BRASÍLIA - O governo Jair Bolsonaro omite há um ano os pagamentos feitos a militares da reserva e pensionistas, mesmo após o Tribunal de Contas da União (TCU) determinar a divulgação dessas informações no Portal da Transparência. Embora a Corte tenha mandado, em 11 de setembro de 2019, que os pagamentos fossem liberados para consulta pública, de forma individual – como ocorre com os da ativa e servidores civis –, isso nunca aconteceu.
Hoje, não é possível saber, por exemplo, quanto ganham, de fato, filhas solteiras de militares e aposentados das Forças Armadas, entre eles o próprio Bolsonaro e o vice-presidente, Hamilton Mourão, além de pelo menos nove ministros.
Remunerações de reservistas, reformados e pensionistas nunca foram publicadas por nenhum governo. O decreto que regulamenta a Lei de Acesso à Informação (LAI) faz referência apenas aos funcionários da ativa. Dados dos militares em atividade são divulgados pelo menos desde 2012. Informações de servidores aposentados e pensionistas de outros órgãos e Poderes já foram tornadas públicas, parte delas por força do despacho do TCU.
Em 2017, a agência Fiquem Sabendo encaminhou denúncia ao TCU sobre a ocultação dos dados. O argumento principal era o desrespeito aos princípios da eficiência e da publicidade dos gastos, previstos na Constituição. O tribunal cobrou, então, da Controladoria-Geral da União (CGU) informações relativas aos inativos e pensionistas vinculados ao Executivo. Determinou, ainda, que o Ministério da Economia adotasse medidas, em 60 dias, para divulgar a base de dados, em formato aberto, dessas pessoas e dos aposentados que passaram à inatividade antes de novembro de 2016.
O ministro Walton Alencar, relator do caso no TCU, usou como referência a cifra de R$ 494,6 bilhões com pagamentos a servidores aposentados, na reserva, reformados e recebedores de pensão, entre 2011 e 2016. “O volume de recursos é suficiente para demonstrar a importância de se implementar a transparência ativa dessas informações”, disse Alencar, que viu descumprimento do princípio constitucional da publicidade.
Houve recurso por parte do governo, rejeitado pelo tribunal, em dezembro. No último mês de fevereiro, o processo foi encerrado. O governo mantinha reuniões de trabalho a respeito do assunto desde outubro de 2019 e chegou a estabelecer o fim de julho como prazo para tornar a consulta disponível, o que não foi cumprido. A Fiquem Sabendo comunicou, em artigo, ter cobrado o TCU sobre o descumprimento. A Corte não respondeu ao pedido de informações da reportagem.
O Estadão apurou no Ministério Público de Contas que o descumprimento do acórdão pode levar a punições, como o afastamento do gestor responsável.
Lentidão
Para o diretor executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino, a demora de um ano para viabilizar a consulta individual, ou mesmo uma lista com reservistas e seus salários, é “absurda”. “Depois de tanto tempo, fica configurado que o governo está ativamente trabalhando contra a transparência. Essa informação é de grande prioridade, pois envolve o próprio presidente e ministros, o mais alto nível da República. Não pode demorar um ano”, disse Galdino.
O pesquisador da Fundação Getúlio Vargas Fabiano Angélico, mestre e doutorando em Administração Pública, entende que nunca houve brecha na lei a permitir a omissão de despesas com inativos. Ele afirma que o Congresso também deve cobrar o governo pela transparência ativa. “Se já houve uma decisão do TCU, que se debruçou sobre isso e determinou que os órgãos tomem ação, o Ministério da Economia e a CGU precisam agir. E tem que questionar os deputados e senadores. O pessoal da Comissão de Finanças e Controle vai fazer o que? Vão deixar a situação desse jeito, se o próprio órgão de assessoramento (TCU) determinou que o Executivo publique esses dados?”, questiona Angélico.
O governo vem usando o argumento de que trabalha para tornar públicos os dados como justificativa para negar pedidos de acesso à lista nominal dos inativos e pensionistas com base na Lei de Acesso à Informação. O Estadão encontrou ao menos quatro pedidos recentes negados, com resposta semelhante.
A Defesa informou que está transmitindo os dados, mas que a CGU é responsável pelo portal, espaço que será “destinado à publicação dos proventos dos militares inativos e das pensões militares percebidas pelos pensionistas das Forças Armadas”. O ministério alegou que, em alguns casos, não há previsão legal para a divulgação das despesas, que podem ser consideradas como informação pessoal, passível de proteção.
A Secretaria de Controle Externo da Administração do Estado – área técnica do TCU – discorda e cita que “a exigência legal de transparência ativa dos gastos com servidores inativos e pensionistas alcança toda a Administração Pública”.
CGU afirma que publicará dados em breve
Responsável por gerir o Portal da Transparência, a Controladoria Geral da União afirmou que “ainda não foi possível” disponibilizar a consulta do valores pagos a pensionistas e militares da reserva no site. Em nota, a Controladoria disse estar em “fase final” de homologação das fontes de dados sobre aposentados e pensionistas do Poder Executivo federal.
O Portal da Transparência é abastecido com dados recebidos de outros órgãos. A fonte das informações sobre os servidores federais é o Sistema Integrado de Administração de Pessoal (Siape), onde constam dados dos ministérios da Defesa, da Economia e do Banco Central.
“Nesse momento, a expectativa é receber novos dados validados do Siape nos próximos dias e, caso confirmado o recebimento, publicaremos as informações de todos os órgãos no Portal (da Transparência) o mais breve possível, quando então as remunerações dos militares da reserva e reformados também estarão disponíveis”, diz o comunicado da CGU.
O Ministério da Defesa, por sua vez, informou que “se encontra em permanente tratativa com a CGU visando dar publicidade aos proventos pagos a militares da reserva e reformados”. A Defesa também garantiu que o processo está em fase final. “Obtivemos a informação de que a CGU está em processo final de desenvolvimento de ferramenta que proporcionará acesso irrestrito aos valores pagos aos servidores públicos federais e aos militares das Forças Armadas, todos inativos, do mesmo modo em que é dada publicidade aos pagamentos do pessoal ativo”, informou o Ministério da Defesa.
Na última semana, o Estadão pediu entrevistas ao Ministério da Defesa e à CGU, mas as respostas foram dadas por meio de notas.
Reforma deixou militares de fora
A reforma administrativa proposta pelo governo deixa de fora os militares, além de juízes e procuradores. Os militares também se aposentam com integralidade e paridade, isto é, recebem o mesmo valor, como se estivessem na ativa – mantendo inclusive adicionais que elevam o salário –, e ganham todos os reajustes.
Na semana passada, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu o aumento do teto salarial do funcionalismo, hoje em R$ 39,3 mil, equivalente ao salário mensal de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Guedes disse que deve haver “enorme diferença” entre os vencimentos da alta administração e dos servidores concursados. Na sua avaliação, o aumento poderia preservar pessoas de qualidade no serviço público e valorizar a meritocracia.
Como revelou o Estadão, em reportagem publicada na segunda-feira passada, a aplicação do chamado “abate-teto”, mecanismo que limita as remunerações para evitar os supersalários, economizou R$ 518 milhões para o governo, desde 2018.
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