O terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva apresenta o pior desempenho na aprovação de Medidas Provisórias (MPs) nos dois primeiros anos de governo em relação aos seus antecessores. Das 126 MPs apresentadas, apenas 19 foram sancionadas e convertidas em lei, resultando em uma taxa de aprovação de 15,87% — a menor desde 1988. Os dados apontam desafios crescentes na articulação política do Executivo diante de um Legislativo fortalecido por mudanças institucionais recentes que limitaram os instrumentos de negociação disponíveis ao governo.
Procurada, a Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República ainda não se manifestou. O espaço permanece aberto para posicionamento.
A MP é um instrumento utilizado pelo presidente para editar normas com força de lei em casos de relevância e urgência. Após a sua publicação, passa a vigorar imediatamente, mas precisa ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias — 60 dias, prorrogáveis por mais 60 — para se tornar uma lei definitiva. Durante sua tramitação, a MP é analisada por uma Comissão Mista (composta por deputados e senadores) e, se aprovada, segue para votação nos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado. Caso não seja votada dentro do prazo, perde sua eficácia e não se torna lei. Mesmo assim, medidas ainda dentro do prazo podem ser aprovadas no ano seguinte.
Em 2024, o governo Lula editou 74 MPs, das quais apenas 8 foram convertidas em lei, resultando em uma taxa de sucesso de 10,08% — índice que pode crescer nos próximos meses, dado que algumas dessas medidas ainda estão em tramitação. Considerando os dois primeiros anos do atual mandato, a aprovação sobe para 15,87%, mas ainda permanece abaixo dos índices registrados por Jair Bolsonaro (2019-2020), com 47,44%; Michel Temer (2016-2018), com 58%; Dilma Rousseff, com 82,72% no primeiro mandato (2011-2012) e 76,2% no segundo (2015-2016); pelos próprios governos anteriores de Lula, com 86,36% (2007-2008) e 93,89% (2003-2004); e Fernando Henrique Cardoso, com 82,4% no segundo mandato (2001-2002), conforme levantamento da Coordenação de Relacionamento, Pesquisa e Informação do Centro de Documentação e Informação (CEDI) da Câmara dos Deputados.
O professor de ciência política do IDP, Vinicius Alves, explica que a baixa conversão das medidas provisórias em lei reflete a mudança na correlação de forças entre Executivo e Legislativo nos últimos anos, impulsionada por alterações em diversos mecanismos que antes fortaleciam o presidente e serviam de instrumentos de negociação do governo, como as emendas parlamentares, que passaram a ser, em parte, impositivas — ou seja, de pagamento obrigatório.
“A relação entre Executivo e Legislativo hoje opera sob bases institucionais ainda mais desafiadoras para a cooperação entre os poderes, sobretudo devido ao maior controle parlamentar sobre o orçamento discricionário da União. As emendas, por exemplo, eram uma importante ‘moeda de troca’ usada pelo governo para aprovar projetos na Câmara, incluindo Medidas Provisórias. Com as emendas impositivas, essa ferramenta perdeu parte de sua eficácia como mecanismo de barganha política”, explica Alves.
Neste ano, por exemplo, o governo Lula enfrentou resistência quando o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), optou por devolver ao Executivo parte da MP que restringia o crédito de PIS/Cofins para empresas.
Apesar dessa situação, Alves ressalta que a não conversão de MPs nem sempre é sinônimo de derrota. Em alguns casos, o conteúdo original é mantido ao ser incorporado a projetos de lei aprovados posteriormente, garantindo que parte dos objetivos do Executivo sejam mantidos.
“Os interesses do Executivo e do Legislativo, portanto, não são e não precisam ser necessariamente conflitantes”, explica.
Mudanças regimentais fortalecem Legislativo
A cientista política Ana Regina Amaral, coordenadora da área de instituições políticas da Associação Brasileira de Ciência Política, explica que, até 2001, o presidente da República tinha ampla liberdade para editar e reeditar MPs sem limite para reedição, permitindo ao Executivo pressionar o Congresso indefinidamente pela aprovação dessas medidas. A dinâmica, na avaliação de Amaral, transformava o Congresso, na prática, em um mero chancelador das ações do Executivo.
