Governo criou ‘filiais’ do Ministério da Cultura e as deu a petistas para ‘defesa da democracia’

Escritórios regionais em 26 Estados contam com mais de 80 cargos comissionados, integram estrutura que era promessa de campanha de Lula e influenciam o que o presidente chamou de ‘meus comitês de cultura’; em nota, a pasta diz que seleciona servidores por ‘análise da experiência dos profissionais no setor cultural’ e que filiação partidária ‘não é requisito’

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Foto do author Vinícius Valfré
Atualização:

BRASÍLIA – O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mantém uma estrutura de “filiais” do Ministério da Cultura e entregou os cargos a pessoas filiadas a partidos políticos, especialmente militantes do PT. Os chamados escritórios estaduais da pasta estão em 26 unidades da Federação, onde estão lotados 80 servidores nomeados pela gestão petista.

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Os escritórios, criados no início do ano passado, têm por atribuição influenciar a escolha das Organizações Não Governamentais (ONGs) que formam os comitês de cultura dos Estados. Esses comitês fazem parte de uma política nacional que, em dois anos, vai repassar R$ 58,8 milhões para difusão cultural.

Em nota, a pasta afirmou que os comissionados são escolhidos a partir da experiência no setor cultural e que a filiação a partido não é requisito. Mas acrescentou que o governo “é composto por ampla base partidária e atua na perspectiva do estabelecimento de coalizão para o aperfeiçoamento da democracia” (leia mais abaixo).

Como mostrou o Estadão, entre as ONGs escolhidas para receber dinheiro público estão entidades ligadas a petistas e a servidores do próprio Ministério da Cultura. Também foi selecionada a organização de um empresário acusado de desviar dinheiro da cultura e outra controlada por um candidato a vereador que usou o mesmo espaço para atividades do comitê e da campanha eleitoral.

Levantamento do Estadão detectou que, dos 26 escritórios estaduais, 19 são coordenados por membros do PT, um por filiado ao PSB e outro por integrante do PSOL. Os outros cinco não têm filiação formal, mas são ligados a políticos. Além dos respectivos coordenadores, os escritórios somam mais 60 comissionados, segundo dados disponíveis no site do ministério.

O chefe do escritório da Bahia, por exemplo, não aparece na lista de filiados ao PT, mas trabalhava há três mandatos no gabinete do deputado federal Jorge Solla (PT-BA) até ser nomeado, em setembro passado, na Cultura. Procurado, o parlamentar não foi localizado para comentar.

A chefe do escritório do ministério no Paraná, Loana Campos, não é filiada ao PT, mas ligada ao principal articulador do comitê no Estado. Ao menos desde 2020, ela fazia parte da ONG Soylocoporti, de João Paulo Mehl (PT), que hoje coordena o comitê de Cultura do Paraná. Ela foi nomeada em 19 de outubro de 2023. Dois meses depois, a Soylocoporti assinou o convênio com o ministério para liderar o comitê paranaense.

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Em publicações nas redes sociais, João Paulo Mehl demonstra proximidade de longa data com Loana, a quem define como “amiga e parceira de muitas jornadas”.

Ao Estadão, Loana disse ter 15 anos de experiências em políticas culturais, da área de produção até gestão, controle e participação social. É especialista em gestão de projetos públicos e bacharel em Dança. Também destacou ser uma artista e professora reconhecida por seus pares.

A coordenadora da filial do ministério no Paraná afirmou que a escolha da Soylocoporti para o comitê foi feito pela pasta “através de rigoroso processo de seleção de propostas por edital” e que “a vinculação partidária de pessoas não foi avaliada como critério do edital”.

“Prestei serviços para diversas instituições da área cultural e social, inclusive a Soylocoporti, da qual não faço parte do corpo gestor”, afirmou Loana.

João Paulo Mehl era pré-candidato a vereador de Curitiba pelo PT, em junho, quando recebeu a ministra Margareth Menezes para o lançamento do comitê do Paraná. Um mês depois, teve a candidatura homologada para sua estreia nas urnas. Apoiado pela presidente nacional do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), ele não foi eleito.

Ele afirmou que “não há nenhuma relação” entre o trabalho do escritório e a seleção da Soylocoporti e que a capacidade técnica acumulada ao longo de 20 anos pela entidade fez ela obter a maior pontuação no edital entre todas as concorrentes da região Sul. “Muitos profissionais foram nossos parceiros nessa trajetória — todos com capacidade e reconhecido histórico de trabalho na área. A Loana Campos é mais uma entre esses profissionais, que há muito tempo vem construindo uma respeitada carreira”, disse.

A ministra Margareth Menezes, da Cultura, em junho deste ano, durante evento de lançamento do comitê de cultura do Paraná e do Laboratório de Culturas Digitais, em Curitiba Foto: Filipe Araújo / Ministério da Cultura

No Amazonas, a ONG contratada para coordenar o comitê de cultura tinha como um dos diretores Ruan Octávio da Silva Rodrigues, integrante das fileiras do PT desde 2012. Cinco meses depois de o Instituto de Articulação de Juventude da Amazônia (Iaja) celebrar o convênio com o ministério, ele foi nomeado coordenador do escritório da pasta em Manaus.

