Bruno Lazzarotti Diniz Costa, Doutor em Sociologia e Política (UFMG). Professor e Pesquisador da Fundação João Pinheiro. Coordenador do Observatório das Desigualdades.
Anna Clara Mattos, Estudante de Administração Pública na Fundação João Pinheiro e colaboradora do Observatório das Desigualdades
Lorena Ferrari Auarek, Graduanda em Ciências Econômicas (UFMG). Colaboradora do Observatório das Desigualdades
Uma política social responsável e democrática para o enfrentamento à pobreza deve se orientar pelo princípio claro de que sua razão de existir é efetivar os direitos dos mais vulneráveis e tratá-los como os sujeitos da cidadania, aos quais a política pública deve garantir respeito, segurança e previsibilidade. Não foi o que aconteceu nos últimos anos e a montanha-russa da extrema pobreza em Minas Gerais expressa como as condições mínimas de vida dos mais pobres foram tratadas conforme as conveniências de ocasião por parte do Governo Federal, ao sabor das diferentes conjunturas de sua popularidade, de sua relação com a opinião pública e com o Congresso e, ao longo de 2022, na medida de seu desespero eleitoral.
Gráfico 1 - Taxa de Extrema Pobreza - Brasil (2022)
De fato, como mostra o Gráfico 1, a extrema pobreza vinha mantendo trajetória declinante desde 2012 (na verdade, desde os primeiros anos do século). Esta tendência decorreu da combinação de melhoras no mercado de trabalho e da combinação de políticas de seguridade social mais abrangentes, institucionalizadas e fortalecidas, que incluíram aumentos reais do salário mínimo - com consequências sobre as transferências da previdência - ; estruturação ou expansão de programas de transferências de renda, como Bolsa Família e Benefícios de Prestação Continuada; institucionalização do Sistema Único da Assistência Social, entre outros fatores. O conjunto do Sistema Brasileiro de Proteção Social vinha se adensando, pela incorporação de novos públicos e novas políticas, ampliação do financiamento e da oferta de serviços e se institucionalizando, por meio de mecanismos de coordenação federativa, criação de capacidade institucional, sistemas de monitoramento e avaliação, aumento da transparência e participação. Esta trajetória consistente leva o percentual de pobres e de extremamente pobres a alcançar, em 2014, os valores mais baixos da série.
A interrupção desta trajetória a partir da convergência entre crise política, recessão e o golpe jurídico parlamentar que removeu a presidenta Dilma Roussef em 2016, bem como a evolução da renda, da pobreza e da desigualdade no período seguinte já foram tratadas em outras publicações deste Observatório*. O foco desta nota é o período mais recente, procurando mostrar como a fragilização, quando não desmonte, da institucionalidade social e sua submissão absoluta à conjuntura de curtíssimo prazo produziram insegurança, imprevisibilidade e volatilidade às populações mais vulneráveis, inclusive no estado de Minas Gerais. De partida, a mera observação do comportamento da extrema pobreza no último quadriênio já demonstra, de forma geral, o ponto: após um período de relativa estabilidade, sem porém voltar ao patamar de 2014, a extrema pobreza sofre uma queda abrupta em 2020, retornando a um nível mais próximo do mais baixo da série. Entretanto, já no ano seguinte passa ao extremo oposto, alcançando o mais alto valor da década, superior a 10%, para apresentar outra queda em 2022, retomando o valor de 6,4%, próximo à média do biênio 2018/2019. As bases e os efeitos deste vai-e-vem sobre distintos grupos serão tratados no restante do texto.
A fragilização da assistência social e o enfraquecimento do Cadastro Único.
A volatilidade da renda dos mais pobres no período mais recente decorreu, em parte, das turbulências sociais e econômicas que acompanharam a eclosão da pandemia de COVID-19 e a estratégia desastrosa para seu enfrentamento no Brasil. Mas só em parte. O outro componente desta roleta irresponsável combinou insensibilidade, autoritarismo e baixa qualificação técnica e social na formulação das intervenções sociais. Não era, porém, uma incompetência aleatória: expressouo curtoprazismo oportunista orientado pela popularidade conjuntural do governo federal e pelas chances eleitorais de suas lideranças.
