Governo Lula e Congresso adotam prática contábil do orçamento secreto para inflar emendas

Corte em despesas do Poder Executivo e uso de reserva emergencial abrem espaço para indicações políticas; Planalto diz que cumpre decisão do STF, mas não comenta manobras

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BRASÍLIA - O governo Lula e o Congresso Nacional adotaram a mesma prática contábil usada no orçamento secreto para inflar emendas parlamentares que herdaram o espólio do esquema declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Os gastos com a manutenção de órgãos federais e investimentos foram cortados, despesas obrigatórias foram subestimadas e uma reserva de contingência destinada apenas para despesas imprevisíveis foi usada para custear as indicações políticas feitas no Orçamento da União sem planejamento e transparência.

A Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República diz que cumpriu a decisão do Supremo sobre o fim do orçamento secreto e promete transparência sobre os recursos, mas não comentou as práticas citadas pela reportagem. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal não se posicionaram sobre as manobras.

O presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante cerimônia de posse do procurador-geral da República, Paulo Gonet, em dezembro de 2023. No fundo, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira.  Foto: Wilton Junior/Estadão

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As práticas foram condenadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) ao analisar as contas do governo federal de 2021 e o orçamento secreto daquele ano. As manobras também foram classificadas como inconstitucionais pelo STF no julgamento que derrubou o esquema, pois tiram a capacidade de planejamento do governo federal, comprometem o funcionamento da máquina pública e causam uma desordem na distribuição dos recursos entre Estados e municípios, além da falta de transparência. Enquanto uns recebem muito, outros não recebem nada.

Na semana passada, o ministro Flávio Dino, do STF, determinou uma varredura no orçamento secreto e nas emendas Pix e impôs uma nova dinâmica para todos os tipos de emenda. O governo federal não poderá mais liberar nada sem a devida transparência sobre os parlamentares beneficiados e para onde vai o dinheiro. Parlamentares, por sua vez, não poderão indicar recursos para fora de seus Estados. E municípios, no caso da emenda Pix, só irão receber o valor após falarem onde vão gastar o dinheiro, coisa que hoje não acontece.

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Levantamento do Estadão, realizado com dados do Painel do Orçamento, sistema do governo federal, e do Siga Brasil, mantido pelo Senado, mostra que o governo e o Congresso cortaram R$ 30 bilhões em despesas de manutenção dos órgãos públicos, serviços e investimentos federais entre a apresentação do projeto de Lei Orçamentária Anual de 2024 e a última segunda-feira, 5. Os cortes ocorreram na tramitação da proposta no Congresso, foram feitos também durante o ano e culminaram no congelamento de gastos decretado pelo presidente Lula na semana passada.

Desconsiderando o congelamento, que em tese pode ser revertido e ainda não têm uma composição final detalhada por parte dos ministérios, o corte foi de R$ 16,5 bilhões nas despesas do Poder Executivo. As emendas, por sua vez, aumentaram em R$ 15,3 bilhões entre uma fase e outra. O remanejamento mostra uma engenharia orçamentária para fazer caber os valores indicados pelos deputados e senadores para suas bases eleitorais no Orçamento às custas de despesas que poderiam ser controladas e planejadas pelo Executivo.

“Este cenário evidencia como a dimensão que alcançaram as emendas parlamentares atualmente prejudica o processo de planejamento e execução do orçamento público”, diz o gerente de Pesquisa da Transparência Internacional no Brasil, Guilherme France. “Cria-se uma enorme insegurança jurídica que, no médio e longo prazo, afeta até mesmo a confiança nos dados fornecidos pelo governo sobre seus gastos. Isso fragiliza a credibilidade do Brasil até mesmo perante credores e investidores internacionais.”

De todo o corte de R$ 30 bilhões, 18,9 bilhões foram retirados diretamente de despesas de manutenção da máquina pública. Os cortes atingiram gastos administrativos dos ministérios da Fazenda, da Igualdade Racial, da Defesa, da Previdência Social, dos Povos Indígenas e de órgãos como o IBGE, a Empresa de Pesquisa Energética e a Empresa Brasileiros de Serviços Hospitalares. A redução também afetou programas como Farmácia Popular, educação básica e ensino em tempo integral.

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Na prática, os órgãos públicos ficam sem orçamento suficiente para custear atividades e podem ter de se endividar para pagar despesas básicas como conta de luz, o que é condenado pela Constituição e pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O restante do corte nas despesas do Poder Executivo recaiu sobre o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), vitrine do governo Lula, que inclui obras em rodovias, escolas e unidades de saúde.