Não por acaso, os presidentes antes das alterações promovidas pelo Congresso apresentavam altos índices de conversão de MPs em leis, como Fernando Henrique Cardoso, no primeiro mandato (1995-1998), com 87,42%; Itamar Franco (1992-1994), com 86,59%; Fernando Collor de Mello (1990-1992), com 73,86%; e José Sarney (1985-1990), com 86,29%.
Contudo, a aprovação da Emenda Constitucional 32 alterou essa dinâmica, estabelecendo critérios mais rígidos, como o prazo máximo de 120 dias para votação, após o qual a MP perde automaticamente sua eficácia. Antes, as MPs podiam ser reeditadas indefinidamente, permanecendo válidas por longos períodos sem a necessidade de aprovação formal dos parlamentares, o que ampliava o poder do Executivo de atuar sem o aval do Congresso.
“A partir de então, o número de MPVs que perderam eficácia, ou seja, que não foram votadas dentro do prazo, dobrou a partir de Lula 2 e quadruplicou em Dilma 1. Enquanto a perda de eficácia de MPVs representava 3% do total, passou para 25% em Dilma 1, 38% no Governo Temer, 40% no Governo Bolsonaro e chegou a 61% no Governo Lula III”, diz.
Amaral destaca a introdução do sobrestamento da pauta, um mecanismo que, após 45 dias da publicação de uma MP, tranca a votação de outros projetos, forçando o Congresso a priorizar sua análise. Inicialmente favorável ao Executivo, o sobrestamento gerou insatisfação no Legislativo, que, em 2009, sob a liderança de Michel Temer, restringiu seu impacto a matérias exclusivamente passíveis de regulação por MPs, como alterações tributárias e créditos extraordinários. A decisão liberou a tramitação de outras proposições, como os Projetos de Lei (PLs), destinados a criar ou modificar normas gerais, ampliando a autonomia do Legislativo, que passou a não ter mais a pauta trancada após o vencimento do prazo de votação de uma MP.
“Antes, o governo tinha uma arma poderosa: o sobrestamento da pauta. Isso acabou”, observa.
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O cientista político Lucio Rennó, integrante do Laboratório de Pesquisa em Comportamento Político, Instituições e Políticas Públicas (LAPCIPP) e professor de ciência política da UnB, também ressalta que a obrigatoriedade de análise prévia das MPs por uma Comissão Mista, chancelada pelo Judiciário em 2012, trouxe uma mudança estrutural na dinâmica do processo de aprovação.
“Antes, as MPs eram enviadas diretamente aos plenários, o que tornava o processo mais ágil. A inclusão da Comissão Mista adicionou uma etapa de negociação que aumentou os desafios para o Executivo,” diz.
Rennó chama atenção para outro ponto: a flexibilização das regras durante a pandemia, que permitiram ao Presidente da Câmara adiar a leitura da MP em plenário — condição necessária para que o prazo de 45 dias do sobrestamento comece a contar. A medida, que não está prevista na Constituição, possibilita, na prática, adiar indefinidamente o início da contagem do prazo, evitando o bloqueio da pauta e diminuindo a pressão sobre o Congresso para priorizar a análise das MPs.
“A prática reforçou o poder do Presidente da Câmara, já que ao controlar o momento da leitura da MP, ele passa a influenciar diretamente a agenda legislativa. A prerrogativa transforma a leitura da MP em um poderoso instrumento de barganha política”, pontua.
Na avaliação de Rennó, todas essas alterações no rito de tramitação das MPs restringiram esse instrumento presidencial, fortalecendo o papel do Legislativo e diminuindo a influência direta do Executivo sobre o Congresso.
“Agora, o presidente precisa negociar e ceder muito mais do que antes para garantir a aprovação de suas propostas. O jogo mudou. Tanto Lula quanto futuros presidentes enfrentarão dificuldades crescentes diante de um Congresso mais empoderado e com maior controle sobre a agenda legislativa. Vamos ver como será daqui para frente”, completa.
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