BRASÍLIA – O governo Jair Bolsonaro pressionou auditores, omitiu informações e silenciou calculadamente sobre o escândalo das joias ilegais, para que a tentativa de entrar ilegalmente com os itens milionários no Brasil não viesse à tona em pleno ano eleitoral, comprometendo seu desempenho na urnas e a busca da reeleição.
As joias foram apreendidas no dia 26 de outubro de 2021, um ano antes das eleições. O histórico dos atos e relatos do escândalo que o Estadão tem revelado desde o dia 3 de março mostra que houve, pela cúpula do governo, uma série de medidas para, ao mesmo tempo em que tentava liberar as joias, evitar o vazamento de qualquer informação.
Diversas tentativas de colocar as mãos nas joias seriam levadas a cabo desde o dia que a comitiva do então ministro de Minas e Energia (MME), Bento Albuquerque, desembarcou no aeroporto de Guarulhos com joias avaliadas em R$ 16,5 milhões na bagagem e tentou ingressar com os itens de forma ilegal.
Nas semanas seguintes, Bolsonaro envolveria em suas ações não apenas o MME, mas também o Ministério de Relações Exteriores, militares e o novo comando da Receita Federal, que trocaria em novembro daquele ano. Tudo isso, porém, seria feito do modo mais discreto possível, uma estratégia que envolveu, também, o segundo presente direcionado a Bolsonaro e que acabou por entrar ilegalmente no País. Não por acaso, o estojo, também da marca Chopard, que contém itens como relógio, caneta e abotoadoras em ouro, ficou guardado por mais de um ano no gabinete do MME, sem que se tivesse notícia sobre o assunto, afinal, tratava-se de um item da entrada ilegal dos presentes do regime da Arábia Saudita enviado ao casal Bolsonaro.
Como o próprio Bento Albuquerque admitiu ao Estadão na sexta-feira, 3, quando caso foi revelado, este segundo pacote foi trazido por ele e sua comitiva e entrou irregularmente no País. “Quando nós chegamos em Brasília, nós abrimos o outro pacote, que tinha relógio... é... era uma caixa de relógio, não sei se... tinha mais algumas coisas, e era o... o presente”, disse o ministro.
Os cuidados para controlar as informações envolveram, até mesmo, comunicados ao governo saudita. Em 22 de novembro de 2021, quase um mês depois de ter as joias apreendidas pela Alfândega de Guarulhos, Bento Albuquerque trataria de omitir do regime saudita a informação de que a joia milionária enviada para Michelle Bolsonaro tinha sido retida pelos auditores da Receita Federal.
Numa carta endereçada ao príncipe árabe Abdulaziz bin Salman Al Saud, ministro de Minas e Energia daquele País, Albuquerque agradeceu à recepção que ele e sua comitiva tiveram naquela semana de outubro de 2021 e informou, ao fim deste documento, que os presentes tinham sido incorporados à “coleção oficial brasileira”, conforme determina “a legislação nacional e o código de conduta da administração pública”. Nada foi dito sobre a apreensão.
Como revelou o Estadão, o presente que passou irregularmente pela alfândega só seria entregue no Palácio da Alvorada, a residência oficial dos presidentes da República, no dia 29 de novembro de 2022, ou seja, mais de um ano depois. O recibo indicando que Bolsonaro recebeu as joias de diamantes em mãos foi assinado pelo funcionário Rodrigo Carlos do Santos. O papel da Documentação Histórica do Palácio do Planalto traz um item no qual questiona se o presente foi visualizado por Bolsonaro. A resposta: “sim”.
Enquanto isso, o conjunto destinado a Michelle Bolsonaro seguiu trancafiado nos cofres da alfândega, em Guarulhos. Durante um ano, auditores da Receita Federal que tiveram alguma informação sobre os diamantes destinados à então primeira-dama sofreram pressões da chefia feita por Julio Cesar Gomes, levado ao cargo pela proximidade que tinha com a família Bolsonaro, e tinham receio de acessar os sistemas ligados ao assunto ou mesmo de falar sobre o tema, dado o controle ostensivo para que o escândalo não fosse descoberto.
Fora as investidas extraoficiais sobre o tema, o que mais chamava a atenção dos auditores da Receita era o “esquecimento” das joias no trâmite burocrático, para que fossem destinadas ao acervo público da Presidência da República. Como as tentativas arrefeceram, no dia 23 de fevereiro do ano passado, a Receita Federal emitiu um auto de infração e declarou a “pena de perdimento aos bens por abandono”. O órgão abriu ainda um prazo para que o governo recorresse, mas devido à falta de manifestação, o “abandono” foi sacramentado em 25 de julho de 2022. Faltavam menos de três meses para as eleições.
Dentro da Receita, a estratégia foi considerada claramente protelatória devido ao período eleitoral, já que a urgência sobre o caso só seria retomada após a derrota de Bolsonaro nas urnas. Por isso, ficou para novembro de 2022 a entrega do presente destinado a Bolsonaro e que estava guardado no MME. O envio já seria feito por determinação do novo ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, porque Bento Albuquerque havia deixado o posto em maio.
Derrotado nas urnas, Bolsonaro volta a fazer investidas para retirar as joias apreendidas em Guarulhos. Essas ações envolveram diretamente o comando da Receita Federal e o seu próprio gabinete pessoal da Presidência da República, quando o então presidente ordenou que um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) seguisse de Brasília até São Paulo e, na alfândega de Guarulhos, tente retirar as joias. Faltava apenas dois dias para acabar o seu mandato.
Como revelou o Estadão, o secretário da Receita Federal, Julio Cesar Viera Gomes, tentou exercer pressão sobre o auditor que estava no aeroporto naquele momento, o servidor Marco Antônio Lopes Santanna. Júlio Cesar telefonou para o enviado de Bolsonaro, o sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva, e pediu para falar com o auditor, que, por sua vez, se recusou a conversar pelo telefone e disse que não poderia liberar as joias sem o pagamento do imposto devido ou a declaração dos itens como patrimônio da União. Era a última cartada dada por Bolsonaro, que acabaria por sair do Brasil sem conseguir as joias.
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