Amanda Lui Beck, graduanda em Administração Pública na FGV
Mariana Scaff Haddad Bartos, professora de saúde coletiva da Universidade Nove de Julho e mestre em administração pública e governo pela FGV.
Gabriela Lotta, professora de administração pública e governo da FGV-EAESP, coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)
Os variados efeitos da crise do Covid-19 já têm sido sentidos no mundo inteiro. Embora a saúde seja a sua face mais visível, o enfrentamento da doença coloca em evidência outras áreas também afetadas. Ao observar os impactos dos últimos meses, já temos visto problemas de naturezas variadas, como o aumento do desemprego e da pobreza, aumento de violência doméstica, problemas de moradia pela inviabilidade de pagamento de aluguel, crescimento da insegurança alimentar, potencial aumento das desigualdades educacionais, entre outros.
Enquanto os Estados têm avançado no enfrentamento da face sanitária da doença, provendo serviços de saúde emergenciais, e na sua face econômica, com políticas anticíclicas e de distribuição de renda emergencial, ainda há poucos avanços em outras áreas também bastante sensíveis frente à crise. Isso se torna mais grave em contextos de alta desigualdade e muita vulnerabilidade, como o brasileiro. Já há diversas evidências de que a crise sanitária afeta de forma desigual (e mais incidente) grupos populacionais tradicionalmente mais vulneráveis - como os mais pobres, as mulheres, os negros e os que moram em situação precária. Além de estarem sujeitos a maiores taxas de mortalidade, suas vulnerabilidades são ainda mais exacerbadas pelos múltiplos problemas decorrentes da crise. E, para esta multiplicidade de problemas, há poucas soluções sendo propostas.
Quais são as soluções, por exemplo, para lidar com população em situação de rua que está fisicamente exposta à doença, não tem materiais de higiene, não pode fazer isolamento e não tem documentos para acessar a renda mínima emergencial? Ou como tratar da população que vive em condições habitacionais precárias, como cortiços e favelas, com alta densidade populacional e que não pode fazer distanciamento ou acessar água limpa para lavar as mãos? Como resolver o problema da população de baixa renda que precisa continuar trabalhando durante a crise e não tem onde deixar suas crianças (estas últimas, inclusive, precisando de apoio e estrutura para as aulas online)?
Estes são apenas alguns exemplos que mostram a complexidade da crise atual e a multiplicidade e interdependência dos problemas a ela relacionados, os quais não podem ser resolvidos apenas com intervenções das áreas de saúde e economia.
A compreensão dos diversos efeitos da crise não é clara, assim como não são simples as soluções. Cada problema gerado possui diferentes fatores causais e possibilidades de soluções, muitas vezes contraditórios. Isso caracteriza o que tratamos na literatura como problemas perversos (termo cunhado em inglês como wicked problem). Estes problemas são aqueles que possuem definições dinâmicas, muitas causas, interrelação com outros problemas e falta de consenso quanto às soluções apropriadas.
Problemas perversos demandam soluções complexas, interrelacionadas e de natureza intersetorial. Pensar em intersetorialidade é compreender que a lógica verticalizada e setorial, característica da administração pública, não resolve problemas que são multidimensionais, como é o caso da pobreza e da vulnerabilidade, por exemplo. Ao olhar integralmente para questões que são multifacetadas, a intervenção deve deixar de ser fragmentada, tornando-se horizontal e sinérgica. Neste contexto de pandemia, no qual existe um ciclo relacional de problemas, é urgente evidenciarmos respostas intersetoriais e não isoladas.
No entanto, assim como outras emergências, a crise do Covid-19 exacerba dificuldades estruturais na sociedade e na administração pública. E a baixa capacidade de promover políticas complexas e intersetoriais tem sido apontada, há alguns anos, como um dos grandes nós da administração pública no Brasil e no mundo. Governos constroem soluções simples, setorializadas e pontuais para enfrentar problemas cuja natureza dependeria de intervenções múltiplas e interdependentes.
Para problemas de pobreza, distribuímos renda. Para problemas de aprendizado, construímos escolas. Para problemas de insegurança alimentar, fornecemos cesta básica. No entanto, as soluções setoriais e específicas apenas enxugam o gelo e não conseguem enfrentar a natureza original dos problemas perversos. Ao tratar estes problemas de forma setorial, comprometemos o alcance de efetividade e de eficiência nas respostas. Comprometemos a efetividade na medida em que as soluções simples não geram impacto nem resolvem o problema na sua integralidade. Geramos ineficiência pelo aumento de gastos em políticas que não conseguem obter resultados e pela sobreposição de soluções repartidas em secretarias e órgãos governamentais distintos. O enfrentamento a problemas complexos requer, portanto, que os governos construam soluções que integrem diferentes secretarias e políticas. Requer uma articulação entre setores governamentais que, tradicionalmente, trabalham sozinhos.
