do globo (evidências aqui, aqui e aqui) e precisamos seguir alertas.
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