'Guardião' do orçamento secreto, Lira consolida apoio a Bolsonaro na Câmara

Apontado por políticos de vários partidos como 'homem mais poderoso da República', presidente da Câmara teve papel decisivo para garantir aprovação de projetos de interesse do governo

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BRASÍLIA - “Não se preocupe com a sociedade civil. Se preocupe em ter voto”, disse o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), em sua residência oficial, em Brasília, diante de cerca de dez deputados federais. “Tem voto ou não tem voto?”, insistiu, olhando para o relator do projeto de lei de reforma do Imposto de Renda, Celso Sabino (PSL-PA), que ele mesmo havia designado. Voto, àquela altura, em meados de setembro, não tinha. Mas a liberação de emendas de relator-geral do orçamento – base do orçamento secreto – foi o óleo na engrenagem que faltava, e o projeto foi aprovado.

A frase do presidente da Câmara, narrada por um deputado presente no encontro sob condição de anonimato, ilustra o modo de “governar” de Arthur Lira, visto por muitos nos bastidores da política como o homem mais poderoso da República. Em busca de formar uma base aliada que evitasse seu impeachment, o presidente Jair Bolsonaro entregou a Lira a função do Executivo de manipular o destino de R$ 11 bilhões em emendas de relator-geral do orçamento. Era a criação do esquema do orçamento secreto, um duto de recursos públicos para garantir apoio político ao Palácio do Planalto no Congresso. 

O político alagoano é chamado de primeiro-ministro por parlamentares e visto por muitos nos bastidores político como o homem mais poderoso da República. Foto: Dida Sampaio/Estadão

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Não por acaso, o político alagoano é chamado de primeiro-ministro por parlamentares ouvidos pela reportagem nos últimos dias, que preferem não aparecer para evitar retaliações. Sem Lira, o governo não aprovaria absolutamente nada, segundo um deputado que relatou um projeto aprovado neste ano. Lira é descrito também como um político que costuma ter atitudes brutas e com marcas de rancor mesmo por deputados que dizem ter um bom relacionamento pessoal com ele. Procurado nas últimas semanas para comentar as críticas ácidas, o parlamentar não retornou o contato.

Um colega de plenário diz que é habitual o próprio Lira ligar aos deputados para perguntar como vão votar. Ameaças de cortes de emendas e retiradas de relatorias são comuns. “Está comigo ou não?”, Lira costuma indagar, segundo relatam parlamentares.

Ao longo de seu primeiro ano à frente da Câmara, o ex-vereador de Maceió acumulou vitórias com placares folgados, a começar pela própria eleição ao posto de presidente. Como líder do Centrão, o maior bloco parlamentar da Casa, formado por parlamentares de centro-direita habituados a trocar apoio por verbas públicas e cargos, ele era um candidato forte para suceder Rodrigo Maia (sem partido, ex-DEM-RJ), mas viabilizou a vitória sobre Baleia Rossi (MDB-SP) ao aliar-se com Bolsonaro e ter bilhões do orçamento secreto distribuídos aos deputados dispostos a lhe apoiar.

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Também colheu derrotas, algumas que não esperava. Ficou atônito ao ler o resultado no plenário da votação que rejeitou a PEC que ampliava a ingerência do Congresso no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), batizada por opositores como PEC da Vingança. Tampouco conseguiu aprovar a PEC da Blindagem, que dificulta a prisão de parlamentares, em sua primeira derrota, ainda em fevereiro. Na ocasião, tentou se valer do espírito de corpo diante da prisão do deputado bolsonarista radical Daniel Silveira (PSL-RJ). O mesmo Lira que travou processos do Conselho de Ética que poderiam levar à cassação do parlamentar, criticou o corporativismo de procuradores e citou a dificuldade do MP de punir seus integrantes envolvidos em irregularidades como argumento para tentar aprovar as mudanças no CNMP.

Como presidente da Câmara, Lira buscou consolidar uma base aliada que evistasse o impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Para construir essa união, Lira recebeu do Executivo a função de manipular o destino de R$ 11 bilhões em emendas de relator-geral do orçamento. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 14/9/2021

No seu primeiro ano de mandato, Lira transitou entre contradições desse tipo sempre com o pé no acelerador. Costurou acordos com governistas e com a oposição, mas "atropelou" o regimento da Casa quando foi conveniente. "O presidente Arthur é um democrata. Sabe defender seus ideais e sabe também conviver com o contraponto. Já vi ele perder votações que queria vencer e continuar a toada dos trabalhos normalmente. 'Ganhar e perder é do jogo', ele disse na ocasião de uma derrota em plenário, em uma votação de um recurso que afetava os profissionais da educação", disse o deputado Celso Sabino (PSL-PA), seu aliado.

