Se o manual produzido pelo antigo Ministério da Educação e Cultura (MEC) se preocupava com ações mais práticas e incisivas do sistema de inteligência na repressão aos adversários da ditadura, outros livros de instrução se dedicam à preparação específica dos futuros agentes. O Estado teve acesso às inéditas Apostilas de Estágio do Serviço Nacional de Informações (SNI), guardadas no Arquivo Nacional, em Brasília. Elas mostram o passo- a- passo de formação dos arapongas do SNI e são recheadas de doutrinação de combate ao comunismo e até do discurso de justificação da repressão física aos adversários do regime. Essas apostilas dizem respeito ao curso realizado entre 27 de novembro e 15 de dezembro de 1972, em Brasília, organizado pela Escola Nacional de Informações (EsNI), centro de estudos criado pelo SNI para preparar seus quadros. O curso reuniu 43 estagiários. Algumas das instruções alertam o futuro agente para as dificuldades da futura tarefa. "Quem trabalha nesse setor perde a paz de espírito; passa a ler jornais e a ouvir programas de rádio e TV de maneira diferente e, nas reuniões sociais, viagens e encontros casuais, está sempre atento e vigilante para as indiscrições que possam fornecer uma pista ou um dado que complete o mosaico que procura montar. Está constantemente preocupado com sua segurança pessoal, mede suas palavras, controla suas atividades e procura a racionalização de seus pensamentos, para não sofrer os impactos de paixões, afeições e sentimentos." Os alunos são instruídos até mesmo a usar a imaginação para produzir relatórios. "A massa de informes que o analista vai examinar pode chegar-lhe sem qualquer ordem lógica, incompleta e muitas vezes errada em alguns aspectos importantes. O analista tem a responsabilidade de tirar, dessa massa, uma informação lógica e significativa e, para isso, terá que usar em alta dose o seu pensamento e a sua imaginação", afirma o documento. No capítulo da segurança interna, os instrutores previnem os alunos contra a "ameaça comunista", em um discurso carregado de referências indiretas à Guerra Fria, que então dividia o mundo entre aliados dos Estados Unidos e da União Soviética. "As ações subversivas e perturbadoras da ordem sempre existiram. Nunca, no entanto, assumiram as proporções de nossos dias, em razão, principalmente, do conflito ideológico de âmbito mundial ora em curso, no qual se evidencia a ameaça comunista de dominação do mundo", descreve a apostila. O documento critica o "descaso" com que alguns governos tratam o problema. "São bem conhecidos os freqüentes exemplos em que as deficiências, a negligência e mesmo o descaso de certos governos, no sentido de superar determinadas pressões internas - algumas delas estimuladas, orientadas e apoiadas do exterior -, tem culminado em comoções intestinas graves", critica. "E, muitas vezes, em sucessos da ?Quinta Coluna?, como é o caso de tantos países que progressivamente vêm se tornando satélites de Estados totalitários". Nas aulas, os estagiários eram informados de que existia uma "compreensão soviética da guerra", "muito diferente da concepção ocidental". Nessa visão, os soviéticos não precisariam de um confronto militar para assumir "atos de guerra" em prejuízo de outros países, através da disseminação da doutrina comunista e do incentivo à ação de grupos de combate. "Daí a sua concepção de guerra, em que todos os aspectos formais da guerra clássica são substituídos por um permanente e irredutível estado de tensão e de beligerância ideológica." Segundo os ensinamentos do SNI, isso se daria "pela lenta, progressiva e insidiosa agressão psicológica, pela busca da decisão na luta fratricida orientada, fomentada e até mesmo apoiada materialmente por potências estrangeiras, a pretexto de proteção, objetivando a conquista definitiva do poder". Com essa abordagem, o SNI introduz, assim, uma justificativa para o uso de violência na repressão. "Em face dessa compreensão de guerra, o mundo se transformou, como decorrência natural, em palco de conflito permanente, no qual tanto a paz como a guerra tornaram-se instrumentos da estratégia mundial, admitindo-se mesmo a possibilidade de intervenção violenta do poder de um Estado, não só na forma tradicional de entrechoques das expressões militares adversas, como também contra grupos nacionais, apoiados ou não do exterior", diz a apostila.
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