Por apoio político, governo Lula libera verba da Saúde para cidades incapazes de fazer cirurgias

Ministério da Saúde diz ter feito avaliação técnica ao definir transferências; governo repassou R$ 8 bilhões e dinheiro superou capacidade efetiva de municípios realizarem procedimentos de alta e média complexidade, enquanto outros ficaram sem recurso

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Atualização:

BRASÍLIA – O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) distribuiu R$ 8 bilhões do Ministério da Saúde para Estados e municípios em troca de apoio político em 2023, atropelando critérios técnicos da pasta e gerando um descontrole no dinheiro destinado a cirurgias e exames. O recurso enviado para algumas cidades superou em mais de 1.000% a capacidade efetiva de atendimento nessas localidades, enquanto outras ficaram sem recurso.

O Ministério da Saúde impõe um limite que cada município pode receber, considerando a capacidade de atender a população, mas estourou esse teto ao carimbar o repasse como emergencial (sem dizer, mesmo questionado várias vezes pela reportagem, qual emergência serviu de fundamento) e não classificar a verba como emenda parlamentar. Em resposta à reportagem, a pasta afirmou que fez avaliações técnicas e considerou necessidades específicas de cada localidade.


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a ministra da Saúde, Nísia Trindade, em março de 2023.  Foto: Wilton Junior/Estadão

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O Estadão consultou documentos, ouviu técnicos do ministério, especialistas em orçamento público, parlamentares e prefeitos para analisar os repasses. Os R$ 8 bilhões foram distribuídos conforme regras da Portaria 544, de maio de 2023. Inicialmente, eram R$ 3,5 bilhões herdados do orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão e derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, ao longo do ano, mais dinheiro foi sendo adicionado, como R$ 4,3 bilhões aprovados pelo Congresso para compensar perdas de arrecadação e R$ 241 milhões de emendas de bancada.

Do total, a maior parte (R$ 5 bilhões) foi destinada à alta e média complexidade, que envolve cirurgias, exames e atendimentos médicos mais complexos nos Estados e municípios. O restante foi destinado à atenção básica, que inclui a manutenção de postos de saúde e equipes de agentes comunitários. Ainda não é possível saber em tudo que o dinheiro foi usado. Em vários municípios, o recurso ficou no caixa e não foi gasto nem com exames nem com cirurgias.

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Em documentos oficiais, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, negou que os R$ 8 bilhões tenham sido objeto de negociações com parlamentares, mas no Congresso o assunto é tratado com naturalidade. Os encontros aparecem até mesmo na agenda oficial de autoridades da pasta. Integrantes do ministério e parlamentares confirmaram a existência de indicações políticas para destinar os recursos.

Ao alegar emergência e não carimbar as verbas como emendas parlamentares, os recursos de alta e média complexidade superaram o limite estabelecido pelo próprio ministério em 651 municípios, sendo que em 20 deles o teto foi ultrapassado em mais de 1.000%. Os repasses superaram tanto o limite de repasses regulares quanto o de incremento imposto às emendas parlamentares.

Na prática, as prefeituras receberam muito mais dinheiro do que a capacidade para entregar esses serviços. Enquanto isso, outros 1.332 municípios que pediram recursos da mesma portaria não levaram nada. Os maiores beneficiados foram o governo de Alagoas (R$ 166,5 milhões), o governo do Maranhão (R$ 132 milhões) e a prefeitura de Maceió (R$ 103 milhões), reduto do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Só depois aparecem cidades como São Paulo, Teresina e Curitiba.

A Secretaria de Saúde de Alagoas afirmou que os recursos estão depositados em uma conta, concluindo a fase de planejamento para custear serviços de assistência ambulatorial e hospitalar, “tendo em vista a considerável ampliação da Rede Pública Estadual, que possuía apenas três hospitais e, agora, expandiu para dez, além de seis novas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e duas clínicas da família.” A gestão estadual não respondeu se algum político apadrinhou a verba. O governo do Maranhão e a prefeitura de Maceió não comentaram.

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Cidades receberam dinheiro que supera em mais de 1.000% a capacidade de atendimento

Em Goiás, os 1.744 habitantes de São João da Paraúna contam com apenas um posto de saúde e nenhum hospital, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde. O município declarou ter feito 28 mil procedimentos de média e alta complexidade em 2023, incluindo 4 mil exames de urina. A prefeitura recebeu, em novembro, R$ 1,25 milhão para bancar procedimentos de alta e média complexidade por meio da portaria. Rio Verde (GO), por outro lado, com 225,7 mil moradores e uma produção que superou 2 milhões de procedimentos especializados em 2023, pediu R$ 126,7 milhões por meio da mesma portaria para bancar os serviços, mas não recebeu nada.