Lira não tem uma agenda clara definida à frente da Câmara. Ao receber uma encomenda do governo, costura os apoios caso a caso, usando sobretudo repasses do orçamento secreto.

Os deputados costumam se queixar da forma com que Lira tem manipulado as emendas de relator, pois se tornam “prisioneiros” do presidente da Câmara. "O Arthur é um líder que tem voto, foi eleito por mais de 300 votos, seu poder é legítimo. Agora, como ele conduz o poder, é uma outra história. Mudanças no regimento e o orçamento secreto não são bons instrumentos para a democracia", reclamou Marcelo Freixo (PSB-RJ).

Contrariedade

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Em seu primeiro ano como presidente da Câmara, Lira demonstrou contrariedade para aceitar "nãos" de outros poderes. Em 24 de março, lembrou a Bolsonaro que havia mais de uma centena de pedidos de impeachment sob sua gaveta - já são 143. Em público, disse que “os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais”. No dia seguinte, o Congresso aprovou o orçamento com R$ 30 bilhões em emendas do relator-geral, cancelando até despesas obrigatórias – depois, o valor caiu para pouco mais da metade disso.

Ele também partiu para o ataque velado ao Supremo Tribunal Federal (STF) após a liminar da ministra Rosa Weber, do STF, ter suspendido a execução das verbas do orçamento secreto. Fez chegar ao Supremo que poderia fazer cortes no orçamento do Judiciário. Mas acabou recuando. Ministros reclamaram, e o diálogo passou a ser apenas com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que mudou o discurso e disse que buscaria dar transparência aos repasses. Foi o suficiente para Rosa Weber recuar e liberar a execução, apesar de as novas regras não terem garantido a revelação dos políticos beneficiados. No fim, porém, o objetivo de Lira se concretizou. 

Outra contestação do presidente da Câmara ao Judiciário foi a aprovação do Código Eleitoral, que retirou alguns poderes do Tribunal Superior Eleitoral. O texto travou no Senado.

Um colega de plenário diz que é habitual o próprio Lira ligar aos deputados para perguntar como vão votar. Ameaças de cortes de emendas e retiradas de relatorias são comuns. “Está comigo ou não?”, Lira costuma indagar, segundo relatam parlamentares. Foto: Dida Sampaio/ Estadão

'Trator'

Aliados e opositores o classificam como um “trator a jato” que cumpre acordos, mas atropela quem for preciso. No começo do mês, foram os evangélicos, que queriam obstruir a votação da urgência para o projeto de lei que legaliza jogos de azar no País. Na maior parte do ano, porém, quem pena é a oposição. As derrotas se tornaram mais frequentes – como nas privatizações dos Correios e Eletrobrás e na autonomia do Banco Central, que o antecessor Rodrigo Maia não pautava. 

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"Os principais projetos do governo e sua base sempre tiveram abrigo na Casa. E, com o orçamento secreto a todo vapor, Lira topou a lamentável tarefa de, na articulação com o Centrão, ajudar na sobrevida de um governo desastroso e rejeitado pelo povo", disse a deputada Talíria Petroni (PSOL-RJ).

Pauta anti-Lava Jato

Apesar do sufocamento da oposição, Lira agradou ao PT, e ao próprio Centrão, na agenda antilavajato, como na votação da reforma da Lei de Improbidade Administrativa. Também é elogiado pelo Prerrogativas, grupo de advogados progressistas, por não ter pautado a prisão em segunda instância, mas criticado pelo orçamento secreto e pelos atropelos regimentais.

Mesmo com tanto poder, o presidente da Câmara ainda enfrenta processos judiciais. Na 1ª Turma do Supremo, teve uma denúncia recebida no caso em que um assessor foi pego com R$ 106 mil embarcando para Brasília, dinheiro que, segundo a acusação, seria propina para o parlamentar. Delatado na Lava Jato, teve denúncias rejeitadas pela 2ª Turma do STF. Em Alagoas, obteve uma decisão favorável que arquivou a denúncia de envolvimento em esquema que desviou R$ 254 milhões dos cofres da Assembleia Legislativa estadual entre 2001 e 2007. É também acusado pela ex-mulher de violência doméstica. Ele nega ter cometido qualquer crime.

A construção do poder em meio a tantas bordoadas da Justiça só é possível, segundo aliados, pelo espírito de “lutador” de um político que ainda mantém alma de vereador. E que toda sexta-feira costuma cumprir agendas em Alagoas, onde até pouco tempo atrás pensava em se candidatar a governador. O ano de 2021, porém, mudou seu horizonte. Agora, ele diz que o seu lugar é na presidência da Câmara, onde espera se reeleger em 2023. Para isso, continuará usando o poder que tem e o que lhe é terceirizado por Bolsonaro, até quando a sociedade atual lhe for conveniente. “Meu lugar é aqui”, disse ele a um parlamentar ouvido pelo Estadão.

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