BRASÍLIA – O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liberou R$ 728,7 milhões em emendas de comissão, herdeiras do orçamento secreto, em apenas três dias. O Poder Executivo efetuou as liberações antes da decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), que, nesta segunda-feira, 23, determinou o bloqueio dos repasses por falta de transparência.
O dinheiro atende indicações de um grupo de 17 líderes partidários da Câmara, comandados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que apadrinharam um total de R$ 4,2 bilhões em emendas. O ofício das lideranças foi revelado pela revista Piauí e confirmado pelo Estadão. Novos documentos aos quais o Estadão teve acesso mostram que o dinheiro começou a ser liberado, com respaldo formal do Palácio do Planalto.
Os líderes apadrinharam todas as emendas de forma conjunta, sem mostrar individualmente o nome dos parlamentares atendidos. O Estado de Alagoas, reduto de Lira, é o maior beneficiado, com R$ 73,7 milhões em novas indicações. De acordo com especialistas e ONGs que acompanham o processo no STF, as indicações ferem a decisão da Suprema Corte.
A Secretaria de Relações Institucionais, responsável pela articulação política do governo e pela coordenação das emendas parlamentares, afirmou que todo o processo de execução orçamentária está amparado na portaria interministerial do governo e no parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que orientaram as regras para a liberação dos recursos.
Além disso, a pasta declarou que a responsabilidade pelo cumprimento dessas determinações é dos ministérios que liberaram o dinheiro. A SRI também disse que o que não estiver em conformidade com a decisão do STF está sujeito a ação de órgãos controle internos, como a Controladoria-Geral da União (CGU).
Os empenhos, que autorizam o andamento de obras, projetos e o pagamento futuro para Estados e municípios, ocorreram de quarta-feira, 18, a sexta-feira, 20, enquanto o Congresso votava o pacote fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), conforme documentos do Portal da Transparência e do Siga Brasil. Só houve os votos necessários na Câmara e no Senado quando o governo prometeu pagar emendas para os parlamentares, incluindo que foram liberadas nesses três dias.
O orçamento secreto, revelado pelo Estadão, foi um esquema executado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que paga emendas parlamentares sem transparência. O nome dos verdadeiros congressistas responsáveis pelas indicações ficava escondido. O mecanismos bancou a compra de tratores e asfalto superfaturados e mais uma série de obras sob suspeita, resultado em investigações e prisões pela Polícia Federal.
As emendas de comissão são recursos indicados por comissões do Congresso Nacional para determinadas áreas do Poder Executivo, como saúde e educação. Com o fim do orçamento secreto, o Congresso usou essas novas emendas para abrigar parte do esquema. Todos os recursos foram suspensos pelo STF em agosto devido a essa e outras irregularidades. No início de dezembro, o ministro Flávio Dino, relator dos processos, destravou os pagamentos, mas sob novas regras, incluindo a transparência.
Do total liberado pelo governo nesses três dias, R$ 311,3 milhões foram por meio de notas de empenho que citam nominalmente os líderes da Câmara que assinaram o ofício. Outros R$ R$ 353 milhões fazem menção ao mesmo ofício, mas trazem apenas os códigos de quatro dígitos que identificam cada um desses líderes no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi). Há ainda notas de empenho sem menção a qualquer congressista.
A maior emenda é do Ministério das Cidades para João Pessoa, capital da Paraíba, no valor de R$ 47,9 milhões. No Portal da Transparência, o governo citou o ofício e o nome de todos os líderes como autores da indicação. Em seguida, aparece uma verba do Ministério da Saúde, de R$ 18 milhões, para o Estado do Maranhão, com os líderes identificados apenas por códigos, sem os nomes.
No conjunto, o Ministério da Saúde é o maior responsável pelos repasses (R$ 369,4 milhões), seguido do Ministério das Cidades (R$ 184 milhões).
Após o STF liberar os pagamentos, o governo editou uma portaria para organizar a distribuição do dinheiro, amparado por um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU). O Palácio do Planalto usou uma brecha na última decisão de Dino que autoriza o apadrinhamento tanto de parlamentares individualmente quanto de líderes partidários para as emendas de comissão. O entendimento, porém, contraria as decisões do STF no processo, que exigiu a divulgação dos verdadeiros beneficiados, afirmando que os líderes não podem deter o “monopólio” das indicações.