As evidências sobre isto são variadas. Os programas federais de transferência de renda aos mais pobres passaram por nada menos do que 8 mudanças muito significativas em um período de 3 anos: não há como criar capacidade institucional e de gestão com tamanha instabilidade, tampouco como estados e municípios conseguirem se adaptar aos novos critérios e procedimentos; é praticamente inevitável, nestes termos, que se perca eficiência e efetividade nas ações. Mas, pior, imagine-se o grau de insegurança e incerteza das famílias vulneráveis diante de uma situação em que não sabem se seguirão enquadradas nos critérios de elegibilidade, qual valor receberão, quanto tempo durará o benefício, sob que condições, o quanto demorará sua inclusão no programa e mesmo quais os procedimentos para acesso e cadastro. Além do desrespeito intrínseco para com as condições de vida de milhões de cidadãos, além das consequências sobre a capacidade de implementação e gestão dos programas, este tipo de intervenção provoca ainda uma perda adicional de eficácia. De fato, uma parte importante dos resultados positivos dos programas de transferência de renda vem de sua regularidade e previsibilidade. O problema com a renda dos mais pobres não é apenas o seu valor insuficiente, mas também sua volatilidade: não saber o quanto vai receber em cada mês e quanto durará reduz o horizonte temporal das famílias e impede a possibilidade de fazer compromissos (como prestações ou mensalidades) e mesmo de tecer planos e sonhos maiores para o futuro. O programa bolsa família sempre garantiu esta possibilidade, que restou fortemente comprometida pelo vai-e-vem dos últimos anos neste campo.
A perda de qualidade do Cadastro Único
Outro alvo da inépcia predatória foi o cadastro único. O Cadastro Único dos programas sociais é uma longa e contínua construção, que vem se aperfeiçoando desde seu início, em 2001, mas principalmente a partir de 2005, quando a parceria com os municípios para expansão e atualização do Cadastro foi fortalecida por meio de um incentivo federal à qualidade dos registros feitos pelos municípios. O CadÚnico não é uma mera listagem de beneficiários de transferência de renda; é um instrumento fundamental para a formulação, o planejamento e a avaliação de várias políticas públicas, tanto no campo da assistência social quanto de várias outras, que se estendem por áreas tão diversas quanto a energia elétrica ou acesso a medicamentos. Mais do que isto, é fundamentalmente um mecanismo para impedir que aqueles grupos historicamente excluídos das políticas públicas e dos direitos saiam do radar do Estado, que tende a sofrer de grave miopia quando se trata de enxergar aqueles mais vulneráveis para outros fins que não sejam a mira precisa. É ainda um ponto de contato inicial e permanente entre o sistema de proteção social e seus usuários. Por isso, é tão importante que o conjunto das diversas informações presentes ali seja confiável e atualizado e que incentive o acesso dos beneficiários aos equipamentos e serviços da proteção social.
No entanto, desde 2016, a direção adotada pelo governo federal em relação ao Cadastro Único foi não reconhecer sua qualidade e não debater com transparência seu aperfeiçoamento e a superação de seus problemas (Folha, 2022). A prioridade foi questionar o instrumento e apostar tudo em uma precipitada mudança para um tipo de autoatendimento digital, por meio de um pré-cadastramento feito pelo próprio cidadão que pleiteia seu registro. Esta diretriz gerou várias consequências negativas, uma delas foi a dificuldade de várias famílias com o pré-cadastramento, agravadas pela exclusão digital e educacional que caracteriza a trajetória de vulnerabilidade dos beneficiários destas políticas públicas. Como resultado, a demanda nos equipamentos da assistência social aumentou, sobrecarregando a capacidade de atendimento; erros de preenchimento pioraram a qualidade das informações e houve vários relatos nos municípios de "intermediários" cobrando das famílias pelo preenchimento do pré-cadastramento; as famílias revalidavam informações eventualmente desatualizadas, já que a opção de revalidar aparecia para os usuários do aplicativo e mostrava-se mais simples e acessível para muitas pessoas, também piorando a qualidade das informações do cadastro.
