A empresa do secretário de Educação de São Paulo, Renato Feder, fechou três contratos com o governo paulista quando ele já ocupava o cargo no primeiro escalão de Tarcísio de Freitas (Republicanos). A Multilaser venceu pelo menos três licitações no valor de R$ 243 mil desde janeiro. O maior negócio fechado neste período é de fornecimento de material hospitalar para o Instituto de Assistência Médica do Servidor Público Estadual (Iamspe), de R$ 226 mil.
Feder é sócio da offshore Dragon Gem, dona de quase 28,16% da Multilaser, e entrou na mira da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo, que o investiga por conflito de interesse por um outro contrato assinado dias antes de ele entrar no governo. Sua firma vai receber R$ 76 milhões pela venda de 97 mil notebooks. Esse acordo foi fechado em 21 de dezembro de 2022, no apagar das luzes do mandato de Rodrigo Garcia (PSDB) e quando o Feder já sabia que seria secretário. Com isso, é Feder quem determina os pagamentos para sua própria empresa e também quem fiscaliza o contrato. A empresa dele já recebeu neste ano R$ 83 milhões para entregar computador e celular para secretaria de educação.
Após o caso vir à tona, Tarcísio saiu em defesa do auxiliar _ “preparadíssimo, estudioso, entusiasmado e idealista” _ e o secretário se comprometeu, em março, a não contratar a própria empresa. Isso não a impediu, porém, de fechar negócios com seus colegas que comandam outras áreas do Executivo paulista.
A última homologação de ata em favor da Multilaser foi publicada no dia 31 de julho no negócio com o Iamspe, entidade que está sob a alçada da Secretaria de Gestão e Governo Digital, comandada por Caio Paes de Andrade. O edital prevê a entrega de “fita com área reagente para verificação de glicemia capilar, com qualquer química enzimática e método de leitura em monitor portátil”. Outras 44 concorrentes participaram. Segundo o governo, a oferta da empresa foi 36,25% menor do que o melhor preço registrado na última ata de compra.
Em agosto, a Multilaser fez uma oferta em um pregão eletrônico da Universidade Estadual Paulista (Unesp) para fornecer, em junho, insumos e materiais hospitalares à Faculdade de Medicina Veterinária de Botucatu. As entidades gozam de autonomia administrativa, mas fazem parte da estrutura da Secretaria de Ciência e Tecnologia, comandada por Vahan Agopyan, colega de Feder no governo.
A Multilaser também fechou contrato de R$ 16 mil com o Hospital Regional de Ferraz de Vasconcelos, ligado à Secretaria de Saúde, para a venda de seringas. O material foi entregue e o valor já foi integralmente pago.
Caso semelhante já resultou em demissão no governo Serra
De acordo com o professor Carlos Ari Sundfeld, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV), os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade na gestão pública não impedem ao sócio de uma empresa ocupar um cargo, ainda que no mesmo órgão que a contratou. “Mas seria preciso ter bons mecanismos de governança para evitar risco de conflitos de interesse”, afirma.
A legislação federal que regula o assunto poderia ser usada por analogia na gestão estadual a fim de verificar se algum ato na execução do contrato da Multilaser em benefício da empresa de Feder ocorreu durante a gestão do secretário na Pasta. “A lei não especifica se o ato é formal ou informal, em razão do poder hierárquico, eventualmente, exercido sobre o ordenador de despesas”, afirmou Sundfeld. Em todo caso, segundo ele, restaria a questão moral. “Eu rescindiria o contrato ou não aceitaria o cargo”, conclui.
Eu rescindiria o contrato ou não aceitaria o cargo
Carlos Ari Sundfeld, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV)
Em 2007, no governo de José Serra, um caso similar resultou na demissão do então secretário de Comunicação, Hubert Alquéres, sócio do Instituto Japi de Ensino Superior, que venceu três pregões para oferecer cursos de formação de professores de escolas estaduais no valor de R$ 607 mil. Na ocasião, os contratos foram celebrados com a Secretaria de Educação, que não era comandada por Alquéres.
Hoje, as licitações vencidas pela empresa de Feder com o governo também estão em áreas fora de seu comando. Na época, o MP abriu investigação para apurar se houve favorecimento à organização em razão de seu vínculo com o secretário. Em 2022, Alquéres voltou ao governo como secretário de Educação no governo de Rodrigo Garcia e foi sucedido por Renato Feder.
Para Marcos Perez, professor de direito administrativo da USP, o caso enseja uma investigação por conflito de interesses. A exemplo de Sundfeld, Perez também diz que rescindiria o contrato ou abriria mão do cargo. “Se você me perguntar: ‘você faria isso (ser secretário)?’, eu não faria. Não há nada que pague a sua reputação. Uma reputação construída ao longo de uma vida não vale um contrato de computadores”, completa.
Eu não faria. Não há nada que pague a sua reputação.
Marcos Perez, professor de direito administrativo da USP
Governo diz que contratos foram em outras áreas
Procurado, o governo de SP justificou que a pasta de Feder não firmou contrato com a Multilaser na gestão de Tarcísio e não comentou o fato de outras áreas do governo terem assinado com a empresa do secretário.
“Todos os acordos atualmente vigentes (na Educação) foram formalizados por administrações anteriores. Desde que assumiu o cargo no início do ano, o secretário Renato Feder determinou que a empresa citada não terá qualquer participação nos processos de aquisição ou licitação ligados à sua pasta. Inclusive, em 24 de fevereiro, notificou a Multilaser pelo atraso na entrega dos notebooks licitados em maio de 2022.”
A Multilaser afirmou que “não existe qualquer impedimento legal para o fornecimento de equipamentos ao governo de São Paulo, uma vez que o Sr. Renato Feder não faz parte da administração da nossa empresa”. Disse ainda que não firmará contratos com a Secretaria de Educação de São Paulo enquanto Feder for secretário. “Sobre as demais secretarias, elas são independentes e não há restrição de vendas pelo grupo Multi.”
Troca de livros didáticos e defesa de Tarcísio
Feder esteve no centro de uma polêmica após defender a troca de livros didáticos por materiais digitais em Powerpoint. Ele abriu mão de 10 milhões de exemplares que seriam fornecidos pelo Ministério da Educação para os alunos dos ensino fundamental 2 (6º ao 9º ano) e médio no ano que vem para usar apenas material digital. A decisão também foi alvo do MP.
“A aula é uma grande TV, que passa os slides em Powerpoint, alunos com papel e caneta, anotando e fazendo exercícios. O livro tradicional, ele sai”, disse ao Estadão.
Após críticas à medida, Tarcísio saiu em defesa do secretário e garantiu a manutenção dele no cargo em entrevista ao Estadão. O governador o classificou como “preparadíssimo, estudioso, entusiasmado e idealista”. E acrescentou que Feder “tem sua admiração e respeito” e que “a chance” de ser substituído é “zero”.
Também defendeu a política de digitalização do ensino promovida pela pasta, que segundo ele, “só foi mal comunicada”. No entanto, recuou da decisão de retirar o material impresso das escolas e anunciou que os alunos terão uma apostila impressa pelo próprio governo com o conteúdo dos slides aprofundado. / COLABOROU DANIEL WETERMAN
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