Resolvi fazer um café. Exausta! Era o fim da maratona de Natal.
Fui encarregada de levar as sobremesas para o almoço em família no dia 25. Fiz charlote de pêssego e banoffee. Na véspera, meu filho resolveu preparar um peru de Natal, seguindo a receita de um autodeclarado redneck — um caipira do Kentucky, nos Estados Unidos.
I fucking hate social media, brinquei, parafraseando a personagem Amanda, do apocalíptico “O Mundo Depois de Nós”, disponível na Netflix.
O filme trata claramente de racismo e indiretamente de desafios da humanidade: os poderes assustadores da internet, o descontrole sobre a inteligência artificial, o caos ecológico. Tudo com suspense e realismo mágico.
Logo no início do filme, a personagem Amanda disse detestar pessoas. Eu detesto essas maluquices de redes sociais.
O redneck do Kentucky publica vídeos com receitas exóticas.
Literalmente, afoga o peru de Natal num contêiner, fazendo uma marinada com litros de água, suco de limão e vinho branco. A ideia é que fique totalmente submerso. Imagine o tamanho da tina de plástico que meu filho arrumou para fazer a magia do Natal redneck acontecer.
Ele desmontou o interior da geladeira para acomodar, no refrigerador, a piscina olímpica de peru. No dia seguinte, quase acabou com a manteiga do supermercado, muita manteiga para untar a ave. Uma zona que parecia não ter fim. Teve. O peru ficou realmente uma delícia, super macio. O redneck triunfou.
Uma ventania fortíssima adiou meu plano de tomar o café sossegada, depois da festança. Eu tinha acabado de limpar o forno e os vestígiosnatalinos do Kentucky. A porta estava aberta, quando uma avalanche de folhas e flores cobriu o chão da cozinha. Tenho o privilégio de morar em casa, num bairro muito arborizado. Este ano, nós, moradores de Brasília, vivemos o encantamento de uma floração antecipada de cambuís. As árvores têm flores pequeninas. Juntas, formam buquês amarelos. A florada foi atípica, em decorrência do calor também fora do normal. 2023 foi o ano mais quente da história, segundo o Copernicus, o Programa da União Europeia de Observação da Terra.
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A ventania foi assustadora. Nunca vi tantas folhas e flores juntas. Peguei a vassoura e enchi um saco de lixo de flores de cambuís. Era um sinal, mas não percebi. O café esfriou. O tempo passou. Fui dormir.
Acordei no escuro. No grupo de WhatsApp, a queixa geral. Mais uma vez, ficamos sem energia. Uma tempestade, na madrugada, nos levou a mais um apagão. Aqui na vizinhança, velas são itens indispensáveis. Falta luz de forma recorrente. Já perdi tv e outros aparelhos. Um vizinho solidário teve a ideia de comprar um estoque grande de lanternas e revender para a comunidade. É a comprovação de que nem sempre privatização de empresa de energia resulta em melhorias para os clientes. Na mensagem automática do robô da Neoenergia, mais uma promessa: “em breve, nossa equipe vai te atender!”
Saí do quarto escuro e pisei numa poça d’água. A casa estava alagada. Quartos, banheiros, sala. O lavabo parecia a tina do peru: cheio de água. Na cozinha, dava para fazer onda com o rodo que eu peguei correndo para me livrar daquele aguaceiro.
A manutenção da casa está sempre em dia, mas a ventania de ontem levou também as flores de cambuí para o segundo andar da casa, onde ficam os quartos. O ralo da área externa ficou entupido, provocando a enxurrada.
Foi uma manhã apocalíptica: sem energia, com a casa inundada. Uma tragédia que começou com flores e folhas. Os pensamentos vão para as ameaças de 2024: os poderes assustadores da internet, o descontrole sobre a inteligência artificial, o caos ecológico.
Tudo com suspense e realismo mágico.