Além disso, o STF exigiu que as indicações das emendas, na hora de escolher qual município receberá a obra e qual projeto será contemplado, sejam discutidas e aprovadas em conjunto por cada comissão do Congresso, o que não aconteceu. No dia 12, antes de mandar a lista para o governo, Lira suspendeu o funcionamento das comissões da Câmara, impedindo que elas se reunissem para deliberar sobre os recursos. O presidente da Casa alegou que era necessário dar prioridade para o plenário da Câmara, que iria votar o pacote fiscal do governo e outros projetos.
Nesta segunda-feira, 23, o ministro Flávio Dino deu nova decisão para suspender o pagamento das emendas. No despacho, o ministro diz que a “indicação coletiva” por meio do ofício contraria as decisões do STF sobre o tema até o momento. O ministro também reitera a necessidade de que os padrinhos das emendas de bancada sejam identificados nominalmente.
“Em uma primeira análise, está configurado um quadro que não se amolda plenamente a decisões do Plenário do STF, seguidamente proferidas desde 2022″, escreveu Dino. “Constato possível perpetuação da ocultação do(s) parlamentar(es) “solicitante(s)” de “emendas de comissão” (RP 8), por meio do “apadrinhamento” das emendas por líderes partidários subscritores de ofício enviado ao Poder Executivo (Ofício nº 1.4335.458/2024)”, escreveu ele.
Planalto deu suporte jurídico a manobra de Lira e líderes da Câmara para liberar emendas
A assessoria jurídica do Planalto, subordinada à Casa Civil, assinou um parecer, ao qual o Estadão teve acesso, no dia 17 afirmando que o ofício dos líderes da Câmara não descumpriram a decisão do STF, dando aval para a manobra de Lira. O documento é assinado pelo secretário especial para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, Marcos Rogério de Souza, pela secretária especial adjunta do órgão, Maria Rosa Guimarães Loula, e pelo secretário adjunto Fabiano de Figueiredo de Araujo.
Segundo os técnicos do governo, “não se pode presumir que os parlamentares signatários não sejam os efetivos solicitantes das emendas RP8″. O parecer também afirma que não há manifestação do STF dizendo que “parlamentares, em conjunto, não possam ser solicitantes de RP8, mesmo que de grande rol de emendas.” Os 17 líderes da Câmara assumiram em conjunto, sem individualização, um total de 5. 449 emendas no valor de R$ 4,2 bilhões, escondendo quem foi atendido com cada uma, e o Planalto diz não ver problema nisso.
A Controladoria-Geral da União alterou o Portal da Transparência do governo federal para cumprir as exigências do Supremo, mas o governo não colocou os documentos necessários ao liberar as emendas. Os R$ 679 milhões liberados nos últimos dois dias são só o começo. No total, há R$ 4,7 bilhões em emendas de comissão deste ano que ainda não foram liberados. O Congresso cobra o pagamento e o governo se comprometeu com os repasses ao votar o pacote de corte de gastos.
Ministérios: empenhos seguiram parecer da AGU e portaria do governo
Ao Estadão, os ministérios das Cidades e do Turismo disseram que realizaram os empenhos tendo por base a portaria publicada pelo governo para disciplinar o pagamento das emendas, e o parecer da AGU sobre o mesmo assunto.
Em nota, o Ministério do Turismo disse que “os empenhos foram embasados no parecer de força executória da Advocacia-Geral da União, bem como no parecer da Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos, configurando atendido o preenchimento formal dos requisitos”.
Além da portaria e do parecer da AGU, o Ministério das Cidades disse que os empenhos também foram aprovados numa nota técnica da consultoria jurídica do ministério. “Todos os empenhos afetos às Emendas de Comissão realizados por este órgão no período de 16 a 20 de dezembro de 2024 foram identificados na plataforma Transferegov, seja pelas autorias individuais ou pelas autorias dos líderes partidários”, disse o Ministério das Cidades.
O ministério disse ainda que só realizou os empenhos das emendas que já tinham sido enviadas, antes, pelas comissões permanentes. Ou seja: só foi feito o empenho quando a indicação do ofício dos líderes correspondia a um ofício anterior, já enviado pelos presidentes das comissões da Câmara ou do Senado.
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