O valor repassado para São João da Paraúna representa 4.758% do limite autorizado pelo Ministério da Saúde para alta e média complexidade no município em 2023, que era de R$ 26.271,24. Como o dinheiro foi classificado como emergencial, atropelou esse teto. A parcela supera tudo que a administração municipal gastou com assistência hospitalar e ambulatorial em 2023 (R$ 187 mil) e também tudo que o município planejou gastar com esses serviços no orçamento de 2024 (R$ 452 mil).

O prefeito da cidade, Ubirajara Antônio Duarte Júnior (União), disse ao Estadão que aproximadamente R$ 100 mil, ou seja, menos de 10% do valor recebido, foi usado até o momento. Ele afirmou que o município tem condições de gastar porque há uma fila de espera por exames e cirurgias e contestou a informação que o dinheiro supera a capacidade de atendimento. “Onde tem gestão, tem capacidade, onde tem desvio é que não tem. Se você vier aqui, vai ver que a cidade é um paraíso”, afirmou. O prefeito ficou de repassar detalhes sobre os procedimentos realizados, mas não enviou.

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Filadélfia (TO), com 7,7 mil moradores, recebeu R$ 1 milhão de forma emergencial – mas, segundo o próprio Ministério da Saúde, a localidade só tinha autorização para receber até R$ 4,3 mil. O repasse, portanto, ficou 23.215% acima do teto. Desde que recebeu o dinheiro, a prefeitura informou ter gastado R$ 485,8 mil com atenção especializada no município, menos da metade do dinheiro enviado pelo governo de forma emergencial. Procurada, a prefeitura de Filadélfia não se manifestou. No mesmo ano, Taguatinga (TO), com 14 mil habitantes, também com um hospital, tinha um teto de R$ 1 milhão e pediu recursos para a pasta de Nísia Trindade, mas não recebeu nada.

Bom Jesus do Galho, um município de 14,5 mil habitantes em Minas Gerais, tem um hospital e sete postos de saúde. Oficialmente, a cidade não tinha autorização para receber nenhum recurso para o custeio de alta e média complexidade no ano passado, mas conseguiu R$ 1,14 milhão da portaria. Enquanto isso, Itabira (MG), com uma população de 113 mil habitantes, três hospitais e 26 postos de saúde, não recebeu nenhum recurso emergencial, mesmo tendo solicitado R$ 48 milhões ao Ministério da Saúde para custear os serviços. A prefeitura de Bom Jesus do Galho não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Alexandre Padilha controla distribuição de verbas do Ministério da Saúde

A distribuição do dinheiro foi comandada pelo ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, padrinho da ministra da Saúde no cargo. No papel, o repasse se deu a partir de propostas feitas por Estados e municípios, avaliadas pelos técnicos do ministério. Na prática, prevaleceu a barganha com o Congresso, sob comando de Padilha e com atendimentos ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a quem coube fazer o rateio entre deputados.

Ministro da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, Alexandre Padilha, com a ministra da Saúde, Nísia Trindade, em julho de 2023.  Foto: Ricardo Stuckert/PR

Na Secretaria de Relações Institucionais, quem toca o dia a dia da relação com o Ministério da Saúde é o médico pernambucano Mozart Sales, amigo de Padilha desde os tempos de movimento estudantil e hoje assessor especial do ministro. Do lado do Ministério da Saúde, a relação é com o secretário-executivo Swedenberger Barbosa, o Berge, quadro histórico do PT, ligado a Lula e ao ex-ministro José Dirceu.

No Congresso, a negociação de recursos da Portaria 544 é tratada com naturalidade. Deputados e senadores não fazem segredo sobre o assunto. Afinal, buscar recursos para seus representados é parte do trabalho parlamentar. Não é ilegal que o parlamentar indique a destinação de um dinheiro federal, mas a Constituição exige transparência sobre esse repasse e equilíbrio regional nas verbas de Saúde – o que não aconteceu.

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Líderes da Câmara assinaram um pedido de informações ao Ministério da Saúde em fevereiro questionando a ministra Nísia Trindade sobre os critérios adotados na liberação do recurso. A suspeita é que a pasta não pagou tudo que os deputados pediram, mas usou parte dos recursos para atender acordos próprios de Padilha.

“Quem tem esse controle, que faz o acompanhamento das indicações desses recursos todos (da Portaria 544), é a assessoria do presidente da Câmara (Arthur Lira, do PP de Alagoas). Esse levantamento (de Lira) é que, digamos, provocou esse início de indagação, do pedido de informação para o Ministério da Saúde (em fevereiro)”, disse o líder do PDT, Afonso Motta (RS), um dos autores do pedido de informação.

