Governo deixou para definir destino de verba da Saúde no fim do ano e gerou descontrole no orçamento

Especialistas apontam problemas de gestão, falta de critérios técnicos e descontrole na execução orçamentária da pasta; órgão diz que foi surpreendido por novos recursos que ‘criaram desafios para o planejamento e para a gestão orçamentária e financeira’

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Atualização:

BRASÍLIA - Sob a gestão de Nísia Trindade, o Ministério da Saúde deixou para definir na última semana de 2023 o destino de R$ 4,07 bilhões de reais para Estados e municípios. O montante é 1.327% maior do que o destinado no mesmo período de 2022, quando as portarias da última semana definiram o destino de R$ 282,7 milhões.

Deixar o recurso para ser decidido no fim do ano compromete a boa aplicação da verba para postos de saúde, hospitais e procedimentos como cirurgias e exames, de acordo com especialistas ouvidos pelo Estadão. Procurado, o Ministério da Saúde disse que monitora a execução financeira constantemente, mas que teve dificuldades em 2023 com novos recursos que chegaram no fim do ano.

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, deixou para definir destino de R$ 4 bilhões do orçamento de 2023 na última semana do ano Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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Como revelado pelo Estadão, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) distribuiu R$ 8 bilhões da Saúde em troca de apoio político. O repasse superou em mais de 1.000% a capacidade de atendimento em alguns municípios. Os dados mostram que houve uma correria no fim do ano para negociar e definir para onde seria enviado o dinheiro.

Só nos últimos três dias de 2023, foram publicadas 76 portarias, com R$ 1,1 bilhão em repasses. O dinheiro começou a ser efetivamente enviado aos municípios e Estados no começo deste ano.

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Ao publicar as portarias, o ministério classificou os recursos como emergenciais – sem esclarecer que emergência ocorreu, embora tenha sido questionado pela reportagem mais de uma vez sobre qual situação se fundamentava – e ultrapassou o limite de transferências para a realização de exames e cirurgias nas localidades beneficiadas. O Tribunal de Contas da União (TCU) foi acionado para investigar o caso.

“O Ministério da Saúde replica o pecado original da ineficiência das emendas parlamentares. Qual foi a urgência dos recursos emergenciais? Por que esse município recebeu e não o outro? Sem transparência ou qualquer justificativa técnica, o Poder Executivo está sendo tão ineficiente quanto os parlamentares que direcionam emendas de forma desconexa ao planejamento”, diz Caio Gama Mascarenhas, procurador do Estado de Mato Grosso do Sul e pesquisador em direito financeiro pela Universidade de São Paulo (USP).

A destinação de recursos no apagar das luzes do final do ano fez com que os pagamentos efetivos ficassem para 2024. O ministério começou este ano com um estoque de R$ 32,4 bilhões em despesas comprometidas em anos anteriores e ainda não pagas. O dinheiro acabou inscrito nos chamados “restos a pagar” (RAP). É o que acontece quando os recursos são reservados (empenhados, no jargão técnico), mas a compra ou o serviço não é feita a tempo.

O valor supera o orçamento total de 20 ministérios para o ano de 2024. É também 17,7% maior que o estoque do começo de 2023, herdado do governo de Jair Bolsonaro, segundo informações da Secretaria do Tesouro Nacional. É dinheiro que não foi transformado em entregas, numa área considerada crítica pelo governo. No dia 08 de dezembro, por exemplo, o Ministério da Saúde ainda precisava empenhar R$ 13 bilhões para cumprir o piso constitucional da Saúde, segundo disse a própria pasta.

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“A correria pelo empenho no final do ano virou padrão no Brasil, isso é o antiplanejamento. Quando chega nesse ponto, os repasses não são feitos exatamente pela prioridade sanitária, mas fica para a prioridade política”, afirma Lígia Bahia, médica especialista em saúde pública e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O custeio dos serviços de saúde não deveria estar submetido à indicação política porque é uma despesa fixa. Emenda e indicação política deveriam ir para investimentos (obras).”

O valor deixado em restos a pagar é 54 vezes maior que o orçamento de R$ 600 milhões do Programa Nacional de Redução de Filas (PNRF). Criado pelo Ministério da Saúde em 2023, a iniciativa veio para acelerar o ritmo da realização de cirurgias eletivas, exames e consultas médicas com especialistas, desafogando a fila de espera por esses procedimentos no SUS.