Frente à crise atual, cabe aos governos, acima de tudo, pensar em políticas articuladas, que envolvam diferentes setores, apresentem soluções integradas e capazes de lidar com múltiplos fatores e causas. Os gabinetes emergenciais de enfrentamento à crise, adotados por diversos municípios e governos estaduais, são um bom exemplo de intersetorialidade frente à emergência. Eles articulam diferentes órgãos governamentais que são prioritários neste momento e concentram suas decisões conjuntas no gabinete governamental. Isso possibilita construir propostas de soluções rápidas e articuladas, aumentando a chance de sua integralidade.
No entanto, não adianta apenas promover integração no alto escalão. A integração acontece, de fato, no nível da rua, onde os profissionais da linha de frente dos serviços encontram as situações complexas e precisam fazer encaminhamentos articulados - caso eles existam. Os profissionais que atendem população em situação de rua, por exemplo, precisam ser capazes de dar soluções emergenciais relativas à renda, à documentação, à higiene, ao acolhimento emergencial, e, claro, à saúde,
E no que tange a intersetorialidade na execução dos serviços, infelizmente, ainda não temos visto grandes avanços perante a crise. Em uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV) com profissionais da linha de frente das áreas de assistência e saúde, perguntamos aos profissionais em que medida eles estavam realizando ações articuladas com outros setores. Apenas 40% deles afirmaram que fazem algum tipo de articulação - e em geral ela depende das decisões individuais destes profissionais. Ao mesmo tempo, gestores de diferentes serviços da ponta têm nos reportado que são cada vez mais demandados por informações de outros setores. Uma diretora de escola e profissionais de uma Unidade Básica de Saúde nos contaram que recebem dezenas de telefonemas por dia de pais e mães pedindo informações sobre a renda mínima emergencial. Frente ao desespero e à falta de contato com os serviços de assistência, as famílias acabam procurando aqueles profissionais com quem interagem cotidianamente Principalmente em momentos de emergência, estes trabalhadores que estão na linha de frente e suas respectivas áreas deveriam ser capazes de repassar informações de outros serviços para facilitar a vida dos cidadãos mais afetados.
Assim, trazer o debate da intersetorialidade no atual contexto é reforçar a importância das medidas e políticas emergenciais estarem relacionadas entre si. É necessário que sejam desenvolvidos modelos que integrem a gestão governamental e alterem estruturas e práticas institucionais, enfrentando as resistências que surgem com estas mudanças. Ao ter como objetivo comum o enfrentamento à pandemia e aos efeitos por ela gerados, as diferentes áreas devem identificar conjuntamente os resultados esperados, de modo que as intervenções sejam articuladas e pactuadas do alto escalão ao profissional da linha de frente. Algumas propostas concretas, neste sentido, são:
- Investir nos gabinetes emergenciais de crise e ampliar seu escopo de atuação, de modo que nele sejam envolvidas outras áreas além da saúde, incluindo os setores econômico, social, ambiental, de educação, entre outros. A efetividade destes gabinetes depende de terem legitimidade e apoio político; de terem acesso à informação rápida e assertiva e de gerarem soluções concretas para serem implementadas rapidamente.
- Elaborar planos de ação com metas que sejam compartilhadas e compactuadas entre diferentes setores e atividades integradas que incentivem o trabalho articulado e conecte diferentes áreas da administração pública.
- Priorizar a população vulnerável, que sofre o impacto da pandemia de maneira desigual, estabelecendo prioridades no atendimento e levando em conta as especificidades destas pessoas. Deste modo, a intersetorialidade nas ações e nos serviços emergenciais deve ser construída de tal modo que os trabalhadores da linha de frente busquem a equidade na atenção integral.
- Viabilizar e incentivar a articulação intersetorial pelos profissionais da linha de frente, por meio de fluxos de encaminhamentos definidos e repasse de informações sobre os serviços de emergência.
- Criar centrais únicas de informações sobre serviços emergenciais, tanto telefônicas como pela internet, nas quais profissionais da prefeitura ficam concentrados em informar sobre diferentes serviços e fazer encaminhamentos integrados, numa espécie de "hub" de emergência.
O cenário atual coloca em evidência os desafios que a intersetorialidade traz consigo. Superá-los agora significa estabelecer novos arranjos que podem, inclusive, ser continuados nas circunstâncias pós pandemia, servindo como um aprendizado de como diversos setores podem se complementar. E foi justamente dentro do setor da saúde que a intersetorialidade se fortaleceu como conceito há décadas atrás, inserida na discussão de saúde como qualidade de vida. Assim, a integralidade no atendimento promovida pelos trabalhadores da linha de frente precisa ser construída com o consenso de que existem determinantes sociais e que estes ultrapassam a competência de um só setor ou departamento.
Este artigo foi publicado a partir das discussões do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV) coordenado pela professora Gabriela Lotta
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