A piora do desenho do programa de transferência de renda e a deterioração do foco na distribuição dos benefícios
Os programas de transferência de renda, em geral, e o Programa Bolsa Família (PBF) em particular estiveram, desde de 2016 e, com mais intensidade, nos últimos quatro anos, sob disputa. Esta se deu não apenas do ponto de vista de valor, gestão e sustentabilidade, mas em torno de seus próprios fundamentos, sem que isto significasse, porém uma proposta alternativa minimamente sólida. Primeiro, o Programa permaneceu estagnado, em valor e cobertura durante anos, chegando ao final de 2021 com uma fila de espera de mais de 2,3 milhões de pessoas. Objeto de uma promessa eleitoral, o duvidoso 13º do Programa Bolsa Família foi pago apenas em um ano.
Depois de atravessar o período mais agudo da pandemia em um certo limbo, eclipsado pelo valor e cobertura mais elevados do auxílio emergencial, no final de 2021 o PBF volta a ser objeto de atenção, agora já com vistas ao processo eleitoral que se aproximava. Na busca por imprimir uma marca social própria, o Governo Federal extinguiu o Programa, ignorando as críticas de que se trataria de uma mudança oportunista e autoritária, dado o êxito consensual do Bolsa Família e a falta de diálogo social e técnico da decisão. Em seu lugar, foi criado o Auxílio Brasil, cercado de incertezas quanto ao valor, à cobertura e ao desenho. O valor mínimo do benefício aumentou para R$400,00. No entanto, os recursos assegurados para o programa garantiam apenas um benefício médio de R$220,00, sendo o restante dependente de aportes temporários de natureza discricionária. O acompanhamento da frequência escolar das crianças, descontinuado desde 2019, foi abandonado no novo programa. O valor de fundo do programa - de garantia ao direito de segurança de renda e de acesso a outras políticas - foi substituído por uma confusa noção de mérito e premiações, que se desdobraria em nove diferentes modalidades de possíveis benefícios e bolsas. Os recursos para várias destas modalidades, como inclusão produtiva, porém, não foram disponibilizados. Tampouco pactuação, condições e incentivos para que estados e municípios implementassem e acompanhassem estes componentes. Assim, o resultado bastante previsível foi o de que nunca chegaram a ser implementados.
Entretanto, outro problema do desenho contribuiu para a perda de qualidade das informações e de eficiência e equidade na seleção de beneficiários e na alocação dos benefícios. O Auxílio Brasil previa um valor mínimo de R$400,00 a ser recebido por cada família, independente de sua composição (Gabinete de Transição, 2022). Além do equívoco programático de fazer com que uma pessoa morando sozinha possa receber o mesmo valor de, por exemplo, uma família com um adulto e duas crianças, este desenho gerava um incentivo perverso do ponto de vista da qualidade e confiabilidade do Cadastro. Em uma situação de agravamento das condições de vida e de precarização dos serviços de acompanhamento, este desenho induzia a que adultos que viviam juntos se cadastrassem como se morassem separadamente, para que, em conjunto, viessem a receber R$ 800,00. Ou seja, o formato do Programa incentivava o fornecimento de informações erradas, que prejudicavam ainda mais a qualidade do Cadastro Único. Em suma, além da falta de investimento, várias iniciativas de desenho e gestão dos programas contribuíram para uma perda de qualidade das informações para planejar e gerenciar as políticas destinadas aos mais vulneráveis. E, claro, outra provável consequência direta da fragilização do CadÚnico foi também a perda de eficiência e foco na seleção dos beneficiários dos programas de transferência de renda.
A desconsideração das instâncias de articulação e pactuação.