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Na campanha eleitoral deste ano, Ruan atuou pela eleição de Anne Moura, secretária nacional de Mulheres do PT, a vereadora de Manaus. Ele virou coordenador regional do ministério em substituição a Michelle Andrews, que deixou o posto para concorrer a uma vaga na Câmara da capital do Amazonas pelo PCdoB. Nenhuma delas conseguiu votos suficientes. O coordenador não retornou os contatos da reportagem.

Comitês foram promessa de campanha de Lula

Os comitês de cultura são um compromisso pessoal de Lula, firmado ainda na campanha eleitoral de 2022. Enquanto buscava votos, Lula dizia que sua ideia com eles era “democratizar o acesso à cultura e a participação social”.

Em março deste ano, ele falou sobre a proposta durante a abertura da 4ª Conferência Nacional de Cultura, em Brasília. Em discurso marcado por críticas ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Lula disse que cobrava Margareth Menezes reiteradamente sobre os comitês porque eles serviriam para “enraizar o que a gente acredita”.

“Me explique como estão os meus comitês culturais, eu quero saber, porque a única possibilidade de a gente evitar que um dia volte alguém para destruir é enraizar aquilo que a gente acredita no meio do povo, no seio do povo, nas entranhas da sociedade”, disse o presidente (clique no vídeo abaixo para assistir).

Em uma notícia institucional publicada no site do Ministério da Cultura em abril, a coordenadora do escritório da pasta no Rio Grande do Sul, filiada ao PT desde 2008, explicou a missão das “filiais”.

“A missão dos escritórios é estratégica na luta pela defesa da democracia e pelo direito à cultura. Se em 2023 estávamos na ‘união e reconstrução’ do Ministério da Cultura, avançamos para um 2024 já com as políticas públicas enraizadas na grande maioria dos municípios dos Estados da região Sul”, afirmou.

Os escritórios e os comitês acabam tendo finalidades correlatas. Nas palavras do próprio Lula e de chefes de escritórios, a estrutura tem por objetivo “enraizar o que a gente acredita” e a “luta pela defesa da democracia”.

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Tanto os comitês quanto os escritórios regionais são ligados à Secretaria de Comitês de Cultura do ministério. A estrutura nasceu junto com a recriação da pasta, que havia sido rebaixada ao status de secretaria no governo de Jair Bolsonaro. A titular da secretaria é Roberta Martins.

As atribuições dos escritórios regionais do ministério estão definidas num decreto de janeiro de 2023. Entre elas estão “selecionar, a partir das diretrizes e orientações da Secretaria dos Comitês de Cultura, representantes da sociedade civil para compor o comitê cultural do Estado”, “agendar e secretariar as reuniões do comitê e providenciar a participação de seus membros” e “atuar como representante estadual do ministério no Estado”.

Em respostas enviadas ao Estadão, o a pasta de Margareth Menezes afirmou que os coordenadores dos escritórios são escolhidos pela experiência dos servidores.

“O Ministério da Cultura seleciona seus servidores comissionados através da análise da experiência dos profissionais no setor cultural, não analisando a filiação partidária como requisito. De toda forma, o atual governo é composto por ampla base partidária e atua na perspectiva do estabelecimento de coalizão para o aperfeiçoamento da democracia”, frisou.

O ministério também declarou que a escolha das Organizações da Sociedade Civil (OSCs) — também chamadas de ONGs, conforme conceito do Sebrae — para coordenar o Programa Nacional de Comitês de Cultura nos Estados “obedeceu a critérios de análise da qualidade técnica de propostas de trabalho, experiências das organizações e de suas equipes técnicas”. “Nesse sentido,a seleção das OSCs não foi uma decisão dos coordenadores dos escritórios do MinC”, disse a pasta.

Sobre a afirmação de uma coordenadora de que os escritórios têm missão de defesa da democracia, o ministério afirmou que isso se dá por meio de políticas que promovem “a cooperação federativa, o fortalecimento dos entes federados para o desempenho de suas competências, a ampliação da participação e controle social”, “de forma descentralizada” nos Estados.

Congressistas querem investigação sobre papel dos comitês

Após reportagem publicada pelo Estadão mostrar que o ministério selecionou ONGs ligadas a petistas e a assessores da própria pasta, integrantes da oposição ao governo no Congresso pediram oficialmente que o caso seja investigado por órgãos de controle.

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O senador Rogério Marinho (PL-RN) e o deputado Luciano Zucco (PL-RS) enviaram ofício ao Tribunal de Contas da União (TCU) com pedido de abertura de uma apuração.

“Tal denúncia suscita a necessidade de verificação criteriosa quanto ao cumprimento dos princípios da moralidade, legalidade, impessoalidade e eficiência no uso dos recursos públicos, conforme o artigo 37 da Constituição Federal”, disse o deputado.

O senador defendeu a realização de uma investigação porque as informações publicadas mostram “instrumentalização da máquina pública para tutelar interesses privados e partidários com ONGs alinhadas ao governo”.

Os deputados Evair Vieira de Melo (PP-ES) e Kim Kataguiri (União-SP) protocolaram requerimentos de convocação da ministra Margareth Menezes para que ela faça esclarecimentos à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara.

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