Pessoas com conhecimento do dia a dia do ministério dizem que as listas de propostas a serem priorizadas chegavam da SRI de Alexandre Padilha em planilhas do Excel, o software de planilhas da Microsoft. Procurado, o ministério de Padilha confirmou que encaminha indicações políticas ao Ministério da Saúde, mas disse que a pasta “não tem qualquer atribuição no julgamento técnico das propostas”. De acordo com o órgão, a SRI “repassa aos órgãos as propostas apresentadas” por parlamentares ou outros agentes, “sejam estes da base ou da oposição”. “O mesmo vale para as prefeituras e os governos estaduais, independentemente do partido de seus governantes.”

Negociações de verbas da Saúde estão registradas em agenda oficial

A negociação de recursos da Portaria 544 também aparece na agenda oficial de autoridades do Ministério da Saúde. Encontros para tratar do assunto são citados na agenda do chefe da Assessoria Parlamentar (Aspar) do Ministério da Saúde, o ex-deputado federal pelo Rio Chico D’Ângelo.

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No dia 4 de outubro de 2023, ele esteve com os deputados Dagoberto Nogueira (PSDB-MS), Silvia Cristina (PL-RO) e assessores técnicos do ministério. O assunto: “viabilização de recursos e propostas inseridas na plataforma FNS/InvestSUS e SISMOB referente à portaria 544″. As plataformas mencionadas são sistemas do Fundo Nacional de Saúde (FNS), onde tramitam os pedidos.

No dia 24 de outubro, a reunião foi com o deputado Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), para tratar de emendas parlamentares e “propostas da Portaria 544 para São João de Meriti (RJ)”. Áureo disse que os recursos da Portaria 544 são negociados individualmente por cada congressista, mas que não tratou especificamente das propostas da portaria naquela ocasião. E muito menos para São João do Meriti, que não é base eleitoral dele.

“A (portaria) 544 é relação individual do ministério (da Saúde) com (cada congressista). Eu pelo menos, esse ano para mim não foi um ano muito positivo de liberação de recursos. Cada deputado vai lá tratar individualmente, no ministério, para fazer essas ações”, disse o parlamentar.

Chico D’Ângelo confirmou o teor das agendas. Ele disse que conversas com congressistas sobre a liberação de recursos são próprias “da democracia”. Disse, no entanto, que a liberação foi feita após análise das propostas apresentadas pelas prefeituras e governos estaduais por parte dos técnicos do ministério, especialmente nas secretarias de Atenção Primária à Saúde (Saps) e de Atenção Especializada (Saes).

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“Os parlamentares, legitimamente, que isso faz parte, pediam audiência no Ministério para avaliar propostas. Isso daí é da democracia. Foi essa a dinâmica que foi criada. Felizmente, agora, se criou outra modalidade, por meio das emendas de Comissão (permanentes). Acabou, no ano de 2023, essa modalidade aí (da Portaria 544). Este ano de 2024 já acabou, já não tem mais. No final do ano, encerrou”, disse ele.

Ao longo de 2023, o Ministério da Saúde se recusou a divulgar a lista das propostas que foram “apadrinhadas” por congressistas, dentro da Portaria 544. Em resposta a um pedido da Lei de Acesso à Informação (LAI), no dia 04 de outubro, Nísia Trindade negou que as verbas fossem negociadas com o Congresso sistematicamente. “Não há, na sistemática de execução dos recursos disciplinados pela Portaria 544/2023, previsão de destinação de recursos de acordo com indicações parlamentares”, diz um trecho.

Pasta afirma ter seguido avaliação técnica e considerado necessidades de cada localidade

O Ministério da Saúde afirmou ao Estadão que os repasses atenderam propostas apresentadas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios e não se submetem aos limites estabelecidos para o financiamento desses serviços em cada município. A pasta não respondeu, no entanto, qual foi a emergência considerada para classificar os recursos como emergenciais.

O órgão ressaltou que avalia necessidades específicas de cada localidade na hora de liberar o dinheiro, como “desequilíbrios contratuais com prestadores de serviços, custeio de novos estabelecimentos, mudanças no perfil epidemiológico populacional, aumento de demanda proveniente dos municípios, dentre outros.”

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O ministério chefiado por Nísia Trindade respondeu ainda que realizou análises técnicas de programas e projetos e trabalha para tornar mais equânime a alocação de recursos para custeio da rede de atenção à média e alta complexidade no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Sobre as indicações políticas, o ministério alegou que a participação de parlamentares ocorre com a divulgação dos chamamentos públicos abertos e com “eventuais manifestações de apoio às propostas dos gestores locais”. De acordo com a pasta, a Secretaria de Relações Institucionais (SRI) atua legitimamente por meio da interlocução junto aos parlamentares e aos representantes de Estados e municípios, mas não tem poder para definir quais Estados e municípios recebem o dinheiro.