A Assistência Social, como ocorreu com outras políticas, a exemplo da Saúde, enfrenta o problema recorrente das políticas sociais em regimes federativos: compatibilizar a autonomia dos entes federados com a necessidade de coordenação entre eles para a implementação de iniciativas e para a consecução de objetivos comuns. É um desafio ainda mais intenso no caso brasileiro, que é uma federação muito heterogênea e desigual e em que também os municípios são considerados entes federados. Este equilíbrio só pode ser mantido a partir de um conjunto de instituições formais - a LOAS, as NOBs, os mecanismos de repasse fundo a fundo, os instrumentos de indução (como IGD), entre outras - e também informais - a manutenção de regularidade e montantes mínimos de repasse (que tornem críveis os compromissos comuns estabelecidos), a disposição para o debate informado e para a escuta, o processo de formação constante. O mesmo pode se dizer da participação social, cuja efetivação é tão necessária quanto exigente. As principais instâncias de articulação são as Conferências Nacionais de Assistência Social, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e a Comissão Intergestora Tripartite (que promove a pactuação com estados e municípios) e seus congêneres estaduais e municipais.
Apesar da riquíssima experiência de construção coletiva - social e federativa - do SUAS, as principais mudanças nas políticas de proteção social no período recente foram, em grande medida, formuladas ou implementadas à revelia das instâncias de participação e de pactuação federativa. As atividades e deliberações foram cerceadas ou simplesmente ignoradas. Ainda em 2017 o então Ministério do Desenvolvimento Social questionou, por meio de um parecer jurídico, o caráter vinculante das decisões da Conferência realizada naquele ano, passando a tratá-las como sugestões e não deliberações. Em 2019, a proposta realizada pelo CNAS de realização de Conferência Extraordinária - uma prática regular do SUAS - enfrentou a oposição do Ministério da Cidadania e, apesar de chegar a ser convocada, sequer ocorreu. Em 2021, por força de lei, a Conferência ocorreu com grandes dificuldades, pelo seu caráter híbrido, pelo empenho limitado do Ministério e em meio a acaloradas cobranças sobre os reiterados cortes no financiamento dos serviços (IPEA, 2022).
O CNAS também enfrentou dificuldades: o fato de estar previsto em lei protegeu minimamente o Conselho da extinção em massa de colegiados, comissões e conselhos promovida pelo decreto 9.759, de 2019. Ainda assim, suas comissões temáticas, não previstas na legislação, tiveram seu funcionamento fortemente prejudicado. Houve também as inevitáveis limitações para reuniões e debates advindas da pandemia. Mas o que foi mais grave foi que o CNAS foi alijado das principais discussões e deliberações do período: por exemplo, nem o Auxílio Emergencial nem o Programa Auxílio Brasil foram objeto de deliberação ou pauta de discussão no CNAS que tampouco participou da definição dos critérios de repasse dos recursos extraordinários decorrentes das medidas de enfrentamento à pandemia (IPEA, 2022).
Por fim, o Governo Federal se omitiu de sua importante função de coordenação federativa no campo da Assistência, como de resto ocorreu em outras áreas, como Saúde e Educação, mesmo diante da gravíssima emergência sanitária que o país atravessou. Não foram objeto de pactuação na CIT o Auxílio Emergencial, a implementação do Auxílio Brasil, as mudanças importantes nas definições do cofinanciamento entre os entes. Ademais, a frequência das reuniões da CIT se reduziu pela metade e o número de pactuações efetivadas foi um quarto daquelas de 2013, quando o contexto era mais favorável. Não há, portanto, que se surpreender com os enormes problemas locais de implementação das políticas e programas do período, especialmente Auxílio Emergencial e Auxílio Brasil, já que sua viabilidade e as condições necessárias para sua implementação não foram objeto de avaliação ou planejamento conjunto, seja no CNAS, seja na CIT.