Ao longo de 2023, o comando da pasta foi alertado várias vezes sobre o baixo ritmo da execução orçamentária do ministério, e sobre como esta lentidão poderia comprometer a capacidade de entregar resultados. Informações a respeito foram publicadas no Relatório Resumido da Execução Orçamentária (RREO), editado pela Secretaria do Tesouro Nacional. A baixa execução no Ministério da Saúde é inclusive um dos motivos para o governo avaliar rever os pisos (investimentos mínimos) nas áreas de Saúde e Educação, apurou o Estadão.

Durante a pandemia de covid-19, o Ministério da Saúde fez repasses emergenciais para Estados e municípios, também ultrapassando limites orçamentários. Neste ano, com a crise da dengue, o órgão também repassa recursos de forma emergencial para que as prefeituras e governos estaduais combatam o problema. Em 2023, porém, não havia uma emergência decretada e mesmo assim o ministério classificou os recursos como emergenciais para ultrapassar os limites em cada localidade.

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“Se o órgão segura o dinheiro, contém o gasto e deixa para fazer a liberação no final do ano, no momento seguinte acontecem agravos para a população na saúde pública. A dengue, neste ano, é um caso típico. Se você não faz a prevenção, os desembolsos e uma programação para atacar o problema durante o ano, não adianta correr para liberar tudo em dezembro”, diz Adilson Soares, professor da Pós-Graduação em Ciências da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

No fim do ano, em outubro, a pasta recebeu mais R$ 4 bilhões destinados pelo Congresso, por meio da Lei Complementar 201 de 2023. O resultado foi um gargalo nos repasses aos Estados e aos municípios, que resultou na publicação de dezenas de portarias no fim do ano passado. Parte desse montante, cerca de R$ 1,4 bilhão, também teve seu destino definido na última semana do ano. Em nota, o Ministério disse que os novos recursos geraram “desafios para o planejamento e para a gestão orçamentária e financeira quanto ao cumprimento do preceito constitucional”.

Repasses de dinheiro do Ministério da Saúde para Estados e municípios precisam estar descritos em portarias publicadas no Diário Oficial da União (DOU). Na última semana de 2023, o Ministério publicou 177 portarias, com repasses para 2.334 municípios brasileiros, além dos 26 Estados e do Distrito Federal.

As cidades que mais receberam nesse período foram Manaus (AM), com R$ 61,9 milhões; Magé (RJ), com R$ 49,8 milhões; e Recife (PE), com repasses de R$ 43,8 milhões. O Estado mais beneficiado foi o Maranhão, com R$ 90,1 milhões. É R$ 30 milhões a mais que o Estado mais populoso do Brasil, São Paulo (que recebeu R$ 61,8 milhões no período).

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“A interferência política aumentou muito nos últimos anos e isso dificulta a gestão do Sistema Único de Saúde. Os repasses precisam respeitar diferenças regionais, a incidência de determinadas doenças e a questão social”, afirma Jean Peres, pesquisador do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Ministério da Saúde diz que empenhou 99,7% do Orçamento

Em nota, o Ministério da Saúde destacou que empenhou R$ 194,2 bilhões em 2023, valor que corresponde a 99,7% do orçamento da pasta para aquele ano. O empenho é uma das etapas do gasto público. Significa apenas que o dinheiro foi reservado para certa finalidade, mas não pago.

A pasta disse ainda que acompanha de forma ininterrupta a execução orçamentária e que a aplicação do dinheiro precisa seguir “trâmites e procedimentos, inclusive para a garantia da regularidade na aplicação dos recursos, em todas suas fases”. Além disso, em outubro de 2023, o Congresso destinou mais R$ 4 bilhões para a saúde com a aprovação da Lei Complementar 201, disse o ministério.

Os novos recursos “criaram desafios para o planejamento e para a gestão orçamentária e financeira quanto ao cumprimento do preceito constitucional”, disse a pasta. “Assim, o principal motivo para o crescimento do RAP em 2023 se deve ao crescimento dos recursos com base no novo arcabouço fiscal e pelo aporte recebido pela Pasta ao final do exercício”, afirmou o ministério, em nota.

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