Congresso aumentou emendas após fim do orçamento secreto, com aval do governo

As despesas de custeio e investimento do Poder Executivo caíram de R$ 253 bilhões em 2019 para R$ 179 bilhões neste ano, em valores atualizados pela inflação. As emendas, por sua vez, dispararam de R$ 18,7 bilhões para R$ 50,3 bilhões no mesmo período. Os números mostram que o fim do orçamento secreto, em dezembro de 2022, não representou diminuição das emendas, mas o contrário, pois outras cresceram no lugar, como as emendas de comissão, que tinham R$ 480 milhões quando o STF derrubou o orçamento secreto e neste ano têm R$ 15,9 bilhões.

A análise foi feita com base no mesmo método utilizado pelo TCU ao avaliar as contas do governo. Em acórdão publicado em março de 2024, o TCU revisitou o tema e apontou que, em 2021, as despesas dos ministérios foram cortadas para dar espaço ao orçamento secreto, contra a necessidade de atendimento de projetos em andamento e o atendimento das despesas de funcionamento dos órgãos e entidades, contrariando a legislação. Agora, a mesma prática é observada no aumento de outros tipos de emendas, como as emendas de comissão e as emendas Pix, que herdaram o esquema.

“Nos últimos anos, o crescimento exponencial dos valores das emendas parlamentares - com parte delas passando a ter execução obrigatória - comprimiu, na mesma proporção, os recursos discricionários alocados pelo Executivo”, afirma o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco. “Os recursos públicos não podem ser distribuídos politicamente com base em interesses pessoais e partidários, privilegiando uns em detrimento de outros, sem critérios técnicos e parâmetros sócio econômicos, em um claro desvio do princípio federativo.”

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Emendas impactam em gastos obrigatórios e reserva de emergência

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A análise do Orçamento de 2024 mostra também que os gastos obrigatórios, como pagamento de salários, aposentadorias, pensões e benefícios assistenciais, foram menosprezados na hora de colocar as emendas parlamentares. O Congresso cortou R$ 5,3 bilhões dos benefícios previdenciários, que formam a maior pressão sobre as contas públicas, na tramitação do projeto de lei orçamentária, enquanto esses recursos necessitavam de aumento no Orçamento.

O governo precisou complementar R$ 27,7 bilhões em despesas obrigatórias neste ano, sendo R$ 13 bilhões em benefícios da Previdência Social. O aumento levou o governo a congelar R$ 15 bilhões em despesas do governo federal e emendas, o que reforça que os recursos alocados na peça orçamentária não eram suficientes.

Além disso, já no envio do projeto da lei orçamentária para o Congresso Nacional, o governo usou uma reserva de contingência, destinada apenas a despesas imprevisíveis e para suportar descontroles imprevistos nas finanças públicas, para que o Congresso Nacional destinasse livremente R$ 37,7 bilhões em emendas.

O uso da reserva foi incluído na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovada pelo Congresso e sancionada por Lula, mas contraria a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de acordo com o TCU. A reserva é usada para emendas desde 2018, mas o valor neste ano é recorde e, de acordo com a Corte de Contas, “desvirtua” o que manda a LRF.

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“Na prática, é isto que se está fazendo: tirar o poder do Executivo de pensar, planejar e destinar uma parte do Orçamento para as políticas que considera relevantes e dar para o Congresso fazer o que bem entender”, afirma a diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji. “Temos visto que essa alocação de recursos não é exatamente conectada com indicadores de políticas públicas que estão ou não funcionando, ou com projetos estruturantes.”

A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) afirmou que o governo tem cumprido a decisão do Supremo que declarou o orçamento secreto inconstitucional desde o ano passado, mas não comentou nenhuma das práticas citadas pela reportagem que foram aposentadas como irregulares. O governo disse ainda que suspendeu a liberação de novas emendas de comissão e que a AGU deverá concluir ainda nesta semana um parecer para orientar os ministérios a cumprirem as determinações do STF sobre o orçamento secreto e as emendas Pix.

A Câmara dos Deputados declarou que a assessoria jurídica da Casa está analisando tecnicamente a decisão de Flávio Dino para recorrer ao plenário do Supremo, mas também não apontou as práticas adotadas para inflar as emendas. O Senado Federal não se manifestou.