Este processo de marginalização das instâncias de participação e pactuação tem dois problemas. De imediato, produz decisões piores. Decisões compartilhadas em instâncias de diálogo social e federativo são, geralmente, decisões melhores, porque são mais informadas, realistas e legítimas. Nelas é possível antecipar problemas, processar conflitos e avaliar os diferentes contextos com que uma iniciativa se defronta em um país heterogêneo e continental como o Brasil. Além disto, quando participam efetivamente de uma decisão, os diferentes atores envolvidos - mesmo quando não se decidiu pela alternativa por eles preferida - tendem a se comprometer mais e encará-la como mais legítima, já que se reconhecem no processo que a gerou. Mas o segundo ponto aqui é que este afastamento dos atores relevantes envolvidos compromete, no médio prazo, a capacidade de coordenação da política, já que traz incerteza e imprevisibilidade e fragmenta os loci de decisão e de negociação que orientam estados, municípios, trabalhadores e entidades da sociedade civil. É, portanto, parte do processo de desinstitucionalização da política de assistência social, cuja reversão é agora uma tarefa prioritária (IPEA, 2022).
O desfinanciamento do SUAS
Como se sabe, os programas de transferência de renda são um componente importante da proteção social não contributiva, em geral, e da política de assistência social, em particular. Mas não são os únicos instrumentos relevantes para a efetivação desta política pública. Os serviços de assistência social (e os equipamentos e equipes que os viabilizam) constituem parte essencial do atendimento aos mais vulneráveis, por vários motivos: ali se identificam e acompanham as famílias mais vulneráveis; se desenvolvem programas para evitar ou atender os casos de violações de direitos (violência familiar, trabalho infantil etc.), garante-se o acesso do público a outras políticas e programas importantes, entre várias outras funções centrais para a garantia dos direitos mais básicos deste público (como é o caso dos centros de atendimento à população em situação de rua) . É também por meio destes equipamentos e profissionais que a atualização e qualidade do Cadastro Único pode se efetivar.
E embora, no âmbito do SUAS, a execução destes serviços fique a cargo dos estados e municípios, o papel da União na formulação, coordenação, indução e financiamento da política de assistência é crucial para a sua viabilidade e integração. Pois bem, após um longo período de ampliação, que atingiu seu ponto mais alto em 2014, o SUAS veio sofrendo um geralmente (mas nem sempre) silencioso e constante processo de desmonte, por meio de seu desfinanciamento.
Gráfico 2 - LOA 2012-2022 e PLOA 2023 (em bilhões de R$)
Como mostra o Gráfico 2, baseado nos PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual) do Governo Federal enviados ao Congresso e aprovados (com exceção do previsto para o ano de 2023, que foi modificado após as eleições e a PEC da transição), após ter atingido 3,1 bilhões de reais em 2014, o orçamento para os serviços socioassistenciais foram reduzidos a um terço (1 bilhão de reais) em 2022 e o Projeto de Lei Orçamentária enviado pelo Governo Bolsonaro ao Congresso para 2023 previa não mais do que 50 milhões de reais, o que significaria, em termos práticos, a extinção do SUAS.
Gráfico 3 - Evolução de repasses
Em alguns anos, como mostra o Gráfico 3 a execução orçamentária foi superior - às vezes, bastante superior ao que foi proposto pelo governo federal na LOA, devido à aprovação de recursos extraordinários para o enfrentamento à pandemia e, em outros casos, devido à execução de emendas parlamentares, geralmente repassados ao final do ano. Ainda que estes expedientes possam ter mitigado as situações mais dramáticas advindas das quedas constantes do orçamento, recursos extraordinários e episódicos desorganizam o planejamento e, pela imprevisibilidade e incerteza, inviabilizam o comprometimento de estados e municípios com novas ações de investimento ou de custeio. O resultado é a baixa execução, a devolução de recursos, o "empoçamento" da verba nos fundos locais ou o gasto açodado e pouco sustentável; em qualquer caso, a perda de eficiência e de qualidade do gasto em Assistência Social.
A proteção social a serviço da aventura eleitoral de 2023
Dentre as políticas de proteção social diretamente previstas na Constituição de 88, a assistência foi provavelmente aquela de institucionalização mais tardia. A superação de um legado de baixa institucionalidade, uma fragmentação, um caráter semipúblico e semifilantrópico, uma ausência de coordenação federativa e um financiamento adhoc e assistemático - mantido assim em parte porque servia a relações políticas patrimonialistas e ao clientelismo particularista - exigiu grande esforço político e mobilização da sociedade. O golpe de 2016 e a EC 95 ("Teto de Gastos") já haviam retirado o ímpeto desta institucionalização e, no último quadriênio, a disputa aberta contra o Programa Bolsa Família e a busca pouco cuidadosa por uma "marca" própria levaram a iniciativas pouco sustentáveis e pouco articuladas, como o Auxílio Emergencial e a substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil. Mas nada se compara à instrumentalização eleitoral desta política no ano de 2023.
