O juiz José Eduardo da Rocha Cordeiro, da 14.ª Vara da Fazenda Pública, chegou por volta das 13horas desta quinta-feira, dia 9, ao complexo onde funcionava o Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2º Exército. Estava sem a toga com a qual os magistrados normalmente fazem suas audiências, mas se fazia acompanhar de uma escrevente. Decidiu transformar o átrio que servia de entrada ao prédio na Rua Tutoia, na Vila Mariana, na zona sul de Sâo Paulo, onde os presos eram torturados para instalar sua mesa, o computador e as cadeiras para a sala de audiência. Foi ali, ao lado da escadaria que levava para a cadeira do dragão que a Justiça se instalou para decidir o destino do complexo que abrigou o maior centro de tortura e morte da ditadura militar.
A presença do juiz serviu para a realização de uma audiência em ação civil pública na qual o Ministério Público Estadual pede a transformação do local em um centro de memória sobre a ditadura militar (1964-1985). As Secretarias de Cultura e de Segurança Pública se mostraram contrárias ao projeto inicial, que previa incluir todo o complexo de quatro prédios no novo centro de memória, mas decidiram entregar ao juiz em 90 dias uma contraproposta sobre o destino do lugar. Ao magistrado, as secretarias informaram que o governo tinha outros planos para os prédios, que são tombados.
Foi a primeira vez que um magistrado entrou no prédio, que assistiu à morte de quase 50 opositores do regime militar, entre eles o jornalista Vladimir Herzog, assassinado em 1975. Ao todo, 79 dos 434 mortes e desaparecimentos acontecidos durante o regime contaram com a participação de agentes do DOI. Esse foi o caso do operário Joaquim Alencar Seixas. Na tarde desta quinta, seu filho Ivan Seixas, de 68 anos, foi um dos sobreviventes que acompanharam toda a audiência. Mais do que isso. Foi Ivan que serviu como testemunha para mostrar ao magistrado onde ficavam os instrumentos de tortura, em que cômodo seviciaram suas irmãs e onde romperam as costelas de seu pai, provocando-lhe a morte durante o suplício. Ivan tinha então 16 anos e militava no Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT).
A vistoria aconteceu antes da audiência, quando o magistrado inspecionou os quatro prédios do complexo. Eram 14 horas quando o juiz sentou-se na iniciou os trabalho. De um lado, os promotores Eduardo Valério e Ana Trotta Yarid. Do outros, duas procuradoras do Estado e o delegado Gilson da Silveira, representando a Polícia Civil, que atualmente ocupa com o 36.º Distrito Policial o prédio da frente do complexo – os outros três, que ficam nos fundos, estão praticamente vazios. É a presença da delegacia o principal entrave para um acordo em razão dos custos da operação.
Na tarde desta quinta-feira, dia 9,o magistrado conduziu uma audiência de conciliação entre as partes. O juiz Cordeiro determinou que ela fosse feita nas dependências do antigo centro de tortura dois dias depois dos protestos convocados no País pelo presidente Jair Bolsonaro para atacar o Poder Judiciário. Bolsonaro considera como um herói na luta contra o comunismo o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o DOI entre 1970 e 1973.
Uma das hipóteses para um acordo no caso seria que o futuro centro de memória ocupasse os três prédios dos fundos da delegacia, deixando que o prédio da frente, onde funciona a 36.º DP, permanecesse com a Segurança Pública. “Não queremos um museu, mas um espaço de memória, de educação em direitos humanos para as novas gerações a fim de que se possa sensibilizar o público com o objetivo de que isso nunca mais aconteça”, afirmou o promotor Eduardo Valério, responsável pela ação.
De acordo com o promotor, os prédios nos fundos da delegacia e o próprio prédio do 36º DP foram tombados, não em razão de terem alguma importância arquitetônica, mas em razão do que se passou no local. Ao todo, 79 pessoas morreram em ações com a participação de homens do DOI entre 1969 e 1976. Muitos deles em suas dependências. “Aqui foi um centro que inspirou outros centros em todo o País”, afirmou o ex-presidente da Comissão Estadual da Verdade, Adriano Diogo, que esteve preso no lugar nos anos 1970.
O antigo complexo da Rua Tutóia, na Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, passou a ser ocupado pela Operação Bandeirantes (Oban) em 1969. Em 1970, a Oban foi rebatizada DOI – mas ficou conhecida pela sigla DOI-Codi, um modelo que se espalhou pelo País. Nele trabalhavam policiais civis, militares e federais e militares das três Forças sob o comando do Exército. O DOI ficou ocupando o prédio até 1982, quando foi transferido para Osasco, na Grande São Paulo. O órgão com policiais e militares durou até 1991, quando foi desfeito.
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