Ao notar que enfrentava sérias dificuldades no processo eleitoral, às vésperas do início oficial da campanha e sem grandes preocupações em camuflar seus objetivos mais estritamente eleitorais, a partir da EC 123/22, que ficou conhecida como "PEC Kamikaze", o governo federal criou R$35 bilhões em auxílios, cuja validade se estendia por apenas 5 meses. Foram 26 bilhões de reais para o Auxílio Brasil, 1 bilhão para o Auxílio Gás, 5,4 bilhões para Auxílio Caminhoneiro, 2 bilhões para Auxílio Motorista de Táxi e 0,5 bilhão para Alimenta Brasil. Segundo cálculos do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (MADE) da Universidade de São Paulo, este pacote teria gerado 1,7% de crescimento adicional do PIB em 2022, tal a sua magnitude e efeitos multiplicadores, conforme o Gráfico 4 adiante. Note-se a falta de sustentabilidade e previsibilidade destas iniciativas (que não durariam além do período eleitoral) e mesmo a pouca preocupação com sua eficiência, eficácia e desenho (exceto a eficácia eleitoral, claro). baseadas em efeitos multiplicadores de benefícios sociais mostram que o pacote inflou a taxa de crescimento de 2022 em 1,7 ponto percentual.
Gráfico 4 - Auxílios eleitoreiros em 2022
Não seria difícil prever que gastos desta magnitude, eleitoralmente instrumentalizados, realizados sem planejamento, além de serem um desrespeito e uma violação dos direitos dos cidadãos vulneráveis, estariam abertos a todo tipo de problemas e desvios, deliberados ou não. E foi o que aconteceu. O Gráfico 5, adiante, permite observar isto.
Gráfico 5 - Famílias beneficiárias do Auxílio Brasil no período eleitoral
Em primeiro lugar, houve no período uma incorporação massiva de beneficiários ao Auxílio Brasil: um milhão de famílias em pouco mais de um mês, o que, por si só, levanta suspeitas de instrumentalização eleitoral. Mas a observação do gráfico permite dimensionar os efeitos desastrosos, mencionados anteriormente, do desenho equivocado do Auxílio Brasil. Conforme se argumentou a falta de acompanhamento, a fragilização do SUAS e do Cadastro e o modelo de transferência induziram a que os beneficiários, pressionados pela queda da renda, inflação de alimentos e incerteza sobre as regras e futuro do programa, efetivassem seu cadastro como se fossem famílias unipessoais, mesmo quando não era o caso. Em apenas cerca de um mês após a implementação do novo desenho, quase outro 1 milhão de novas famílias com um único integrante havia sido incorporado aos beneficiários do Programa. Além da óbvia manipulação eleitoral, foram gerados benefícios em duplicidade, erros de exclusão e de inclusão, perda de qualidade do CadÚnico e um passivo de problemas para o futuro.
Mas, os problemas foram além. Não bastasse o aumento oportunista e sem sustentabilidade do valor e do número de beneficiários do Auxílio Brasil, o Governo Federal utilizou de forma pouco transparente, para dizer o mínimo, o empréstimo consignado para os beneficiários do Auxílio Brasil (Gráfico 6). O consignado foi criado por meio de medida provisória, aprovada em julho pelo Congresso. Desde o início, seus termos foram objeto de críticas e contestação, pelas suas possíveis consequências para os beneficiários do programa. O regulamento do empréstimo permitia o desconto na fonte de até 40% do valor do Auxílio, com juros que poderiam chegar a 50% ao ano (UOL, 2023). A natureza temerária de um empréstimo nestes termos parece bem evidente: em termos de endividamento, permitir a cidadãos vulneráveis e com demandas urgentes comprometer quase metade de sua renda com um empréstimo já é grave, mas quando se consideram os juros aplicados (que estenderão o montante e a duração da dívida e do desconto) e o fato de que o empréstimo seria feito sobre um valor de transferência cujos recursos previstos durariam apenas 5 meses, os resultados seriam caóticos para as famílias endividadas.
Gráfico 6 - Autorização de empréstimos consignados no período eleitoral
Mas, se a concepção e regras do Empréstimo eram questionáveis, sua implementação foi mais do que suspeita. Como se nota no Gráfico 6, elaborado pelo portal UOL a partir de dados da Caixa Econômica Federal, o empréstimo consignado do Auxílio Brasil teve sua vigência efetiva delimitada pela em função da urgência e de sua utilidade eleitoral. De fato, apesar de ter sido aprovado em julho, foi só após o primeiro turno - no dia 10 de outubro de 2022 - que os créditos se iniciaram. E, entre esta data e o dia 30 de outubro, em que se realizou o segundo turno das eleições, nada menos do que cerca de 6,8 bilhões de reais foram creditados aos beneficiários, uma média de quase 450 milhões por dia útil. Passado o segundo turno - e com a derrota eleitoral do então Presidente - o Empréstimo Consignado perdeu sua verdadeira razão de ser e foi praticamente descontinuado, conforme também demonstra o gráfico: no período pós-eleitoral, a média diária de concessões caiu para aproximadamente 1,7 milhão de reais. Em resumo, 99% das concessões de empréstimos consignados a beneficiários do Auxílio Brasil ocorreram entre o 1º e o 2º turnos das eleições.
O que ocorreu com o Auxílio Caminhoneiro e com o Auxílio Motorista de Táxi não foi diferente. Segundo auditoria da Controladoria Geral da União, quase um terço das concessões de Auxílio Caminhoneiro descumpriam as condições estabelecidas, com irregularidades no CPF, no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Carga e, em alguns casos, os beneficiários constavam como mortos. No caso dos motoristas de táxi, 78% dos titulares dos auxílios concedidos apresentavam alguma irregularidade, incluindo CPF irregular, habilitação vencida, moradia no exterior e também constarem como falecidos (UOL, 2023b).
Ao mesmo tempo, a proposta de Orçamento para 2023 que o Governo Federal de então enviou ao Congresso mostrava toda a fragilidade do compromisso com as políticas de proteção social, exceto por sua utilidade eleitoral. Conforme mostra a Tabela 1, o projeto orçamentário para 2023 inviabilizaria a continuidade do SUAS, reduzindo em 95% os recursos para proteção básica e especial e em 97% os recursos para a estruturação da rede de serviços do SUAS, os quais já vinham sendo objeto de cortes há anos, como se demonstrou mais acima. Além disto, apesar do aumento do Auxílio Brasil para 600 reais às vésperas das eleições, o orçamento proposto para 2023 para este Programa não garantia a manutenção deste valor: o PLOA 2023 continha recursos para somente para o pagamento no valor mínimo de R$ 400, sendo que a manutenção do valor de R$ 600 exigiria aporte adicional de R$ 52 bilhões e rediscussão das regras fiscais então vigentes. Ou seja, no que dependesse do Governo passado, em janeiro de 2023 o Auxílio Brasil retornaria ao valor de R$ 400,00 .
Tabela 1 - Serviços e Ações no SUAS - Programa 5031 - de Proteção Social no âmbito do Sistema Único de Assistência Social
Para além dos eventuais abusos políticos e eleitorais que os casos aqui relatados representam, o que se buscou aqui foi demonstrar as duas afirmações feitas no início deste texto. Em primeiro lugar, a completa desconsideração para com as condições de bem-estar, para com a segurança das condições de vida e, fundamentalmente, para com os direitos de cidadania e a dignidade de milhões de brasileiros, tratados como meros objetos da conveniência eleitoral, à completa mercê da conjuntura da disputa em torno da reeleição do governante de turno.
Segundo, ao longo dos últimos anos - desde o golpe de 2016 e, mais agressivamente, no último quadriênio - o Sistema Único de Assistência Social tem sido objeto de um contínuo desmonte, seja pelo desfinanciamento, seja pela perda de capacidade institucional, seja ainda pelo abandono da coordenação federativa ou pelas mudanças abruptas, pouco debatidas e de desenho duvidoso da formulação e regulamentação dos programas e serviços de proteção social. A interrupção deste desmonte foi um passo crucial para a própria sobrevivência da assistência social. Sem a chamada PEC da Transição, sem a retomada do papel coordenador do Governo Federal, que inclui o diálogo federativo e com a sociedade civil e sem o esforço inicial em remediar no que for possível os danos produzidos pelo processo de desmonte, o risco seria comprometer o esforço de toda uma geração na construção de um sistema de proteção social não contributivo, democrático e republicano. Trata-se agora de empreender a longa tarefa de reconstrução e, ao mesmo tempo, de repensar o perfil de nossas políticas e de nossa institucionalidade social à luz das transformações sociais e econômicas em curso. Desafios ainda maiores, mas desafios melhores.
Nota - Publicações do Observatório das Desigualdades
[1]Observatório das Desigualdades (2023). Aumento do Salário Mínimo: uma esperança de reconstrução no Dia do Trabalhador. Disponível em: https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=2978>.
[2]Observatório das Desigualdades (2023). Síntese de Indicadores Sociais: o retrato de um país ainda mais pobre e desigual. Disponível em: https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=2894>.
[3]Observatório das Desigualdades (2023). Minas pela igualdade: caminhos, desafios e proposições para as políticas de transferência de renda. Disponível em: https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=2825>.
[4]Observatório das Desigualdades (2022). Pobreza em Minas Gerais e a "PEC da Transição": muito além da "licença para gastar". Disponível em: https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=2632>.
[5]Observatório das Desigualdades (2021).O Fim do Bolsa Família: Incertezas sobre a Proteção Social no Brasil. Disponível em: https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=2178>.
[6]Observatório das Desigualdades (2021).Presente e futuro das políticas de proteção social no Brasil: um debate necessário. Disponível em: https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=2169>.
[7]Observatório das Desigualdades (2021).A dinâmica recente da pobreza e extrema pobreza em Minas Gerais. Disponível em: https://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=1665>.
Referências
Direitos Valem Mais (2023). PISO EMERGENCIAL: Propostas de Emendas Parlamentares. Nota Técnica. Disponível em:
Folha (2022). Bolsonaro deturpa base de dados do Bolsa Família e Auxílio Brasil. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/06/bolsonaro-deturpa-base-de-dados-do-bolsa-familia-e-auxilio-brasil.shtml>
Gabinete de Transição (2022). "Os recursos previstos para Assistência Social em 2023 seriam suficientes para 10 dias apenas", diz ex-ministra Tereza Campello. Disponível em:
IJSN (2023). Análise Especial: Pobreza e miséria nos estados brasileiros 2022. Disponível em: https://ijsn.es.gov.br/Media/IJSN/PublicacoesAnexos/sumarios/IJSN_Especial_Pobreza_Estados_Brasileiros_2022.pdf>.
IPEA (2022). Assistência Social. In: POLÍTICAS SOCIAIS: acompanhamento e análise. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11536/1/BPS_29_assistencia_social.pdf>.
Made (2022). PIB ELEITORAL. Disponível em:
UOL (2023). Caixa cedeu 99% dos empréstimos do Auxílio Brasil no período eleitoral. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/02/14/consignado-auxilio-brasil-suspeita-uso-eleitoral-caixa-favorecer-bolsonaro.htm?cmpid=copiaecola>.
UOL (2023). Auxílios taxista e caminhoneiro de Bolsonaro pagaram R$ 2 bi indevidamente. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/06/02/auxilios-taxista-e-caminhoneiro-de-bolsonaro-pagaram-r-2-bi-indevidamente.htm?cmpid=copiaecola>. [b]
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